Crónica por Anselmo Borges
no Diário de Notícias de sábado
Anselmo Borges |
No contexto dos debates à volta da entrada ou não da Turquia na União Europeia, o escritor turco Orhan Pamuk, Nobel da Literatura de 2006, fez, na sua recente visita a Lisboa, algumas considerações sobre os valores fundamentais da Europa, que merecem atenção. Foi dizendo que a herança cultural europeia não se deve limitar à preservação dos seus monumentos, pois não pode esquecer "a preservação dos seus valores fundamentais", acrescentando que "temos de ter uma discussão séria sobre esses valores".
Pamuk não concretizou muito quanto a estes valores. Assim, talvez se deva ter em atenção o que disse, há um ano, a um jornalista colombiano, que lhe perguntou se se sentia europeu: "Não sei. Não penso nesses termos. Em primeiro lugar, sinto-me turco. E um turco tanto se sente europeu como não europeu. Acredito numa Europa que não se baseia no cristianismo, mas no Renascimento, na Modernidade, na 'Liberdade, Igualdade, Fraternidade'. Essa é a minha Europa. Acredito nessas coisas e quero fazer parte delas. Mas, se a Europa é a civilização cristã, lamento: nós, turcos, não queremos entrar."
Precisamente aqui é que está a razão por que chamo a atenção para estas declarações. De facto, a pergunta é: tudo aquilo que Pamuk quer, e bem - Renascimento, Modernidade, Liberdade, Igualdade, Fraternidade -, são pensáveis, sem terem na sua base precisamente o cristianismo?
Vou citar uma série de grandes e reputados pensadores que mostram que não, e trata-se de pensadores que são agnósticos ou ateus. Por exemplo, o historiador Antonio Piñero dizia recentemente, depois de declarar que Jesus afirmou a igualdade teológica de todas as pessoas enquanto filhas de Deus: "Esperava-se que mais tarde chegasse a igualdade social. Se compararmos o cristianismo com todas as outras religiões do mundo, vemos que essa igualdade substancial de todos os homens é o que tornou possível que com o tempo se chegasse ao Renascimento, à Revolução Francesa, ao Iluminismo e aos direitos humanos. Isto quer dizer: o Evangelho guarda, em potência, a semente dessa igualdade, que não podia ser realidade na sociedade do século I. O cristianismo está por trás, à maneira de fermento, de todos os movimentos igualitários e feministas que houve na história, embora agora o não vejamos claramente, porque o cristianismo evoluiu para humanismo. Mas esse humanismo não se vê em religiões que não sejam cristãs. Ou porventura o budismo, por si, chegou ao Iluminismo? O xintoísmo? O islão? Os poucos movimentos feministas que há nessas religiões estão inspirados na cultura ocidental. E a cultura ocidental tem como sustento a cultura cristã. Embora se trate de uma cultura cristã descrida, desclericalizada e agnóstica, culturalmente cristã."
Houve erros e tragédias, guerras, colonialismo, Cruzadas, Inquisição, no contexto do cristianismo histórico? Ninguém o pode negar. Mas é também inegável a sua influência positiva no melhor dos últimos dois milénios da história da humanidade, incluindo a actualidade. Por isso, o filósofo ateu convicto e combatente, Michel Onfray, escreve no seu Tratado de Ateologia: 'A carne ocidental é cristã. Incluindo a dos ateus, muçulmanos, deístas e agnósticos educados, criados ou instruídos na zona geográfica e ideológica judeo-cristã." O filósofo André Comte-Sponville também escreve: "Sou ateu, uma vez que não creio em nenhum deus, mas fiel, porque me reconheço como parte de determinada tradição, de determinada história e dos seus valores judeo-cristãos (ou greco-cristãos), que são os nossos."
Na sua recente obra, Sagesses d'hier et d'aujourd'hui (Sabedorias de ontem e de hoje), na qual traça a história essencial das sabedorias e filosofias ao longo dos tempos, o filósofo Luc Ferry, que foi ministro da Educação de França, dedica um grande capítulo a "Jesus e a revolução judeo-cristã". Aí se lê, logo à entrada: "Entre os séculos V e XVII, o Ocidente foi essencialmente cristão, cultural e filosoficamente cristão, de tal modo que a filosofia moderna, mesmo quando foi crítica das religiões e até resolutamente ateia, não esteve menos marcada de modo decisivo por esta herança religiosa." E dá o exemplo do idealismo alemão, acrescentando: "Assim, mesmo para os que não são crentes, o fundo de cultura judeo-cristã é omnipresente, de tal modo que é sempre indispensável interessar-se por ela e captar os seus principais traços, em ordem a compreendermo-nos a nós mesmos e compreender o mundo no qual vivemos." E, depois de apresentar características essenciais do cristianismo, raízes e herança da Europa democrática e dos direitos humanos, conclui: "Mesmo quando se é radicalmente não-crente, está-se evidentemente impregnado por esta cultura cristã que dominou a história do Ocidente, mas que não se reduziu a ele."
No Natal, o que está em festa essencial é a infinita dignidade humana, que veio ao mundo em Jesus Cristo. Boas-Festas!