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sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Diz Jesus: Quem faz o bem, age em meu nome


Georgino Rocha

"É preciso um novo olhar e uma nova compreensão. Gente anónima faz muito bem, realiza a solidariedade activa na vizinhança e nas grandes causas da humanidade, especialmente quando se abate a tormenta fustigante. Os discípulos, que somos também nós, estão chamados a reconhecer esta onda de generosidade anónima e de a promover e iluminar com o sentido de um são humanismo redimensionado pela fé cristã."

João, o amigo de Jesus, aproxima-se d’Ele e faz uma declaração realista seguida de um pedido urgente. De facto, estava queixoso, bem como o grupo de discípulos, seus companheiros. No andar pelos caminhos da Galileia, deparam-se com o impensável: Gente estranha e desconhecida a agir em nome de Jesus e a expulsar demónios, Era demais para o seu modo normal de pensar, pois a eles estava confiado tal serviço. (Mc, 6, 6-13). Se outros o fizessem, sem andar na escola do Mestre, seriam igualados em tais práticas e privados daquilo que consideravam seu exclusivo. Por isso, havia que tomar posição: nada menos do que uma proibição formal, sem apelo nem agravo.

Marcos, autor do relato, refere em estilo claro e sem rodeios: “Mestre, nós vimos um homem a expulsar demónios em teu nome e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco”. (Mc 9, 38-48). João recorre a Jesus, porque os discípulos não tinham sido capazes de fazer valer a sua pretensão e sentiam uma certa frustração. Estavam incomodados e tecem comentários. E o exorcista anónimo continuava a exercer a sua função na prática do bem, de libertação de males diabólicos.

sábado, 8 de setembro de 2018

Os inimigos do Papa Francisco

Anselmo Borges


1. No meio desta tragédia da pedofilia do clero, que coloca a Igreja Católica numa crise sem precedentes, e quando se pode erguer a suspeita de que ela é um antro de anormais e pedófilos, parece-me justo esclarecer que, no mundo dos pedófilos, a percentagem dos padres é mínima.
Sinceramente, esta constatação não é para mim de modo algum motivo de consolação. Pelo contrário. De facto, este dado só vem confirmar que o número de crianças que sofreram e que sofrem é muitíssimo mais vasto do que aquilo que se poderia imaginar.
Depois, os abusos de menores e adultos fragilizados por parte do clero têm uma agravante terrível: as pessoas confiavam, diria que de modo incondicional, nos padres e na Igreja, e foi essa confiança que foi traída. Uma traição que envergonha os católicos. E a agravar ainda mais a situação: responsáveis, incluindo bispos e cardeais e a Cúria Romana, ocultaram e encobriram estes horrores, porque pensaram que o mais importante era defender e salvaguardar a honra e o prestígio da Igreja enquanto instituição. Evitar a todo o custo o escândalo era a palavra de ordem. Deste modo, o Evangelho foi ferido de modo brutal no seu núcleo, que é colocar a pessoa e a sua dignidade no centro, sobretudo quando se trata de vítimas inocentes. Uma catástrofe moral.
Sobre as crianças, há duas palavras essenciais de Jesus no Evangelho, que é necessário continuamente relembrar. A primeira: "Deixai vir a mim as criancinhas, porque delas é o Reino de Deus. Quem quiser entrar no Reino de Deus deve ser como elas." Elas são simples e não discriminam... A outra palavra de Jesus é terrível: "Ai de quem escandalizar uma criança, ai de quem fizer mal a uma criança. Era melhor atar-lhe a mó de um moinho ao pescoço e lançá-lo ao mar."

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Pena de morte é inadmissível, declara o Papa


O Papa Francisco declarou, para valer como norma a seguir oficialmente pela Igreja Católica, que a pena de morte é "inadmissível". Altera, desta forma, o que estava legislado no Catecismo da Igreja Católica, da responsabilidade de João Paulo II. 
Na altura, houve reações oriundas de todos os quadrantes contra a posição do Papa, mas nem assim foi corrigida tal norma, contrária, aliás, à posição da Santa Sé que, normalmente, condenava a aplicação da pena capital em diversos países. Os Papas propunham, nesses casos, a substituição da pena de morte por outra pena. 
Foram precisos 26 anos para a Igreja reconhecer que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes, por mais hediondos que fossem. Porém, mais vale tarde do que nunca.


sexta-feira, 23 de março de 2018

CINCO ANOS DE FRANCISCO E O NOVO BISPO DO PORTO

Anselmo Borges no DN 
Anselmo Borges 


1. Dá que pensar. Segundo o Código de Direito Canónico, o Papa é o homem mais poderoso, já que tem "poder ordinário, que é supremo, pleno, imediato e universal na Igreja, que pode exercer sempre livremente". No entanto, Bento XVI, que resignou, marcando com esse gesto corajoso a história do papado, veio dizer mais tarde que o Papa pode menos do que se julga. O teólogo José M. Castillo revelou recentemente que pouco tempo antes da sua renúncia uma personalidade muito importante em Roma lhe disse: "Reza pela Igreja, que está tão mal que já não pode cair mais baixo."
Os cardeais foram buscar o sucessor "ao fim do mundo", o primeiro Papa jesuíta e latino-americano da história, que escolheu como nome Francisco, indicando já aí todo um programa. Foi há cinco anos, no dia 13 de Março de 2013.
A revolução de Francisco é simples e é toda: é um Papa cristão, não porque é baptizado mas porque tenta ser discípulo de Jesus. Acredita no Evangelho como notícia boa e felicitante para ele próprio, isso mesmo: para ele próprio, em primeiro lugar. Não acredita por obrigação ou imposição exterior, histórica ou social, mas simplesmente porque é a mensagem mais humanizante e libertadora que ele conhece: Deus é amor incondicional e o seu único interesse é a alegria, a felicidade de todos os homens e mulheres e a sua plena realização na vida e na morte.

sábado, 10 de março de 2018

VOLTAR A CASA COM JESUS. O EXEMPLO DE JAIRO

Para o Dia do Pai

Reflexão de Georgino Rocha

Georgino Rocha

Jairo vive uma situação familiar aflitiva. A filha, uma adolescente de 12 anos, está gravemente doente. A esperança de cura esfumava-se cada vez mais, apesar de todos os cuidados medicinais. O pai sonha hipóteses que não resultam. Ouvindo falar que Jesus chegara à sua terra, após a travessia do mar de Tiberíades, e vendo uma numerosa multidão que o rodeava na praia, aproxima-se, cai a seus pés e diz-lhe com insistência: “A minha filhinha está a morrer. Vem e põe as mãos sobre ela para que sare e viva” (Mc 5, 23). A mulher, sua esposa e mãe da menina, ficara em casa a velar por ela, juntamente com familiares e amigos. O recurso a Jesus funciona como a última esperança e o amor não descansa enquanto não a vê, não a encontra.
Marcos, o evangelista narrador, situa este episódio no capítulo da cegueira do mundo, após o da cegueira das autoridades e antes da cegueira dos discípulos. Pretende ir desvendando a realidade de Jesus, o Filho de Deus humanizado, atento à vida e situações que a condicionam, profeta da verdade e força irradiante que brilha nos comportamentos pessoais e colectivos, amigo incondicional de todos/as, com especial desvelo pelos doentes e marginalizados pela ordem estabelecida, injusta e selectiva, discriminatória. Quem não se comove ao ver a morte chegar e não poder valer à pessoa amada, sobretudo se é familiar de sangue, se é filho/a? Jairo vive horas sofridas. A tudo se expõe e nada teme. E a sua confiança sai recompensada. E a figura do pai sai enobrecida, bem como a sua missão de cuidador solícito e a sua caminhada interior. Chega junto de Jesus por necessidade, fica por convicção, assume por amor a nova missão.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

A FAMÍLIA NASCE DE UMA BÊNÇÃO DIVINA

Bento Domingues 


«O humor não faz mal ao amor à família. Em Granada, encontrei um pequeno azulejo com estes dizeres: família só a Sagrada e, mesmo esta, na parede pendurada.»

