Por António Marcelino
«Antes do Concílio, aos leigos, como membros da comunidade eclesial, apenas se referiam dois cânones e, mesmo assim, negativos e restritivos. Acrescentavam-se mais alguns sobre as formas associativas que, para os leigos, não iam além das Ordens Terceiras, Confrarias e Pias Uniões, normalmente de iniciativa de clérigos ou de ordens e congregações religiosas. Foi famosa a polémica entre canonistas quando se tratou de se ver onde “encaixar” a Ação Católica (AC). Uma voz livre e lúcida perguntou, então, se a criatividade e a inovação na Igreja estavam fechadas e se não se devia considerar a AC como uma expressão nova, que não tinha de se enquadrar nas formas tradicionais…»
Um sinal claro do sentido novo do Concílio em ordem à vida dos membros da Igreja podemos vê-lo neste caso bem significativo. O maior cânone, em extensão, do Código de Direito Canónico que vigorou até ao Vaticano II referia-se aos privilégios dos cardeais (c. 239). Para além dos casos comuns a outros membros da hierarquia e dos casos especiais de alguns cardeais romanos, são-lhes concedidos, a partir da sua “promoção no consistório”, vinte e quatro privilégios ou faculdades específicas. Ao tempo, nem todos cardeais eram bispos, mas estes eram abafados por aqueles.
Nos textos conciliares não há qualquer referência aos cardeais, e o novo Código apenas refere a sua missão de eleger o Papa e de o apoiar nos serviços centrais da Cúria Romana. Sublinha-se, porém, a instituição divina dos bispos, como membros do colégio apostólico, e da sua missão, em comunhão com o Papa, para toda a Igreja.
Porém, antes do Concílio, aos leigos, como membros da comunidade eclesial, apenas se referiam dois cânones e, mesmo assim, negativos e restritivos. Acrescentavam-se mais alguns sobre as formas associativas que, para os leigos, não iam além das Ordens Terceiras, Confrarias e Pias Uniões, normalmente de iniciativa de clérigos ou de ordens e congregações religiosas. Foi famosa a polémica entre canonistas quando se tratou de se ver onde “encaixar” a Ação Católica (AC). Uma voz livre e lúcida perguntou, então, se a criatividade e a inovação na Igreja estavam fechadas e se não se devia considerar a AC como uma expressão nova, que não tinha de se enquadrar nas formas tradicionais…
O Vaticano II traz, por igual, todos os seus membros à sua dignidade original e leva a legislação canónica à coerência das decisões conciliares. Então, não se fala mais de privilégios, mas de direitos e deveres dos batizados ou fiéis, em geral, e dos leigos, em particular. Um ar fresco e libertador em relação ao clima enquistado de tradições, que pareciam comportar o direito de se eternizarem, sem que se admitisse discussão.
Lembremos que João XXIII afirmara que o Concílio também visava a renovação da legislação. João Paulo II, ao promulgar o Código de 1983 em 25 de janeiro, recorda e sublinha que “o novo Código que hoje é publicado, exigiu necessariamente o trabalho prévio do Concílio” e que “ o novo Código, de modo algum, tem o objetivo de substituir a fé, a graça e os carismas e principalmente a caridade na vida da Igreja e dos fiéis. Pelo contrário, o seu fim é antes o de criar tal ordem na sociedade eclesial que, atribuindo a primazia ao amor, à graça e aos carismas, torne ao mesmo tempo mais fácil o seu desenvolvimento ordenado na vida, quer da sociedade eclesial, quer também na vida de cada um dos membros que dela fazem parte”. Por isso, acrescenta o Papa, “o Código deve considerar-se o instrumento indispensável para assegurar a ordem tanto na vida individual e social, como na própria atividade da Igreja”.
O tempo que hoje se dá ao conhecimento e ao estudo do Direito Canónico dos futuros padres, e mesmo dos já ordenados e em exercício ministerial, é, lamentavelmente, tão reduzido, que o desconhecimento do foi legislado é arrastado pelo desconhecimento, para muito generalizado, dos documentos e orientações conciliares.
Vale a pena dedicar um tempo aos direitos e deveres dos fiéis e dos leigos na Igreja, tal como os expressa o Vaticano II e os apresenta o Direito Canónico, para detetar as omissões que neste domínio existem, a todos os níveis, da vida eclesial. Não nos podemos esquecer, que acabou o tempo de jogar ou contar com a ignorância dos leigos. Hoje, muitos destes conhecem melhor e estão mais atualizados sobre o Concílio e outras disciplinas teológicas que muitos clérigos de todas as idades.
O tema que, em seguida, nos propomos refletir ou acorda os responsáveis para uma lacuna grave a que urge dar resposta, ou será, progressivamente, ocasião de descrédito, dado que é tão clara a orientação do Vaticano II, como inexplicável a sua falta de reconhecimento, defesa e promoção, na ação pastoral do dia a dia.