quinta-feira, 23 de março de 2006

Um artigo de António Rego

Oração, problema político Fará sentido no mundo de hoje falar de silêncio? Ou da brisa suave na qual, segundo Elias, se encontrava Deus? Não teve Ele predilecção em revelar-se na luminosidade ofuscante do relâmpago ou nos sons cavos do trovão como expressão mais sensível da Sua majestade? Na vida de cada ser humano há lugar para a queda estrondosa da cascata e para o deslizar doce do ribeiro. Por qual dos dois afinal passa melhor a energia da vida plena de que todos somos constantemente carentes? A oração pode exprimir-se em louvores e preces no esplendor dos órgãos de tubos ou na estridência retorcida do barroco triunfante. Como pode fluir na doçura austera duma melodia gregoriana. Mas não é disso que se trata. Os grandes mestres espirituais do Oriente e do Ocidente referem a necessidade dum despojamento total do eu para uma comunhão profunda com Deus. Por isso a oração litúrgica e salmódica vai muito para além duma conversa impressionista que, parecendo ser com Deus, é apenas connosco e acerca de nós. O individualismo traz ao primeiro plano as últimas emoções experimentadas que encaixam numa temática tecida de interesses secretos que nunca nos deixam sair do mesmo lugar. E assim vamos vivendo “parcialmente, juntando cuidadosamente os fragmentos”, no dizer de Eliot. Por isso a oração é sempre um tema inacabado. Comunitária mas não unívoca, plural mas com a entrega total de cada um dos seus membros. Do hinduísmo ou budismo podem chegar-nos algumas achegas técnicas para o aprofundamento do nosso ser no oceano de Deus. Mas na realidade não se trata da criação dum vácuo onde somos substituídos pelo nada e Deus por uma ideia. Trata-se dum tempo habitado pelo Espírito, onde o coração não dorme mas se eleva e entrega nos actos e palavras de Jesus. Nenhum objecto se estaca repentinamente quando vai a alta velocidade. É necessário um tempo entre o correr e o parar a fim de que o choque não desfaça o percurso do encontro com Deus. Possivelmente, ao querermos estas transições rápidas do bulício para o silêncio, da acção para a oração interior, da ansiedade para a quietude, viciamos os nossos passos de aproximação serena de Deus. E também nos perdemos na procura do lugar do Espírito quando estamos apenas em silêncio, simplesmente sem palavras. Tudo se aprende. Orar é edificar a vida sobre o próprio Deus. Isso supõe que não O procuremos reduzindo-O à nossa medida ou fazendo d’Ele “um ombro confortável onde possamos chorar à vontade”. Toda a iniciativa vem de Deus: o nosso tudo é mergulhar na Sua transcendência absoluta e na total intimidade do seu Espírito no meio de nós. Aceitando o peso do próprio mundo. O que faz com que a oração seja uma atitude política.

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