1. Da religião da tristeza resvalou-se para a tristeza da religião. Os primeiros gestos, palavras e atitudes do Papa Francisco mostraram que era possível virar essa página: a da Igreja e a da sociedade. Não queria fazer nada sem Deus e sem os irmãos. Mas o Deus de que fala e vive não é o da tristeza e da ameaça. Os irmãos convocados não são, apenas, os praticantes dos rituais católicos.
É bem conhecido que, em muito pouco tempo, enviou ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e a todos os fiéis leigos uma convocatória para levarem o Evangelho da Alegria ao mundo actual. Inscreveu-se, deste modo, no caminho aberto por Jesus de Nazaré, assumido por João XXIII e esboçado no Vaticano II. Entretanto, o mundo mudou e está a mudar com uma velocidade estonteante.
Para Klaus Schwab, entre os muitos e diversificados desafios fascinantes que enfrentamos, o mais intenso e importante é como compreender e definir a nova revolução tecnológica, que implica nada menos do que a transformação de toda a humanidade. Estamos no início de uma revolução que alterará radicalmente a maneira como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. Na sua escala, amplitude e complexidade, o que considera ser a Quarta Revolução Industrial é diferente de tudo o que a humanidade viveu antes [1].

domingo, 31 de dezembro de 2017

Bento Domingues — Um chora, outro faz chorar

1. A inspiração do concílio Vat. II (1962-1965) foi retomada com vigor, originalidade e alegria, por um bispo argentino, em 2013. 2017 foi o ano da contestação ruidosa ao Papa Francisco, acusado, por grupos conservadores, de oito heresias! Como recusa o papel de vedeta, continua ocupado, sobretudo, com as vítimas das mil formas de pobreza e exploração de crianças, adolescentes, adultos, velhos, doentes e com as guerras que provocam mundos de refugiados. Os seus gestos não se destinam a chamar a atenção para a sua pessoa ou para a figura papal, mas sim para a degradação da Casa Comum de que todos somos responsáveis. Não se mostra fascinado por viagens triunfais. Os seus destinos são lugares e situações, onde é preciso estabelecer pontes de entendimento. Tudo isso é conhecido. Não se refugia, porém, no mundo dos grandes princípios, porque sente que uma fé que não nos sacode é uma fé que deve ser sacudida.
Na apresentação dos votos natalícios aos membros da Cúria Romana (21.12.2017), continuou o estilo já adoptado em anos anteriores, mas noutra direcção. Os meios de comunicação destacaram, apenas, uma frase que ele usou, embora não tenha sido cunhada por ele: “Fazer as reformas em Roma é como limpar a Esfinge do Egipto com uma escova de dentes.” Serve para dizer que a sua determinação encontra muitas resistências, mas não vai desistir.
Sabe que existem conluios ou pequenos clubes que representam um cancro infiltrado nos organismos eclesiásticos e, de modo particular, nas pessoas que lá trabalham. Desce ao concreto na denúncia de um outro perigo: “o dos traidores da confiança ou os que se aproveitam da maternidade da Igreja, isto é, as pessoas que são cuidadosamente seleccionadas para dar maior vigor ao corpo e à reforma, mas — não compreendendo a alçada da sua responsabilidade — deixam-se corromper pela ambição ou a vanglória e, quando delicadamente são afastadas, autodeclaram-se falsamente mártires do sistema, do ‘Papa desinformado’, da ‘velha guarda’... em vez de recitar o ‘mea culpa’. A par destas pessoas, há ainda outras que continuam a trabalhar na Cúria e às quais se concede todo o tempo para retomar o caminho certo, com a esperança de que encontrem, na paciência da Igreja, uma oportunidade para se converterem e não para se aproveitarem. Isto naturalmente sem esquecer a esmagadora maioria de pessoas fiéis que nela trabalham com louvável empenho, fidelidade, competência, dedicação e também com grande santidade”.
O Papa Francisco não está preocupado com uma Cúria de puros anjos a quem não haja nada a apontar, uma instituição exemplar para autoconsolo. Seria ficar numa reforma ad intra, numa estética organizativa. O que lhe importa é uma Igreja ad extra, de saída, de diálogo com crentes e não crentes, para chegar a todas as periferias e colocá-las, não só no centro das preocupações das Igrejas e das Religiões, mas também no centro da política mundial.

2. Um caso exemplar foi a sua recente viagem apostólica a Myanmar e ao Bangladesh, países de minoria católica, mas de grande significação na promoção do diálogo inter-religioso em condições extremamente complexas, dada a grave violação dos direitos humanos. A Amnistia Internacional considera que as autoridades de Myanmar estão a aplicar, ao povo rohingya, no Estado de Rakhine, um sistema comparável ao apartheid, descrito como uma “prisão a céu aberto”.
No avião de regresso, foi questionado sobre todos os passos desse percurso. O mais importante era a questão da situação do povo rohingya. Uma jornalista perguntou-lhe o que tinha sentido no encontro com esses exilados no Bangladesh.
Resposta do Papa: “Aquilo não estava programado assim. [...] Depois de muitos contactos, inclusive com o governo, com a Cáritas, o governo permitiu a viagem destes que vieram ontem. [...] Aquilo que o Bangladesh faz por eles é estupendo, é um exemplo de acolhimento. Um país pequeno, pobre, que recebeu 700 mil refugiados...”
“Vinham cheios de medo, não sabiam que fazer. Alguém lhes dissera: ‘Cumprimentais o Papa, não dizeis nada.’ [...] Chegou o momento de eles virem cumprimentar-me. Em fila indiana: já não gostei disto, um atrás do outro. O pior é que, imediatamente, queriam expulsá-los do palco. Nesse momento, irritei-me e levantei um pouco a voz — sou pecador — e repeti muitas vezes a palavra ‘respeito’, respeito! Fiz parar a evacuação e eles ficaram lá. Em seguida, depois de os ouvir um a um com a ajuda do intérprete que falava a língua deles, comecei a sentir algo dentro de mim: ‘Não posso deixá-los ir embora, sem dizer uma palavra’; e pedi o microfone. E comecei a falar... Não me lembro do que disse. Sei que, a dada altura, pedi perdão. Penso que duas vezes, não me lembro.”
“Entretanto, a sua pergunta é: ‘Que senti.’ Naquele momento, eu chorava. Fazia de modo que não se visse. Eles choravam também. Depois pensei que estávamos num encontro inter-religioso, mas os líderes das outras tradições religiosas estavam distantes. [Então disse:] ‘Vinde também vós; estes rohingya são de todos nós.’ E eles cumprimentaram. Eu não sabia o que dizer mais, porque fixava-os, cumprimentava-os... Veio-me este pensamento: ‘Todos nós, líderes religiosos, já falámos. Peço a um de vós que faça uma oração, um do vosso grupo.’ Penso que foi um imã, um ‘clérigo’ da sua religião, que fez aquela oração e eles também rezaram ali connosco. Ao ver todo o caminho percorrido, senti que a mensagem tinha chegado. Não sei se respondi à sua pergunta. Uma parte estava programada, mas a maior parte saiu espontaneamente.”

3. O Papa Francisco chorou com aqueles exilados. Por desgraça, ensinaram a Donald Trump a oração de S. Francisco ao contrário: onde houver paz, que eu leve a guerra; onde houver amor, que eu leve o ódio; onde houver perdão, que eu leve a ofensa; onde houver a união, que eu leve a discórdia; onde houver a verdade, que eu leve o erro, a mentira; onde houver esperança, que eu leve o desespero; onde houver alegria, que eu leve a tristeza; onde houver luz, que eu leve as trevas.
D. Trump parece ter uma paixão especial pelo caos. Sem a promoção da desordem mundial, sem fazer sofrer, sem fazer chorar, não sabe o que fazer como Presidente dos EUA, um cego guia de muitos cegos.
Não vale a pena diabolizar este senhor da guerra e do comércio das armas. É preferível que todos os cristãos, fundamentalistas ou não, o saibam ajudar a descobrir a verdadeira oração de S. Francisco: onde houver guerra, que eu leve a paz. É muito melhor para todos!
Bom Ano!

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Georgino Rocha — Vós sois todos irmãos

Carta de São Paulo aos cristãos de Tessalónica


Jesus, perante a atitude dos fariseus, endurece o discurso. Deixa as parábolas, as perguntas pedagógicas, as respostas provocantes. Adopta um estilo directo. Dirige-se às pessoas, aos líderes do povo, aos mestres da Lei e oficiantes do culto. E faz um relato das suas principais atitudes para, em contraste, deixar claro aos discípulos como se hão-de comportar na nova comunidade que vai surgir.

Mateus organiza o discurso em duas partes: a primeira está centrada na denúncia da hipocrisia dos actuais responsáveis, ali representados; a segunda focaliza-se em três advertências que descrevem o estilo de vida anunciado por Jesus. (Mt 23, 1-12). E projecta a sua luz nas comunidades cristãs locais e na Igreja universal de todos os tempos. Luz que brilha com nova intensidade no modo de ser e de agir do Papa Francisco e de muitos outros. Oxalá que também em nós!

A denúncia é contundente: “Não os imiteis”. Dizem e não fazem. Impõem fardos aos outros e não os carregam. Gostam do espavento e da adulação. Puxam por títulos e honrarias. Tudo a encher o olho, mas o coração tem outros amores. Não seja assim entre vós. Apesar disso, Jesus aconselha a ouvir os seus ensinamentos, a observar o que prescrevem. Manifesta o respeito por quem se senta na cátedra de Moisés ou seja tem a responsabilidade de transmitir ao povo fielmente a mensagem bíblica, apesar da fragilidade.

A coerência de Jesus é clara. Mas a denúncia é mais eloquente e constitui espelho polido de quem sabe umas coisas e faz outras: apreciar a verdade e viver na mentira, conhecer o valor da assembleia dominical e não tomar parte na celebração da missa ou saber que é preciso comungar dignamente e não se importar com o estado da sua consciência, rectamente formada. O risco é, como adverte São Paulo, assinar o decreto da própria condenação. (I Cor. 11, 29).

O estilo da comunidade dos discípulos de Jesus contrasta radicalmente com o dos fariseus. “Sois todos irmãos”, declara o Mestre em tom solene. Para sempre. O que vai além disto é lixo que corrói o melhor da novidade cristã. A história, mesmo recente, regista uma longa lista de elementos corrosivos. E assim lança-se o descrédito sobre a beleza da mensagem, a fraternidade humana, o caminho de liberdade, o encanto do serviço por amor, a grandeza de ser o último por opção. E surge o desabafo acusatório: “Dizem, mas não fazer”.

