A cátedra dos não crentes
e o átrio dos gentios
António Marcelino
«Era importante dar “cátedra” aos não crentes, ou seja, proporcionar-lhes espaço e tempo próprio para se exprimirem livremente e ouvirem quem bebesse do Evangelho, mais do que de regras e proibições canónicas. “Cátedra dos Não Crentes”, assim se chamou esta audaciosa iniciativa, à qual o Cardeal Martini, ele próprio, não se furtou a dar a cara no diálogo longo com Umberto Eco. Ficou a coragem em livro, também publicado em português, com o título expressivo “Em que crê quem não crê”. Pela Cátedra de Milão, uma iniciativa regular e cíclica, passaram filósofos e pensadores, ateus e agnósticos, indiferentes satisfeitos e gente ansiosa de verdade.»
Em tempos recentes e pós-conciliares, a Igreja despertou mais para os não crentes e abriu portas para o encontro respeitoso e consequente com eles. Em séculos passados, a preocupação era sobretudo com os pagãos de terras longínquas e, nesse sentido, se orientava a atividade missionária. Num ou noutro bispo, a sensibilidade a situações novas já levava a dizer, como o fez o Cardeal Cerejeira, que a missão estava às portas de Lisboa. O primeiro grito veio de França, onde se proclamava a necessidade de uma Igreja em missão e onde surgiu, entre outros, o movimento dos padres operários, desejosos de serem testemunhas do Evangelho no mundo do trabalho duro e mal pago das fábricas e dos portos marítimos. Um bispo auxiliar de Lyon, Mons. Ancel, optou ele mesmo por esse caminho de operário, durante as horas normais de trabalho de qualquer operário, reservando o fim da tarde e o serão para o trabalho episcopal. Sendo a missão dos padres operários, concreta e urgente, para acordar sonolentos e adormecidos para a evangelização à porta de casa, as instâncias romanas nunca o entenderam assim. Acabou por se abafar um sonho lindo e assim se calarem compulsivamente vozes inquietas pelas urgências do Evangelho. Paulo VI, remando contra a maré exaltada que o cercava, convidou um padre operário para pregar o seu retiro e dos membros da Cúria Romana…
Neste clima de sonhos e urgências, de insensibilidades e normas canónicas, surgiu o Concílio. Aí se dissertou, livremente, sobre os graus de pertença religiosa dos cristãos, mas, também, sobre a multidão crescente dos que, fora da Igreja, haviam montado as suas tendas, ali ao lado, sem nostalgias religiosas e sem confiança e aceitação dos caminhos em aberto. Os padres conciliares refletiram sobre o ateísmo e não ocultaram as culpas próprias, que, por vezes, mais mostravam caricaturas de Deus, que o Seu rosto aberto do amor que salva.
Os ateus e os não crentes estavam no seio das comunidades, onde também estava a Igreja a viver as dificuldades da sua conversão à missão. João XXIII rompera o círculo da indiferença para com aqueles que se iam tornando maioria, abateu muros em relação às outras confissões cristãs, e o Concílio, corajosamente, tomara decisões em relação ao diálogo com as religiões não cristãs e sobre a liberdade religiosa. Agora, só era preciso a coragem de iniciativas e de ações que mostrassem que a Igreja tomara a sério o Vaticano II. E essas iniciativas surgiram em Milão com o Cardeal Carlo Martini.
Era importante dar “cátedra” aos não crentes, ou seja, proporcionar-lhes espaço e tempo próprio para se exprimirem livremente e ouvirem quem bebesse do Evangelho, mais do que de regras e proibições canónicas. “Cátedra dos Não Crentes”, assim se chamou esta audaciosa iniciativa, à qual o Cardeal Martini, ele próprio, não se furtou a dar a cara no diálogo longo com Umberto Eco. Ficou a coragem em livro, também publicado em português, com o título expressivo “Em que crê quem não crê”. Pela Cátedra de Milão, uma iniciativa regular e cíclica, passaram filósofos e pensadores, ateus e agnósticos, indiferentes satisfeitos e gente ansiosa de verdade.
O Cardeal Ravasi, chamado para Roma para fomentar o diálogo da Igreja com a cultura, era um padre de Milão. Aí bebeu as intuições pastorais de Martini e aprendeu das suas iniciativas corajosas. Assim, dentro do seu novo encargo, lançou na Igreja o “Átrio dos Gentios”, que vem sendo acolhido, com êxito, nos diversos países da Europa. Por certo, se estende e estenderá a outros países e continentes, que vão despertando para a nova realidade das pertenças religiosas, dentro e fora do âmbito eclesial.
A iniciativa, a que não faltou aparato, teve, entre nós, a sua primeira versão em Guimarães, Capital Europeia da Cultura, e em Braga, Capital Europeia da Juventude. Duas cidades em que, para além da sua história e títulos recentes, a iniciativa se enquadra bem no mundo dos problemas e preocupações pastorais, a que o espírito da velha cristandade, que ainda por ali mantém raízes, folhas e frutos, já não pode responder.