sábado, 8 de março de 2008

A ESPERANÇA MODERNA: O REINO DO HOMEM

É bem possível que Bento XVI tenha conhecido pessoalmente o filósofo Ernst Bloch em Tubinga. De qualquer modo, ao redigir a sua segunda encíclica, sobre a esperança (Spe salvi - Salvos em esperança), de certeza lembrou o grande filósofo, autor da obra filosófica mais consistente de sempre sobre esta temática - O Princípio Esperança - a enciclopédia de todas as esperanças, que, em alemão, tem 1654 páginas. E começa assim: "Quem somos? Donde vimos? O que esperamos? O que nos espera?"
De facto, a ideia de Bento XVI de que a modernidade viveu da ânsia de realizar na História o Reino de Deus sem Deus foi aprofundada por Ernst Bloch. A sua filosofia, no limite, quereria herdar esse Reino de Deus, o Sumo Bem, a Nova Jerusalém de que fala a Bíblia. Se, sendo marxista, acabou por criticar os horrores do estalinismo, foi porque esperava "o Totalmente Outro", como reserva escatológica, ainda que por força da própria Natureza. Bloch é um belo exemplo do homem simultaneamente religioso e ateu. Religioso, porque "onde há esperança, há religião". Ateu, porque não esperava a salvação vinda do Deus pessoal que cria por amor e que vem ao encontro do Homem.
Pergunta o Papa, com razão: como foi possível pensar que a mensagem de Jesus diz respeito apenas ao indivíduo e ao Além, como se a salvação definitiva implicasse o desprezo deste mundo e a esperança se reduzisse à "salvação da alma"?
Em reacção, a modernidade trouxe o Além para o aquém. Mediante a revolução científica, proclamou-se a fé no progresso, que garantiria um mundo totalmente novo, "o reino do Homem".
Na modernidade, "há duas categorias que ocupam cada vez mais o centro da ideia de progresso: razão e liberdade". Pela razão e liberdade e confiando na sua bondade intrínseca, esperou-se a realização de uma comunidade humana perfeita.
A concretização política desta esperança tinha duas etapas fundamentais.
A Revolução Francesa surgiu como projecto de instaurar este reino da razão e da liberdade de modo politicamente real. Depois da revolução burguesa de 1789, outra revolução se pôs em marcha: a proletária. Não bastavam as reformas dos pequenos passos; era precisa a revolução para se realizar o que já Kant tinha chamado o "Reino de Deus" racional. A verdade do Além desapareceu, para ser herdada no aquém. Como disse Marx, a crítica do céu deve transformar-se em crítica da terra e a crítica da teologia em crítica da política e da economia. O progresso para um mundo definitivamente bom não provém exclusivamente da ciência, mas da política, uma política com bases científicas.
Bento XVI reconhece que a promessa de Marx, graças à "agudeza" das análises e à "clara indicação dos instrumentos para a mudança radical fascinou e continua a fascinar".
Que falhou então para que a promessa marxista deixasse atrás de si, na sua concretização histórica, "uma destruição desoladora"? O seu erro consistiu em não ver que não basta solucionar a economia e em esquecer que "a liberdade é sempre liberdade, também liberdade para o mal". O seu erro foi o materialismo. O progresso científico e técnico pode desembocar, como já preveniu Kant, num "final perverso". É ambíguo e tem de ser acompanhado pelo "crescimento moral da Humanidade".
A modernidade precisa, pois, de autocrítica em diálogo com o cristianismo, mas acompanhada de uma autocrítica do próprio cristianismo e do que ele fez da esperança.
Numa obra recente, ágil, sobre O Cristo Filósofo, reflectindo sobre a revolução operada por Cristo e a sua influência ainda actual na Europa, F. Lenoir conclui: "Se, através da sua história, a religião cristã tivesse sido totalmente evangélica, se tivesse conseguido encarnar na sociedade os preceitos de Cristo, os homens não teriam certamente sentido a necessidade de retirá-los do seu contexto religioso para poder torná-los operativos. Constata-se, com efeito, ao observar o percurso do Ocidente, que o recurso à razão e ao direito se tornou necessário pelo facto da opressão exercida em primeiro lugar pelas instituições religiosas."

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