A radiografia das vulnerabilidades dos cristãos e suas famílias, dos movimentos e comunidades, como outrora as dos judeus destinatários da profecia de Malaquias, hoje proclamada na liturgia, tem características bem descritas pelo Papa Francisco. Enumeram-se algumas referidas aos padres: O ministério vivido como actividade funcional; o rigorismo legalista; o perigo da banalização nas celebrações sacramentais; o ritualismo rigoroso; a escassa predisposição para a oração; a distância dos pobres, a escassa maturidade afectiva, o apego ao dinheiro, e muitas outras, a par de incontáveis exemplos de doação generosa e, por vezes, heroica. “Nos escritos do Papa pode encontrar-se o melhor mapa da realidade sacerdotal que há que renovar em cada dia”. (J. Rubio Fernandez, Homilética 2017/8, p. 641).

Paulo, na 1.ª carta aos cristãos de Tessalónica, mostra uma comunidade que vive o estilo novo preconizado por Jesus. A mãe que cuida dos filhos, em família, é escolhida para exemplo a imitar entre os cristãos: os que desempenham os diversos ministérios e serviços; e os que têm autoridade e os outros cristãos. “Pela viva afeição que vos dedicamos, desejaríamos partilhar convosco, não só o Evangelho, mas a própria vida, tão caros vos tínheis tornado para nós”, diz o autor da carta em comovente e entranhada relação de amor.

O contraste com a atitude dos fariseus é radical. Paulo vive o ensinamento de Jesus, sem restrições. A novidade cristã começa a brilhar e quer irradiar no mundo. Também hoje. E surgem notas típicas que nos ajudam a reacender a esperança. De acordo com os textos deste domingo, são de realçar as seguintes.

A primeira diz respeito à delicadeza de relação entre as pessoas e ao espírito de serviço das instituições eclesiais num mundo em que predomina o anonimato e a burocracia, a senha e a lista de espera. Os responsáveis pastorais, padres e leigos, estão chamados a fazer, pelo exemplo, o contraponto a esta engrenagem, a aquecer e libertar tantos corações tolhidos pelas circunstâncias e amarrados pelas normas.

A segunda está relacionada com a apresentação da mensagem. Em linguagem acessível, leve e apelativa. Ela é verdadeiramente a boa nova do Senhor para o seu povo. Convém evitar tudo o que possa desviar esta centralidade ou enfraquecer a sua frescura e atracção. Não tem cabimento qualquer culto à personalidade do mensageiro, embora constitua o seu rosto mais visível, a voz mais próxima, a ponte mais acessível com a realidade a iluminar e a coragem a refazer.

Paulo lembra que “foi a trabalhar noite e dia que vos pregamos o Evangelho”, o que suscita a gestão do tempo, as prioridades da agenda, a coordenação de reuniões. A este propósito seria bom trazer à nossa consciência perguntas como: Que atenção damos às pessoas doentes ou idosas, aos presos e privados de companhia, aos jovens desejosos de rasgar horizontes ao futuro e aos adultos absorvidos nas teias do presente. E quem cuida dos cuidadores, tão frágeis como qualquer outra pessoa responsável. O nosso tempo é gasto como tempo de Deus?

Ontem, realizou-se a “Caminhada pela Vida”. O Papa Francisco quis associar-se e enviou uma carta pessoal aos responsáveis, cristãos e outras pessoas amigas das grandes causas da vida, em que manifesta um só desejo: Que “apareçam sempre mais homens e mulheres de boa vontade que abracem corajosamente a verdade e valor que cada ser humano tem para Deus, sustentando tal verdade com factos e razões científicas e morais num dramático apelo à razão, para se voltar ao respeito de cada vida humana”, da concepção à morte natural, “na batalha contra o aborto, eutanásia e demais atentados à vida humana”. A defesa da vida constitui um campo excelente para provarmos que somos todos irmãos.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Georgino Rocha — Admirados com a resposta de Jesus. Aprecia!


A figura e a inscrição na moeda que os fariseus mostram a Jesus constituem o ponto de partida para o ensinamento que o Evangelho de hoje nos transmite. (Mt 22, 15-22). As autoridades queriam desforra pelos desafios que as atitudes de Jesus lhes lançavam. Haviam tentado apanhá-lo já em alguma questão acusatória. Agora colocam-lhe a pergunta envenenada: “É lícito pagar o imposto a César ou não?”. São seus porta-vozes alguns fariseus e outros partidários de Herodes, aliados de circunstância para a armadilha dar resultado.

E têm tudo bem pensado. Procuram captar a benevolência de Jesus, elogiando-o com menções honrosas verificáveis: Sabemos que és verdadeiro, ensinas o caminho de Deus, não fazes acepção de pessoas porque vais para além das aparências. Dir-se-ia que para começar não havia melhor entrada. Mas palavras são palavras que podem esconder a realidade. E esta era a intenção dos “inocentes louvaminhas”, intenção que Mateus, o narrador do relato, apresenta de modo claro: Os fariseus fizeram um plano para apanhar Jesus.

Plano bem urdido, temos de reconhecer. Logicamente qualquer resposta seria comprometedora. Se Jesus dissesse: Não se deve pagar o imposto, seria acusado de subversivo; pelo contrário; se concordasse com o pagamento, não sintonizava com os gemidos do povo subjugado pelas forças do Império Romano. De qualquer modo, ficava sempre mal visto e com provas condenatórias. Que momento delicado vive Jesus. E tem de tomar uma decisão urgente. Que terá sentido no seu coração apertado? Que critérios se podem descortinar na sua atitude? Ela vai ser desconcertante e os seus adversários ficam espantados. De admiradores “louvaminhas”, passam a cúmplices acusados, de homens verdadeiros a hipócritas denunciados, de tentadores disfarçados a gente desmascarada. E para cúmulo, diríamos com humor, a sua reacção a este “tratamento de excelência” é de admiração e não de confusão, como seria normal.

“Mostrai-me a moeda do imposto. De quem é a figuira e a inscrição?”. “De César”, dizem. E Jesus olhando a efigie do imperador, responde: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. E eles ficam admirados. E nem era para menos. Como podiam fazer-lhe qualquer acusação? A sabedoria triunfa sobre a artimanha e a verdade ilumina não apenas a relação entre o poder civil e a autoridade religiosa, como alguns chegam a pensar, mas o rosto de Deus que deixa a sua imagem e semelhança no ser humano, homem e mulher, o reflexo da sua beleza no santuário da consciência pessoal, os vestígios da sua impressão digital nas criaturas e na criação. O cunhar moeda, o pagar impostos, o regime fiscal e tudo o que se liga com esta rede deve estar em consonância com aquela verdade primeira, e, sendo justos, isto é servindo o bem comum ou, pelo menos da maioria necessitada, tornam-se obrigatórios moralmente, e os prevaricadores, incluindo a própria autoridade que os estabeleceu, são passíveis de penalização legal.

Em comentário a este episódio, afirma Frei Raimundo de Oliveira, op: “O imposto era o sinal da dominação romana; os fariseus rejeitavam-na, mas os partidários de Herodes aceitavam-na. Se Jesus responde «sim», os fariseus desacreditá-Lo-iam diante do povo; se diz «não», os partidários de Herodes poderão acusá-lo de subversão. Mas Jesus não discute a questão do imposto. Ele só se preocupa com o povo: A moeda é «de César», mas o povo é «de Deus». O imposto só é justo quando reverte em benefício do bem comum. Jesus condena a transformação do povo em mercadoria que enriquece e fortalece tanto a dominação interna como a estrangeira”. (Bíblia Pastoral, Ed. São Paulo Lisboa 1993, p. 1380, em nota de roda-pé). 

“Dar a Deus o que é de Deus” é consigna para todo o sempre porque o homem realizar-se-á no seu melhor: ama sem acepção de pessoas nem fronteiras de tempo; vive e convive amigavelmente com todos os humanos e com respeito pela criação inteira; situa-se na história como agente responsável na escuta dos gemidos das criaturas oprimidas e na sua libertação integral; aspira a que os direitos básicos sejam assegurados a todos, designadamente o da dignidade, da alimentação, do vestuário, da saúde e de tantos outros. O contrário será o drama da humanidade, sempre possível!

“Dar a Deus o que é de Deus” é ver respeitada a liberdade de consciência e poder expressá-la pessoalmente e de forma associada, na rua e nos templos, dentro de um quadro legal que facilite a harmonia de cidadãos que vivem numa sociedade plural. É sentir-se reconhecido nesta relação com a fonte original de todos os bens e ver facilitada, mediante a criação de condições favoráveis, a transmissão dos valores correspondentes a educação nas famílias, nas escolas de serviço público, na comunicação social.

“Dar a Deus o que é de Deus” é dar largas ao coração que exulta de alegria e convida a terra inteira a associar-se a este louvor, é publicar entre as nações as suas maravilhas, é anunciar a todos os povos a novidade do amor revigorante que o Senhor nos tem. O salmista da liturgia de hoje convida-nos a alargar horizontes.

