Crónica de Frei Bento Domingues
no PÚBLICO
«Quem desejar conhecer o que foram as relações da hierarquia da Igreja com o mundo moderno dispõe hoje de testemunhos e investigações históricas alérgicas às habituais e cómodas explicações piedosas.»
1. Este Papa anda a desadaptar a Igreja. Pode parecer estranho, mas já deu muitos sinais de que é isso mesmo que pretende. Importa saber em que sentido. Parece-me algo diferente da “revolução” temida pelos conservadores e desejada pelos progressistas. É algo de mais radical.
Quando se falava de adaptação da Igreja ao mundo moderno pensava-se sobretudo na sua descolagem do “antigo regime”, do seu imaginário e privilégios. Daí o repetido toque a finados do chamado “constantinismo” e da cristandade medieval, às vezes, de forma anacrónica. Saber adaptar-se aos novos regimes políticos era uma questão de sobrevivência, procurando salvar o que era possível proteger, em contextos turbulentos. Mas o mundo moderno da criatividade cultural, do pensamento crítico, das descobertas científicas, dos novos movimentos sociais e políticos era coisa bem diferente e implicava discernimentos mais subtis.
Importa salientar que, mesmo no interior do mundo católico, nunca faltaram pessoas, movimentos e grupos que, no meio de grandes obstáculos e condenações vergonhosas, prepararam a grande viragem do Vaticano II. Sem ele e o reconhecimento oficial da liberdade religiosa, os católicos estariam hoje sem espaço para viver, de forma responsável, a crescente complexidade cultural.
A “desorientação” atribuída ao Concílio (1962-65) revelou apenas a falta de liberdade com que se tinha vivido, em diversas épocas e âmbitos, no interior da Igreja Católica. Para “sentir com a Igreja” era recomendada uma estranha e irracional atitude: se vires que uma coisa é preta, mas a hierarquia disser que é branca, conforma-te com a voz da hierarquia!
Lembro esse universo apenas para avivar a memória, mas sem insistir. Quem desejar conhecer o que foram as relações da hierarquia da Igreja com o mundo moderno dispõe hoje de testemunhos e investigações históricas alérgicas às habituais e cómodas explicações piedosas.
2. Por outro lado, em nome do combate à “teologia da libertação” e com o enfraquecimento dos movimentos operários católicos desenvolveu-se um catolicismo ora aburguesado, ora mistificador, servido por movimentos bem adaptados a essa mentalidade, sem qualquer estratégia operativa de combate à pobreza degradada em miséria, esquecendo que “não é de esmola que as pessoas precisam, mas de dignidade” como agora repete M. Bergoglio.
Com o aumento dos chamados católicos não praticantes, a sedução exercida, em vários países, sobre as camadas populares pelas igrejas e seitas pentecostais e uma moral familiar sufocada pelo irrealismo, com os meios de comunicação social cheios de narrativas de eclesiásticos pedófilos e de escândalos financeiros do Banco do Vaticano, tornara-se evidente que as lideranças de João Paulo II e de Bento XVI, por acção e omissão, desbarataram o crédito do Vaticano II, mesmo quando o invocavam. O papa Ratzinger teve o bom senso eclesial de se demitir.
3. Surge M. Bergoglio, com nítida vontade de não se adaptar ao império idolátrico do dinheiro, aos seus interesses e ambientes – dentro e fora da Igreja –, nem às seduções do fausto e do carreirismo eclesiásticos, dentro e fora do Vaticano. Escolhe, por isso, o nome e o paradigma de um clássico desadaptado ao mundo dos negócios, preocupado apenas em seguir Cristo pobre no meio dos pobres, sem ressentimento, respirando uma incansável poética da realidade de Deus e da natureza. Chama-se Francisco de Assis.
Os gestos, as atitudes e o programa deste Papa (Alegria do Evangelho) revelaram-se completamente dissonantes com os costumes inveterados da Cúria vaticana, das cúrias diocesanas, das burocracias paroquiais e com os tiques do catolicismo convencional. Esse não era o mundo de Cristo, manso e humilde de coração para com todos os aflitos e oprimidos, mas implacável perante os responsáveis pelas periferias sociais, culturais e religiosas do seu tempo. Bergoglio vê o mundo económico, social, político e religioso com o olhar do Evangelho e quer que a Igreja não se adapte a uma religião e a uma economia que matam.
Entretanto, as várias tentativas para desacreditar a denúncia da idolatria imperial do Dinheiro, invocando a sua incompetência na matéria, têm agora de engolir obras como as de Thomas Piketty [1] e de Chrystia Freeland [2], que põem a nu os mecanismos que produzem o fosso crescente entre ricos, super-ricos e o imenso mundo dos pobres, cujas consequências serão cada vez mais dramáticas, caso não se mude de rumo.
A concluir a sua investigação, T. Piketty, recorda que todos os cidadãos se deviam interessar pelo destino do dinheiro. Aqueles que o detêm em grande quantidade nunca se esquecem de defender os seus próprios interesses. C. Freeland observa que os super-ricos globais não vão sabotar, de propósito, “o sistema económico que os criou”.
Uma Igreja que consentisse em se adaptar a esse mundo só poderia merecer o desprezo das suas vítimas e de Cristo. O Papa Francisco apostou em contrariar esse destino, votando duas vezes no número 15: nas 15 doenças da Cúria e nos 15 cardeais de comunidades católicas sem poder na Igreja e no mundo.
[1] Thomas Piketty, O Capital no séc. XXI, Temas e Debates, 2014
[2] Chrystia Freeland, Plutocratas, Temas e Debates, 2014