Hoje é o Dia Mundial das Missões. O Papa Francisco dirige-nos uma mensagem e um veemente apelo: “A missão da Igreja, destinada a todos os homens de boa vontade, funda-se sobre o poder transformador do Evangelho. Este é uma Boa Nova portadora duma alegria contagiante, porque contém e oferece uma vida nova: a vida de Cristo ressuscitado, o qual, comunicando o seu Espírito vivificador, torna-Se para nós Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14, 6)… Promovido pela Obra da Propagação da Fé, o Dia Mundial das Missões é a ocasião propícia para o coração missionário das comunidades cristãs participar, com a oração, com o testemunho da vida e com a comunhão dos bens, na resposta às graves e vastas necessidades da evangelização… Que a Virgem nos ajude a dizer o nosso «sim» à urgência de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus no nosso tempo; nos obtenha um novo ardor de ressuscitados para levar, a todos, o Evangelho da vida que vence a morte; interceda por nós, a fim de podermos ter uma santa ousadia de procurar novos caminhos para que chegue a todos o dom da salvação”.

domingo, 8 de outubro de 2017

Bento Domingues — Tranquilizar ou desassossegar Fátima? (2)



1. Um amigo, depois de ler o meu texto do domingo passado, pediu-me para deixar Fátima em paz. Depois da intoxicação mediática em torno do centenário, é saudável deixar arrefecer essas alucinações. Lembrei-lhe que ainda não se fez uma avaliação deste ano, pois ainda estão em curso preparações de novos congressos. A avaliação que já deveria ter sido feita é a da vinda do Papa Francisco a Fátima.
Paulo VI foi o primeiro Papa que veio a Fátima em circunstâncias que já foram analisadas de diversos pontos de vista. João Paulo II foi à Cova da Iria mais do que uma vez. Bento XVI presidiu à peregrinação de 12 e 13 de Maio de 2010. Como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé já tinha serenado, do ponto de vista teológico, o empirismo que dominava a discussão sobre as aparições/visões.
O Papa Francisco veio como peregrino, a 12 e 13 de Maio 2017. Não trouxe uma rosa de ouro, não foi agredido nem miraculado em Fátima, não se ocupou com as narrativas sobre o inferno, o purgatório, a Rússia e a devoção dos primeiros sábados. Não teve de fazer nenhuma das consagrações pedidas à Lúcia por N. Senhora. As consagrações que Ela exigiu, tantas vezes ensaiadas, já estavam finalmente aprovadas. Também não havia mais nenhum segredo a revelar. A devoção ao rosário, em 1917, já tinha séculos. A canonização da Jacinta e do Francisco tanto poderiam ter sido feitas na Cova da Iria como na Praça de S. Pedro. Então não veio cá fazer nada?
Em duas breves homilias virou tudo do avesso. Em Fátima, a grande preocupação eram os sofrimentos de Deus, dos corações de Jesus e de Maria por causa dos nossos pecados. Era preciso multiplicar os sacrifícios para reparar o Céu ofendido. O Papa conhecia esse mundo que não é o dele. De que se lembrou? Escolheu, das várias narrativas locais, uma que lhe permitiu introduzir um novo horizonte. “Não vês tanta estrada, tantos caminhos e campos cheios de gente, a chorar com fome, e não tem nada para comer? E o Santo Padre numa Igreja, diante do Imaculado Coração de Maria, a rezar? E tanta gente a rezar com ele?”
Voltou-se, então, para os seus companheiros de peregrinação: “Irmãos e irmãs, obrigado por me terem acompanhado! Não podia deixar de vir aqui venerar a Virgem Mãe e confiar-lhe os seus filhos e filhas. Sob o seu manto, não se perdem; dos seus braços, virá a esperança e a paz que necessitam e que suplico para todos os meus irmãos no Baptismo e em humanidade, de modo especial para os doentes e pessoas com deficiência, os presos e desempregados, os pobres e abandonados.”
Não se pode confundir esta passagem com mais uma beatice mariana. Bergoglio desvia o olhar dos peregrinos para a terra de todos os irmãos no Baptismo que envolve católicos, protestantes, membros das Igrejas Orientais e todos os que se reconhecem no Espírito de Jesus Cristo. Não são apenas os que vão a Fátima! Mas não fica por aí. Quem reconhecesse como irmãos apenas os que se dizem cristãos era um traidor ao Evangelho, um anti-ecuménico. Por isso, o Papa acrescenta: e de todos os irmãos em humanidade! Este universalismo podia ficar numa abstracção. Mas ele concretiza: os nossos irmãos em humanidade que mais precisam de cuidados especiais são os doentes e pessoas com deficiência, os presos e desempregados, os pobres e abandonados.
Importa meditar nesta redobrada tentativa de evangelizar a chamada espiritualidade de Fátima. Muito se repetiu que Fátima não era mais do que o Evangelho. Essa repetição servia, precisamente, para o esquecer. A peregrinação do Papa Francisco foi intencionalmente missionária: procurar evangelizar Fátima, para que ela se transforme num foco de evangelização. Repare-se neste texto de antologia:
“Queridos irmãos, rezamos a Deus com a esperança de que nos escutem os homens e dirigimo-nos aos homens com a certeza de que é Deus quem nos vale. Pois Ele criou-nos como uma esperança para os outros, uma esperança real e realizável segundo o estado de vida de cada um. Ao ‘pedir’ e ‘exigir’ o cumprimento dos nossos deveres de estado (carta da Irmã Lúcia, 28/II/1943), o Céu desencadeia aqui uma verdadeira mobilização geral contra esta indiferença que nos gela o coração e agrava a miopia do olhar. Não queiramos ser uma esperança abortada! A vida só pode sobreviver graças à generosidade de outra vida [...]”.
“Sob a protecção de Maria, sejamos, no mundo, sentinelas da madrugada que sabem contemplar o verdadeiro rosto de Jesus Salvador, aquele que brilha na Páscoa, e descobrir novamente o rosto jovem e belo da Igreja, que brilha quando é missionária, acolhedora, livre, fiel, pobre de meios e rica no amor.”

2. O que nunca se poderia esperar que um dia viesse a ser proclamado em Fátima, por um Papa, aconteceu numa homilia de completo desassossego das untuosas orações e invocações do costume. Maria, a subversiva do Magnificat, que Maurras agradecia que fosse cantado em latim para que ninguém o pudesse entender, apareceu, finalmente, em Fátima:
“Peregrinos com Maria... Qual Maria? Uma ‘Mestra de vida espiritual’, a primeira que seguiu Cristo pelo caminho ‘estreito’ da cruz dando-nos o exemplo, ou então uma Senhora ‘inatingível’ e, consequentemente, inimitável? A ‘Bendita por ter acreditado’ (cf. Lc 1, 42.45) sempre e em todas as circunstâncias nas palavras divinas, ou então uma ‘Santinha’ a quem se recorre para obter favores a baixo preço? A Virgem Maria do Evangelho, venerada pela Igreja orante, ou uma esboçada por sensibilidades subjectivas que A vêem segurando o braço justiceiro de Deus pronto a castigar: uma Maria melhor do que Cristo, visto como Juiz impiedoso; mais misericordiosa que o Cordeiro imolado por nós? Grande injustiça fazemos a Deus e à sua graça, quando se afirma, em primeiro lugar, que os pecados são punidos pelo seu julgamento, sem antepor — como mostra o Evangelho — que são perdoados pela sua misericórdia! Devemos antepor a misericórdia ao julgamento e, em todo o caso, o julgamento de Deus será sempre feito à luz da sua misericórdia”.

3. Como essas homilias do Papa são textos e proclamações de desassossego, o método para que fique tudo como dantes, na tranquilidade de quem desvia os olhos da terra, é preciso não as ler, não as meditar, não as propor. Fazer de conta que foram desabafos de um simples peregrino habituado a ter os olhos abertos para todas as periferias existenciais.
Este Papa é um pouco estranho. Parece não acreditar que as viagens de uma imagem peregrina de N. Senhora possam substituir uma Igreja de saída. Para ele tem de ser um hospital de campanha, pronto a socorrer os que a indiferença deixou abandonados nas valetas da vida. E para nós?

Frei Bento Domingues, no Público 

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Anselmo Borges — Francisco sobre: 3. a Igreja e a alegria



Continuo com os diálogos do Papa Francisco e de Dominique Wolton: Politique et société. Quando se fala da Igreja, pensa-se logo na instituição e nos dirigentes: papa, bispos, padres... Ora, acentua Francisco, "a Igreja somos nós todos." "Há os pecados dos dirigentes da Igreja, com falta de inteligência ou que se deixam manipular. Mas a Igreja não são os bispos, os papas e os padres. A Igreja é o povo. O Vaticano II disse: "O povo de Deus, no seu conjunto, não se engana." Se quiser conhecer a Igreja, vá a uma aldeia onde se vive a vida da Igreja. Vá a um hospital onde há tantos cristãos que vêm ajudar, leigos, irmãs... Vá a África, onde se encontram tantos missionários. Não para converter - era noutros tempos que se falava de conversão -, mas para servir."

O que é que mais o toca? "Há tanta santidade. É uma palavra que quero utilizar na Igreja hoje, mas no sentido da santidade quotidiana, nas famílias... Quando falo desta santidade ordinária, que já designei como a "classe média" da santidade..., sabe qual é a imagem que me vem ao espírito? O Angelus, de Millet. A simplicidade desses dois camponeses que rezam. Um povo que reza, um povo que peca e depois se arrepende dos seus pecados. Há uma forma de santidade oculta na Igreja. Há heróis que partem em missão. Alguns sacrificaram a sua vida. É isso que me toca mais na Igreja: a sua santidade fecunda, ordinária. Essa capacidade de tornar-se santo sem se fazer notar."

Por isso, Francisco tem medo da rigidez. "Por detrás de cada rigidez há uma incapacidade de comunicar. Pense nesses padres rígidos que têm medo da comunicação, pense nos políticos rígidos... É uma forma de fundamentalismo. Quando me aparece uma pessoa rígida, e sobretudo um jovem, digo imediatamente a mim próprio que está doente. O perigo é que procuram a segurança... Não sabem, sentem-no. Vão, portanto, procurar estruturas fortes que os defendam na vida." Temos então o tradicionalismo, o medo da novidade, do diálogo. Ignoram que a tradição, para ser viva, tem de estar em movimento. "Como cresce a tradição? Cresce como uma pessoa: pelo diálogo, que é como a amamentação para a criança. O diálogo com o mundo que nos rodeia. Se não se dialoga, não se pode crescer, fica-se fechado, pequeno, um anão. Não posso contentar-me com caminhar com palas, devo olhar e dialogar. Dialogando e escutando outra opinião, posso, como no caso da pena de morte, da tortura, da escravatura, mudar o meu ponto de vista. Sem mudar a doutrina. A doutrina cresceu com a compreensão. Isso é a base da tradição. Ao contrário, a ideologia tradicionalista tem uma fé como isto [faz o gesto das palas]: na missa, a bênção deve dar-se desta maneira, os dedos devem colocar-se deste modo, como se fazia antes... O que o Vaticano II fez com a liturgia foi algo enormíssimo. Porque abriu o culto de Deus ao povo. Agora, o povo participa." Aqui, digo eu: o cardeal Robert Sarah que não pense que vai pôr outra vez a missa em latim, com o padre de costas para o povo...

Neste contexto, põe-se a pergunta: os divorciados recasados podem comungar? "Há o que eu fiz, depois de dois sínodos: a exortação "A Alegria do Amor"... É algo claro e positivo, que alguns com tendências ultratradicionalistas combatem, dizendo que não é a verdadeira doutrina. Quanto às famílias feridas, eu digo lá que há quatro critérios: acolher, acompanhar, discernir as situações e integrar. Abre-se um caminho de comunicação. Perguntam-me: "Mas pode dar-se a comunhão aos divorciados?" Respondo: "Falai com o divorciado, falai com a divorciada, acolhei, acompanhai, integrai, discerni!" Infelizmente, nós os padres estamos habituados a normas congeladas, fixas. E ouve-se dizer: "Não podem receber a comunhão." Que não, não e não. Este tipo de proibições é o que encontramos no drama de Jesus com os fariseus. A mesma coisa!"

Neste enquadramento, porque "a misericórdia é um dos nomes de Deus - se eu não aceito que Deus é misericordioso não sou crente" -, todos os padres, incluindo os lefebvrianos, podem agora absolver o pecado do aborto. "Atenção! Isto não significa banalizar o aborto. O aborto é grave, um pecado grave. É o assassínio de um inocente. Mas se há pecado é necessário facilitar o perdão."

O cristianismo "não é uma ciência, uma moral, uma ideologia, uma ONG: o cristianismo é um encontro com uma pessoa. É a experiência da estupefacção, da maravilha espantosa de ter encontrado Deus, Jesus Cristo, é isso que me deixa estupefacto". Por isso, "não se pode ensinar a moral com preceitos como: "Não podes fazer isto, deves fazer isto, tu deves, tu não deves, tu podes, tu não podes." A moral é uma consequência do encontro com Jesus Cristo, uma consequência da fé, para nós os católicos. E para os outros a moral é uma consequência do encontro com um ideal, ou com Deus, ou consigo mesmo, mas com a melhor parte de si mesmo. A moral é sempre uma consequência". Assim, é inconcebível uma Igreja afastada das pessoas. "A Igreja de Jesus Cristo tem de estar ligada ao povo. O contrário seria fazer como alguns políticos que se interessam pelas pessoas durante as campanhas eleitorais e depois as esquecem. Para mim, a proximidade, mesmo na vida pastoral, é a chave da evangelização... Quando quero transmitir algo a alguém, devo esforçar-me por pensar que estou diante do mistério de uma outra pessoa."

Wolton: "Que palavras do seu pontificado quereria ver retidas?" Francisco: "A palavra que mais utilizo é a "alegria". Uso muitas vezes a "ternura", a "proximidade". Aos padres digo: "Por favor, sede próximos das pessoas." Aos bispos digo: "Não sejais príncipes, senhores, sede próximos das pessoas, dos padres." Também a "oração", rezar no sentido de estar diante de Deus" e fazer silêncio e meditar, no meio de uma sociedade do ruído, do "rapidão".

Anselmo Borges, no Diário de Notícias 


sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Anselmo Borges — Livros das férias (2)




Continuo com reflexões a partir do livro de Celso Alcaína Roma Veduta. Monseñor Se Desnuda, ele próprio reflectindo sobre a Igreja e o seu futuro, a partir dos oito anos passados na Cúria, concretamente na Congregação para a Doutrina da Fé.

1. O Concílio Vaticano II constituiu uma viragem e uma enorme esperança para a Igreja e para o mundo. Foi na sua sequência que, por exemplo, em 1966 acabou o Index Librorum Prohibitorum (o catálogo dos livros proibidos). Em 1967, foi criada a Comissão Teológica Internacional, que teria temas múltiplos para estudar, como: "O valor e oportunidade do dogmatismo, o primado e magistério (incluída a infalibilidade) do bispo de Roma, a colegialidade episcopal, a relação permanente entre razão e fé, o evolucionismo, a divindade de Jesus, a fundação da Igreja como sociedade hierárquica permanente, a revisão e formulação dos dogmas com especial incidência nos marianos, o valor e a interpretação da Bíblia, o valor da tradição, a transubstanciação eucarística, o sacramento da penitência, a indissolubilidade do matrimónio, o pecado original, o pluralismo teológico, o papel do laicado, o celibato obrigatório." Mas "a Cúria atemorizou-se e essas propostas caíram em saco roto". Com João Paulo II, fez-se marcha atrás, voltou-se ao centralismo romano e as condenações de teólogos contam-se às dezenas.

Na impossibilidade de reflectir sobre todas essas problemáticas, volto à questão do celibato. A sua obrigatoriedade só muito lentamente se impôs. Durante o primeiro milénio houve inclusivamente papas casados. Foi o papa Gregório VII, no século XI, que impôs ao mesmo tempo essa obrigatoriedade e o centralismo papal. Mesmo assim, foi só no Concílio de Trento, no século XVI, que foi ratificado com carácter universal, isto é, obrigatório para todos os padres, no Ocidente. Mas, de facto, com a tolerância de muitos bispos. Como ficou dito, Paulo VI empenhou-se a favor do celibato opcional, sem o conseguir. João Paulo II previu a abolição da obrigatoriedade, com estas palavras: "Sinto que acontecerá, mas que não seja eu a vê-la."

Os escândalos sucederam-se. Diz-se, por exemplo, que no Concílio de Constança (1414-1418), compareceram 700 prostitutas. Houve papas filhos de papas. "Inclusivamente depois da lei do celibato obrigatório, nos séculos XV e XVI, foram vários os papas que geraram filhos, quer já papas quer na sua condição anterior de bispos: Inocêncio III, Alexandre VI, Júlio II, Gregório XIII..." Alcaína refere que durante os seus oito anos de actividade no Vaticano foi comissário-juiz para a redução de sacerdotes ao estado laical: "Mais de mil casos passaram pelas minhas mãos", clérigos que se tinham enamorado... Há hoje mais de cem mil padres casados, que formaram família e tiveram de abandonar o sacerdócio e eu pergunto porque é que a Igreja não aproveita tantos deles, que quereriam e têm qualidades para o exercício do ministério.

Alcaína nota que os filhos de clérigos, segundo uma norma que vem da Baixa Idade Média, serão chamados sobrinhos. Neste contexto, chamo a atenção para que no passado mês de Agosto foram dadas a conhecer normas dos bispos irlandeses sobre a situação dos padres com filhos: o bem-estar da criança é primordial e a mãe deve ser respeitada, devendo o sacerdote "assumir as suas responsabilidades pessoais, legais, morais e financeiras".

2. E Francisco? O que pensa dele Alcaína?

Ao contrário de Ratzinger, Bergoglio não é "um teólogo profissional. Não tem escola teológica própria. É de esperar que não pretenda impor uma concepção enviesada do cristianismo e que fomentará o progresso teológico. Francisco transmitiu desde o princípio sinais de humildade, também doutrinal. Antepôs a acção à ideologia: o nome eloquente que escolheu, o seu respeito pelas convicções dos ouvintes, a sua simplicidade com gestos nada teatrais, a sua posição manifesta a favor de uma Igreja pobre, o seu confessado amor aos pobres, as suas alocuções nada pontificais, o seu cuidado em evitar ser chamado com títulos pomposos para lá de "bispo de Roma", o seu beijo espontâneo a uma mulher perante as câmaras, nem sapatos vermelhos nem anel em ouro nem púrpura... Tudo faz pressagiar uma primavera de esperança".

Mas o jesuíta Francisco não conseguiu reformas visíveis e fundas. Escandalizou com canonizações, algumas endogâmicas, como no caso de João Paulo II. Reconheceu milagres, que implicariam um Deus arbitrário, a favor de uns e não de outros. "Criou cardeais, em reconhecimento de um arcaico Colégio Cardinalício, historicamente desprestigiado e eclesiasticamente artificial", que impede uma eleição mais democrática do papa: não se deve esquecer que no primeiro milénio, "como no resto das Igrejas locais, era o clero (e os delegados do povo) de Roma que elegia o seu bispo" e o Papa era primus inter pares (o primeiro entre iguais). "Não subscreveu a Declaração Universal de Direitos Humanos nem outras 15 convenções da ONU na linha da mesma Declaração." Não teve força para contradizer "a misógina decisão de João Paulo II quanto ao sacerdócio feminino". Não suavizou o verticalismo centralista nas nomeações episcopais. E há outras questões essenciais para quem trabalha por uma Igreja diferente: "Jesuânica, exemplar, autêntica." Ora, dentro do âmbito das suas actuais competências, Francisco pode fazê-lo. Há aquele dito: "Potuit, voluit ergo fecit" (podia, quis e, por isso, fez). "Aparentemente, Bergoglio quer; há dúvidas se Francisco quer; legalmente, canonicamente, o Papa pode. FIAT (Faça-se)."

Aqui, digo eu: certamente, Alcaína não ignora que o Papa Francisco não pode nem quer criar cismas na Igreja. Sobretudo, há a Cúria, que ele conhece como poucos, e que, repito com o jesuíta J.I. González Faus, é responsável por mais ateus do que Marx, Nietzsche e Freud juntos.

domingo, 30 de julho de 2017

Bento Domingues — Jesus não gostava de broa? (2)


1. Vivemos, hoje, um momento de extraordinárias possibilidades na Igreja Católica e o Papa Francisco é, a muitos títulos, uma bênção mundial.
Os participantes no G20, em Hamburgo, nos dias 7 e 8 de Julho, tinham um tema: “Dar forma a um mundo interligado.” Na sua mensagem, o Bispo de Roma lembrou quatro princípios de acção, recolhidos da sabedoria multissecular, para a construção de sociedades fraternas, justas e pacíficas: o tempo é superior ao espaço; a unidade prevalece sobre o conflito; a realidade é mais importante do que a ideia; o todo é superior às partes.
Já tinha assumido essa sabedoria no seu programa pastoral Evangelii gaudium, pois a Igreja não deve aprender apenas na escola da Bíblia e das suas tradições, mas na de todos os povos e culturas, do passado e do presente. Para poder ser “mãe e mestra”, tem de ser filha e aluna atenta a todos os mundos. Antes de falar é necessário ouvir, como indica o ritual do Baptismo.
Na sua mensagem aos mais ricos e poderosos, Bergoglio abordou cada um desses temas de forma extremamente rigorosa e concreta, mas sempre com um objectivo muito preciso: dar prioridade absoluta aos pobres, aos refugiados, aos sofredores, aos deslocados e aos excluídos, sem distinção de nação, raça, religião ou cultura e rejeitar os conflitos armados.
Possibilidades semelhantes tinham sido abertas pelo Papa João XXIII, ao convocar o concílio Vaticano II (1962-1965), uma espantosa Primavera traída por algo que ainda hoje é inquietante: o adiamento da reforma das mediações concretas e a sua substituição por remendos de pano velho e irrecuperável.
A decepção criou gerações de católicos decepcionados, “não praticantes”, periféricos e um catolicismo do abandono da Eucaristia, cuja gravidade está ainda longe de ser reconhecida. Pela longa cegueira e medo de se tocar na Cúria, foi impedida a reforma radical dos ministérios ordenados que continua a ser uma urgência adiada.
Foi-se pronto a impedir a ordenação das mulheres, invocando razões teológicas ininteligíveis. Para os homens casados, dizem que não há nenhum obstáculo teológico, mas o resultado é o mesmo. Como o actual modelo de acesso a esses serviços está falido, os dons ministeriais de serviço sacramental da Igreja não têm quem os possa receber.
Em várias dioceses, o clero das Congregações religiosas vai procurando tapar o sol com a peneira, traindo a sua vocação específica. Certas Congregações femininas, multiplicando retiros e cursos de formação, ao rejeitarem as transformações das suas estruturas, estão em progressiva e inútil agonia.

2. A Igreja Católica não pode prescindir das mediações sacramentais e litúrgicas. Fazem parte das celebrações existenciais da Fé. O modo como celebra não é indiferente. Celebrar mal é pior do que não celebrar: fomenta alergias inúteis. O domingo, na linguagem cristã, não pertence ao “fim de semana”, mas à grande festa do seu primeiro dia. Nasceu como possibilidade, muito bela, de rejuvenescer e transformar a vida, resistindo às tendências negativistas e niilistas.
A religião ética é uma forma de resistência à alienação e ao pessimismo. É um protesto para abrir caminhos na floresta dos enganos. Por isso, a experiência da finitude é caminho de abertura à transcendência, que se exprime, sobretudo, na linguagem simbólica de gestos e palavras.

3. Tomás de Aquino, na primeira fase do seu ensino, estava marcado por uma concepção dos Sacramentos como causas da graça. Na Suma Teológica abandonou essa perspectiva e situou os Sacramentos no mundo da simbologia. São essencialmente signos, sensíveis, terrestres da graça actuante de Cristo. É uma mudança radical que ainda hoje está longe de ser assumida em todas as consequências. O primeiro cuidado com a sua celebração não é a fidelidade às rúbricas de um ritual, mas a realização de uma festa significativa da Fé pelo envolvimento de todos os participantes, mulheres e homens, grandes e pequenos.
É tríplice a sua significação: remetem para todo o percurso de Jesus Cristo até ao dom do Espírito Santo à Igreja, mas não são uma romagem de saudade, não fixam a comunidade naquele tempo. Cristo ressuscitado não pode ser amputado da sua vida terrestre, mas é celebrado como presença actual e transformante da comunidade, abrindo-lhe um futuro de esperança.
Seria engano ver nesta estrutura simbólica — causam o que significam — apenas actos de Cristo, como um automatismo ritual. Não se pode esquecer a correlação íntima entre essa actuação e as experiências de vida da assembleia celebrante. Estas são essenciais ao acontecimento sacramental e precisam de ter expressão pública.
Dizer que foi Cristo que instituiu os sacramentos e, especialmente, a Eucaristia, não se pode pensar como se ainda estivéssemos no mundo cultural da época de Jesus. Pensar dessa maneira é amputar o cristianismo da sua significação universal e da sua capacidade de inculturação em todos os povos e culturas. Quem, no seu perfeito juízo, pode hoje supor que na chamada celebração da última Ceia, Jesus tenha dito: fazei isto em memória de mim, mas só com pão de trigo, ázimo e a bebida só pode ser vinho?
Dir-se-á que hoje os comerciantes do trigo podem assegurar esse cereal em qualquer parte do mundo. Não tenho dúvidas. Todos sabemos das imposições culinárias da grande indústria. Não me parece que seja essa a missão da Igreja.
A simbólica da Eucaristia é a mesa partilhada, por isso, quando se convida alguém para jantar não se lhe pode dizer: vem, mas não comas.
Uma das grandes tarefas das Igrejas locais consiste em exprimir a identidade da Fé cristã nas linguagens das suas culturas.
Sarah, com as suas exigências culinárias, mesmo com risco para a saúde, anulou a simbólica essencial da Eucaristia, como mesa cristã de todos os povos. A base dos Sacramentos é terrestre, é sensível, mas é a sua tríplice significação do mistério cristão que mais conta. O cardeal atirou fora a simbologia e ficou, apenas, com as coisas, retirou-se da sacramentalidade.
Não sei se Jesus gostava ou não de broa. Talvez até nem soubesse que existia. Mas imaginar que ficaria atrapalhado, nos lugares em que o trigo não é o principal alimento, em celebrar com broa ou com arroz é duvidar do poder de Cristo.

Sou levemente alérgico a estas crónicas durante o mês de Agosto. Até Setembro

Frei Bento Domingues, no PÚBLICO 

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Anselmo Borges — António Nobre e Francisco


António Nobre escreveu um poema. Dedicado ao Papa Leão XIII. É comovente e foi seleccionado por Eugénio de Andrade para a sua Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Diz assim:

"Ó Padre Santo! Meu Irmão! Ó meu amigo/Do velho mundo antigo/- Dá-me consolação, e prova-me que há Deus;/Resolve-me a equação estrelada dos céus;/Admite-me ao Conselho amigo dos Cardeais;/Deixa-me ler, também, na letra dos missais!/Muito que te contar! Não conheces o mundo?/Nunca desceste, Padre!, a esse poço profundo?/Metido nessa cela ideal do Vaticano,/Há quanto tempo tu não vês o Oceano?/Nunca viste um bordel! Sabes o que é a desgraça?/Ouviste acaso o "pschut"! delas, a quem passa?/Sabes que existem, dize, as casas de penhores?/No teu palácio, há, porventura, amores?/Viste passar, acaso, um bêbado na rua?/Já viste o efeito que na lama imprime a lua?/Ouve: tiveste já torturas de dinheiro?/Já viste um brigue no mar? Já viste um marinheiro?/Que ideia fazes das crenças dos rapazes?/Já viste alguém novo, Padre? Que ideia fazes,/Santo Leão, do Boulevard dos Italianos?/Recordas com saudade os teus vinte e três anos?/Ó Leão XIII! Ó Poeta, essa é a minha idade!,/Como tu vês, estou na flor da mocidade!,/Ainda não contei metade de cinquenta./Começa-me a nascer a barba, o mundo tenta/A minha alma: ah, como é lindo esse Demónio!/Nasci em Portugal, chamo-me António;/(...) Em pequenino, Padre, ajoelhado na cama,/A erguer as mãos a Deus, ensinou-me a minha ama:/Sabia de cor mil e trezentas orações,/Mas tudo esqueci no mundo aos trambolhões.../Nossa Senhora te dirá se isto é assim!/ - O que há-de ser de mim?"

Se fosse agora, com o Papa Francisco, António Nobre não se queixaria tanto. Porque Francisco não é o Papa da distância, mas da proximidade. Ele não é prisioneiro dentro do Vaticano: ele vai à rua, fala com os sem-abrigo, abraça os doentes e que "se não deve ter medo da ternura", ele sabe de bordéis e ainda recentemente visitou uma casa de antigas prostitutas, já viu bêbados e amparou-os, tem experiência do que é ter torturas de dinheiro e, por isso, ergue-se contra o cancro da corrupção e prega contra a injustiça e o ídolo do dinheiro, sabe das crenças dos rapazes e das raparigas e das suas lutas e demónios e tem e pede aos padres e bispos compreensão para eles e que a confissão não seja "uma câmara de tortura", vê oceanos nas suas viagens pelo mundo em busca do diálogo e da paz entre os povos...

Francisco também sabe das dificuldades da fé. Porque a Igreja anda, como dizia o cardeal Carlo Martini, com duzentos anos de atraso, e a teologia tem sido marginalizada, calada e perseguida. Ele conhece concretamente o que o seu companheiro jesuíta José María Castillo escreveu recentemente sobre o tema: de como as ciências e as tecnologias avançam com novos conhecimentos enquanto a teologia fica entregue ao desalento, tolhida, cada vez com menos interesse, incapaz de responder às novas perguntas, empenhada como está em manter, como intocáveis, alegadas "verdades" que não sabe como é possível continuar a defender. E dá exemplos: "Como podemos continuar a falar de Deus, com a segurança com que dizemos o que Ele pensa e quer, sabendo que Deus é o Transcendente, não estando portanto ao nosso alcance? Como é possível falar de Deus sem saber exactamente o que dizemos? Como se pode assegurar que "por um homem entrou o pecado no mundo"? Vamos continuar a apresentar como verdades centrais da nossa fé o que na realidade são mitos que têm mais de quatro mil anos? Com que argumentos se pode assegurar que o pecado de Adão e a redenção desse pecado são verdades centrais da nossa fé? Como é possível defender que a morte de Cristo foi um "sacrifício ritual" de que Deus precisou para nos perdoar as nossas faltas e salvar-nos? Como se pode dizer que o sofrimento, a desgraça, a dor e a morte são "bênçãos" que Deus nos manda? Porque continuamos a manter rituais litúrgicos que têm mais de 1500 anos e que ninguém entende nem sabe por que razão se continua a impor às pessoas? É mesmo verdade que acreditamos no que nos é dito em alguns sermões sobre a morte, o purgatório e o inferno?" E a lista de perguntas sobre doutrinas estranhas e contraditórias poderia continuar. E as igrejas esvaziam-se. E uma das razões é uma teologia paupérrima, tolhida pelo medo.

Aí está uma das razões por que Francisco tem tantos adversários e mesmo inimigos. E ele o que faz? Para abrir o caminho de uma teologia aberta, depôs o cardeal G. Müller de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e substituiu-o pelo jesuíta L. Ladaria. Continua a ir em frente, procurando pôr em marcha o Evangelho a favor da humanidade. E socorre-se também do bom humor, e todos os dias reza a oração do bom humor, oração de São Thomas More, o autor de A Utopia, que não se esqueceu de levar a gorjeta para o carrasco que ia decapitá-lo. Francisco recomendou-a também aos membros da Cúria Romana, sobretudo aos díscolos:

"Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para digerir./ Dá-me um corpo saudável e o bom humor necessário para mantê-lo./Dá-me uma alma simples que sabe valorizar tudo o que é bom/e que não se amedronta facilmente diante do mal,/mas, pelo contrário, encontra os meios para voltar a colocar as coisas no seu lugar./Concede-me, Senhor, uma alma/que não conhece o tédio, /os resmungos,/os suspiros/ e as lamentações,/nem o excesso de stress por causa desse estorvo chamado "Eu"./Dá-me, Senhor, o sentido do bom humor./Concede-me a graça de ser capaz de uma boa piada, uma boa piada para descobrir na vida um pouco de alegria /e poder partilhá-la com os outros./Ámen."

Anselmo Borges no Diário de Notícias de hoje 

domingo, 2 de julho de 2017

Bento Domingues — Nem Lutero nem Francisco


«O que mais me espanta não são os 500 anos de ausência de Lutero em Portugal. O que me desconsola é a nossa resistência passiva à reforma, muito mais abrangente e global, desencadeada pelo Papa Francisco, o segundo Papa dos tempos modernos, verdadeiramente católico, isto é, de abertura universal. O primeiro foi João XXIII.»

1. No passado dia 21, o Grémio Literário evocou os 500 anos “dos acontecimentos que abalaram a Europa na sequência do acto simbólico que marcou o início do movimento religioso e cultural na Cristandade e que ficou registado na História sob a designação de Reforma. Foi a 31 de Outubro de 1517 que Martinho Lutero afixou nas portas da igreja de Wittenberg as suas 95 famosas teses, que acabaram por conduzir a um cisma profundo e durável na Igreja de Roma”.
Segundo a tradição, isto aconteceu na véspera da festa de Todos os Santos. A dramatização desta data deu origem à Festa da Reforma, embora a sua fundamentação histórica seja questionada, dado que a narrativa é de Melâncton, em 1546, depois da morte de Lutero.
O V Centenário da Reforma já foi inaugurado, na Alemanha, em 2008, como a Década de Lutero.
É uma ocasião para os historiadores da cultura, da política e da teologia reexaminarem cinco séculos de história extremamente complexa e, talvez, colherem algumas lições para o nosso presente de renovados fanatismos políticos e religiosos
A Ausência de Lutero em Portugal foi o título da minha intervenção. Portugal não é a pátria de Lutero e os portugueses também não o puderam acolher no séc. XVI, nem com discernimento nem sem discernimento. Além disso, e não só em Portugal, ser bom católico era dizer mal dos protestantes e ser bom protestante era dizer mal dos papistas.
Para assinalar os 450 anos da sua morte, o Centro de Estudos de Teologia/Ciência das Religiões, da U. Lusófona, realizou um importante colóquio, cujos contributos já estão publicados. Merecem reedição. Tentei, no prefácio, explicar as razões da ausência de Lutero entre nós [1].
O P. Carreira das Neves, com o seu Lutero. Palavra e Fé, tenta preencher essa lacuna: “O tema que vamos tratar tem sido objecto de milhares de livros, artigos e pronunciamentos religiosos, políticos, sociológicos, filosóficos. Só estranha o facto de nenhum autor português ter assumido, nestes 500 anos que nos separam de Lutero, a responsabilidade de escrever sobre esta pessoa que está na origem do protestantismo luterano e das igrejas evangélicas.” [2]
Ausente em Portugal, teve mais sorte no Brasil, onde já foram publicados 12 volumes das Obras Seleccionadas de Martinho Lutero [3]. 
O luterano Artur Villares pergunta: “Cinco séculos depois, com a poeira da História a assentar e as polémicas, ódios e extremismos definitivamente encerrados nas prateleiras da apologética de todos os participantes, o que significa, para o homem de hoje, o nome de Martinho Lutero? Para muitos nada; para outros tantos, um mero revoltado, um rebelde, que destruiu a unidade da Igreja do Ocidente; para outros ainda, uma figura histórica, de assinalável grandeza, um dos construtores do mundo moderno. E para os luteranos? Naturalmente que a herança de Lutero é imensa: foi o pai do alemão moderno; foi o autor de uma vasta obra teológica, que hoje abarca cerca de cem volumes; dignificou o casamento, dando ele próprio o exemplo, ao casar em 1525 com a ex-freira Catarina de Bora, de quem teve seis filhos. Compôs dezenas de hinos, reestruturando o canto congregacional na Igreja. Reafirmou o sacerdócio universal de todos os crentes e introduziu o vernáculo como língua litúrgica. Inspirou grandes mestres da música, como Bach e Mendelssohn. E tudo isto, sem dúvida, foi entrando no património das igrejas após Lutero.” [4]
O dominicano Yves Congar, investigador da obra de Lutero, concluiu que ele “é um dos maiores génios religiosos de toda a História. Coloco-o no mesmo plano que Santo Agostinho, São Tomás de Aquino ou Pascal. [...] Ele repensou todo o cristianismo. Ofereceu-nos uma nova síntese, uma nova interpretação”. [5]

2. Não cabe nesta crónica apresentar todas as razões que fizeram de Lutero um ausente da nossa cultura, da cultura que se desenvolveu em diálogo com a Reforma. Frei Jerónimo de Azambuja (†1562), grande exegeta da Bíblia, declarou no Concílio de Trento que “em Portugal, graças à providência divina e aos cuidados do rei muito cristão, não se vislumbra qualquer sinal da heresia luterana que enche o mundo”. De facto, os contactos testemunhados de portugueses com Lutero foram escassos. Os métodos da Inquisição, o controlo dos livros nos portos e nas livrarias construíram adequadas barreiras de protecção contra o contágio luterano.
No século XVI, quando se queria insultar gravemente alguém, bastava chamar-lhe “Lutero”. D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga, aguentou muitas insolências de alguns cónegos, mas protestou vivamente quando o apelidaram de “Lutero”. [6]

3. Muitos passos de aproximação e de entendimento mútuo já foram dados entre católicos e luteranos. Em 1999, foi assinada a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação. O Papa Francisco, na viagem ecuménica à Suécia, entre 31 de Outubro e 1 de Novembro de 2016, no contexto da comemoração católico-luterana dos 500 anos da reforma protestante, assinou uma declaração comum com o presidente da Federação Luterana Mundial.
A fórmula Ecclesia semper reformanda é antiga. A Igreja, quando não vive em processo de contínua reforma, deforma-se. É da sua condição humana e cristã. Somos justificados pela graça de Deus e pecadores pelo mau uso da nossa liberdade. Para não envelhecer, é preciso renascer, deixar-se transformar.
O que mais me espanta não são os 500 anos de ausência de Lutero em Portugal. O que me desconsola é a nossa resistência passiva à reforma, muito mais abrangente e global, desencadeada pelo Papa Francisco, o segundo Papa dos tempos modernos, verdadeiramente católico, isto é, de abertura universal. O primeiro foi João XXIII.
A resistência à reforma dos ministérios ordenados está a privar a Igreja Católica dos serviços mínimos sacramentais às comunidades. Os padres, que são cada vez menos, tornaram-se robôs de missas, baptizados e casamentos.
Será que nas resistências às reformas de Bergoglio se esconde a aposta na 4.ª Revolução Industrial para seminários de robôs mais sofisticados? 

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Martinho Lutero. Diálogo e Modernidade, prefácio de Frei Bento Domingues, Edições Universitárias Lusófonas, 1999
[2] Pe. Carreira das Neves, Lutero. Palavra e Fé, Presença, Lisboa, 2014, p.17
[3] Responsabilidade da Comissão Interluterana de Literatura. São Leopoldo.
[4] http://igreja-luterana.pt/site/lutero-ontem-e-hoje/
[5] Cf. Pe. Carreira das Neves, Op. Cit., pp. 419-422
[6] Cf. Martinho Lutero. Diálogo e Modernidade, pp. 7-12

quarta-feira, 14 de junho de 2017

MENSAGEM DO PAPA PARA O DIA MUNDIAL DOS POBRES


«Conhecemos a grande dificuldade que há, no mundo contemporâneo, de poder identificar claramente a pobreza. E todavia esta interpela-nos todos os dias com os seus inúmeros rostos marcados pelo sofrimento, pela marginalização, pela opressão, pela violência, pelas torturas e a prisão, pela guerra, pela privação da liberdade e da dignidade, pela ignorância e pelo analfabetismo, pela emergência sanitária e pela falta de trabalho, pelo tráfico de pessoas e pela escravidão, pelo exílio e a miséria, pela migração forçada. A pobreza tem o rosto de mulheres, homens e crianças explorados para vis interesses, espezinhados pelas lógicas perversas do poder e do dinheiro. Como é impiedoso e nunca completo o elenco que se é constrangido a elaborar à vista da pobreza, fruto da injustiça social, da miséria moral, da avidez de poucos e da indiferença generalizada!»


Ler toda Mensagem do Papa Francisco

sexta-feira, 2 de junho de 2017

ABRE-TE AO ESPÍRITO QUE JESUS ENVIA

Reflexão de Georgino Rocha


Festa de Pentecostes

Jesus surpreende os discípulos trancados em casa por medo dos judeus. Encontra-os seguros, mas sem iniciativa nem esperança, paralisados. Alenta-os possivelmente a vaga recordação da promessa de regresso feita pelo Mestre, mas o drama da morte deitou tudo a perder. Serve-lhes de conforto a presença de Maria que permanece em oração confiante.
O apóstolo João começa a narrativa de hoje (Jo 20, 19-23) de forma auspiciosa: “Era a tarde do primeiro dia da semana”. Um novo presente está a germinar. O medo cede lugar à confiança. A casa à praça pública. O vazio à plenitude. A segurança à liberdade. O local ao universal. A culpa ao perdão. A retenção à missão. A transformação vai ser radical. Tudo isto e muito mais porque Jesus ressuscitado se apresenta no meio deles e os saúda de forma emblemática: “A paz esteja convosco”.

Que momento solene vivem os discípulos! A alegria inunda-lhes o coração. Os olhos contemplam o crucificado que ressuscitou e está ali presente. É Ele que lhes mostra as cicatrizes das mãos e do lado. É Ele que não os recrimina de nada, mas confia em cada um com renovada convicção. É Ele que lhes entrega o Espírito Santo como dom do Pai. É Ele que os envia em missão de paz e perdão até aos confins do mundo. Noutros encontros, Jesus indica mais facetas desta missão universal e garante que vai com eles percorrer os caminhos da vida.

O Papa Francisco convidou-nos, na segunda-feira passada, a dar resposta à pergunta: “Qual o lugar que o Espírito Santo tem em nossa vida: «Eu sou capaz de ouvi-lo? Eu sou capaz de pedir inspiração antes de tomar uma decisão ou dizer uma palavra ou fazer algo? Ou o meu coração está tranquilo, sem emoções, um coração fixo?». E prosseguiu: Se nós fizéssemos um eletrocardiograma espiritual, o resultado em muitos corações, seria linear, sem emoções. Também nos Evangelhos há essas pessoas, pensemos nos doutores da lei: acreditavam em Deus, todos sabiam os mandamentos, mas o coração estava fechado, parado, não se deixavam inquietar”. E nós?

A narração, além do realismo histórico possível, contém um símbolo de alcance permanente. Especialmente visível, no nosso tempo. Deparam-se, em contraste de provocação, o medo e a confiança, a segurança e a liberdade, a estagnação e a ousadia, o isolamento e a abertura, a exclusão dos sonhos e a inclusão de novas realidades. “O mundo chamado a pensar-se e a fazer-se de um modo novo, afirma José Losada em Homilética 2017/3, sente temor, pânico e insegurança pela complexidade do processo… Um olhar sereno ao nosso próprio interior, aos nossos espaços familiares, laborais, sociais, políticos, económicos, eclesiais, bastará para dar nome a centenas de temores… Um olhar compassivo descobrirá, imediatamente, os que estão fora, os que querem entrar e batem às portas fechadas, os que estariam dispostos a morrer para chegar até nós, mas a nossa segurança cruel não lhes permite e afoga-os no mar”.

Jesus, em consonância com o coração humano, quer outro mundo. Por isso, envia o seu Espírito aos discípulos, aos cristãos missionários. Juntos são arautos da verdade e do amor, da fortaleza e da liberdade, da igualdade e da fraternidade, da dignidade comum, do cuidado da criação e das criaturas, do desenvolvimento das capacidades humanas e das energias cósmicas. Juntos protagonizam a realização do projecto de Deus que persiste em construir a sua família integrando como filhos todos os seres humanos.

A festa do Pentecostes celebra esta maravilha inaudita. Com profunda tradição bíblica, reveste hoje o dinamismo da nova era messiânica que perdurará até ao fim dos tempos. Com particular incidência no presente, lança grandes desafios à Igreja actual e à consciência de quem deseja o bem integral da humanidade. Enunciam-se apenas alguns: falar as línguas do amor e da justiça; escutar cada ser humano no seu idioma peculiar: a sua dor e angústia, o seu desnorte e resignação; acolher a verdade, provenha de quem provier, e construir “pontes de união”; viver a comunhão no interior das suas comunidades a partir da diversidade de dons, funções e ministérios; estar atenta às fomes e sedes do mundo e contribuir, positivamente, para serem superadas; acompanhar com solicitude de mãe todos os que pretendem crescer na fé e, como discípulos fiéis, participar na assembleia dominical e na celebração da eucaristia.

Santa Teresa de Calcutá expressa, em oração singular, o sentido desta missão que a todos diz respeito. “As obras do amor são sempre obras de paz. Cada vez que partilhais o amor com outros, sentireis que a paz vos envolve a vós e a eles. E onde há paz, aí está Deus. É derramando a paz e a alegria nos corações que Deus toca a nossa vida e nos mostra o seu amor. Conduzi-me, Senhor, da morte à vida, do erro à verdade. Levai-me do desespero à esperança, do temor à confiança. Fazei-me passar do ódio ao amor, da guerra à paz. Fazei que a paz encha os corações, o nosso mundo, o nosso universo: Paz, paz, paz”. Festa de Pentecostes: Abre-te ao Espírito Santo que Jesus nos envia.