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domingo, 26 de maio de 2019

Anselmo Borges: Greve das mulheres e o feminiclericalismo


1. Escrevi aqui recentemente sobre as mulheres na Igreja, perguntando: “E se as mulheres fizessem greve na Igreja?” Uma mulher de alta estatura intelectual, espiritual e social comentou: “As igrejas ficavam vazias.” 
Nem de propósito, mulheres católicas alemãs de várias dioceses acabam de boicotar durante uma semana o seu trabalho voluntário nas igrejas e fazer greve às Missas, para protestar contra o machismo e os abusos do clero. “Deploramos os casos conhecidos e desconhecidos de abuso e o seu encobrimento e ocultação por parte dos líderes da Igreja.” E exigem “o acesso das mulheres a todos os ministérios.” Facto é que, como disse Thomas Steinberg, presidente do Conselho Central de Católicos Alemães, “sem as mulheres nada acontece” e, portanto, é necessário seguir um “caminho sinodal” por parte da Igreja, operando as mudanças que se impõem. Aliás, já antes, católicas francesas tinham denunciado o machismo na Igreja, causa dos abusos contra mulheres e crianças: “na Igreja, todo o poder está nas mãos de homens solteiros, os únicos com capacidade para decidir, governar, ensinar, e que dizem ser mediadores da relação com Deus e com o sagrado.” E insistem: “Isto não pode continuar por mais tempo. Tem que mudar.” 

2. As mulheres não podem ser discriminadas na Igreja. Jesus não as discriminou. A prova está em que teve discípulos e discípulas, como testemunham muitos passos dos Evangelhos, e Maria Madalena foi determinante no cristianismo. De facto, foi ela que, depois da crucifixão, quando tudo parecia ter sido o fim, reuniu outra vez os discípulos à volta da experiência avassaladora de fé de que o Jesus crucificado está vivo em Deus, que é Amor. Voltaram a reunir-se na fé em Jesus, o Vivente, e foram anunciar que Ele é o Messias, o enviado de Deus como “o Caminho, a Verdade e a Vida.” E testemunharam-no, dando a vida por isso. De tal modo Maria Madalena foi determinante que Santo Agostinho lhe chamou “a Apóstola dos Apóstolos”. 

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Bento Domingues - Mulheres católicas em greve



1. Quando, hoje, se discute o lugar das mulheres na Igreja católica, o que é preciso ter em conta, em primeiro lugar, é a criatividade de Jesus
As mulheres sabem que são mais de metade da Igreja católica. Dir-se-á que apenas uma minoria feminista protesta contra o silenciamento que lhes é imposto. Na Igreja, as mulheres que se caleml Não foi nenhuma mulher que o disse e quem o afirmou ainda não tinha passado inteiramente para o Novo Testamento (NT). Foi apresentado, na Universidade Católica do Porto, o livro Mulheres Diáconos. Passado - Presente - Futuro [1]. Como refere a Introdução, o livro apresenta três tópicos interligados: as mulheres diáconos tal como elas são conhecidas através de documentos históricos; o diaconado, tal como se tornou uma vocação permanente na Igreja contemporânea e aquilo que o futuro das mulheres diáconos poderia vir a ser, se a Igreja restabelecesse a sua tradição de ordenar mulheres para o diaconado. Trata-se de um esforço conjunto que pretende ajudar a Igreja a recuperar a sua tradição passada como meio de construir o seu futuro.
É sabido que o Papa João Paulo II (t 2005) nada fez para restaurar o diaconado ordenado das mulheres e o ex-PapaBento XVI seguiu-lhe o exemplo.
Só em 2016 é que o Papa Francisco começou a agir, convocando uma comissão de especialistas, seis homens e seis mulheres, para enfrentar esta questão. No final, entregaram um relatório ao Papa Francisco. O principal objectivo da comissão era estudar as mulheres diáconos na Igreja primitiva. Não está em dúvida a existência de mulheres diáconos. A questão gira em torno das suas funções.
No voo de regresso da viagem apostólica à Bulgária e à Macedónia do Norte (07.05.2019), o Papa revelou, com algum humor, que a comissão trabalhou durante quase dois anos. Eram todos diferentes, todos "rãs de lagos diferentes", todos pensavam de forma diferente, mas trabalharam juntos e chegaram a acordo até um certo ponto. Mas cada um deles tem a sua própria visão, que não concorda com a dos outros, e pararam aí como comissão. Cada um está a estudar como prosseguir. Isso é bom! Varíetas delectat.
A variedade deleita, mas não deve servir para passatempo de diletantes. As mulheres católicas, na Alemanha, já não suportavam mais conversa vazia e resolveram entrar em greve. Foi convocada para esta semana, entre sábado passado, dia 11, e o próximo, dia 18 de Maio. Deixaram lenços brancos nos bancos das Igrejas e, no exterior, nas praças e nos adros, houve celebrações, partilha, canto, mulheres vestidas de branco.
Com todas as cautelas eclesiásticas, o porta-voz da Conferência Episcopal Alemã, Mathias Kopp, em declarações a uma cadeia de TV, em Roma, ja acusou o toque. Veremos o que irão fazer...
Os bispos alemães anunciaram que vão abrir um sínodo de diálogo com alargada participação de todos e todas, sem temas tabu. Veremos, como diz o cego [2].

domingo, 28 de abril de 2019

Bento Domingues: Os esquecidos da Páscoa

«A questão da vida depois da morte é comum a muitas religiões. A expressão “ressurreição” não é a descrição de um fenómeno. É a verificação de um facto. Jesus foi morto e umas mulheres testemunham que ele está vivo e que ele continua connosco.»

1. Os profetas bíblicos foram severos com o culto e os seus rituais por causa da injustiça e da hipocrisia que eles encobriam. Jesus de Nazaré nasceu dentro da mesma tradição religiosa e foi o seu crítico mais radical. No célebre diálogo que abriu com uma mulher samaritana, junto ao poço de Jacob – judeus e samaritanos odiavam-se – atreveu-se a dispensar os respectivos lugares sagrados para a relação com Deus: Mulher, chegou o tempo em que os verdadeiros adoradores não vão procurar nem Jerusalém nem Garizim. O que o meu Pai deseja são adoradores em espírito e verdade[1].
Estaria Jesus a negar valor a todos os rituais do culto? Não é Deus que precisa do culto e dos seus rituais, mas os seres humanos. Ele não precisa que o informemos do que se passa connosco e na sociedade. A oração não modifica a sua santa vontade, modifica-nos a nós. Acorda-nos da indiferença perante o sentido mais profundo da vida. Podemos tentar comover a Deus com os nossos pedidos, mas é o próprio Deus que se comove pelo eterno amor que nos tem. Nós é que não podemos deixar de ser quem somos: seres que, para viver na verdade, reconhecem o seu limite e pedem socorro.
As celebrações litúrgicas católicas estão distribuídas em dois ciclos fundamentais: o do Natal e o da Páscoa. Ao resto chamam-lhe Tempo Comum. Estes arranjos dos liturgistas têm bases bíblicas e uma longa história. São uma forma de organizar a oração oficial da Igreja. Seria ridículo pensar que foi Deus que compôs e impôs esta organização ritual. A verdadeira Igreja, a não confundir com a hierarquia eclesiástica, é o voluntariado do Evangelho. Precisa de rezar para não se descuidar de Deus e do mundo. Uma liturgia sem o imperativo do serviço aos mais necessitados, sem a negação do autoritarismo eclesiástico, isto é, sem a simbólica do lava-pés[2], está condenada a ser nada.
Estamos na oitava da Páscoa, mas as celebrações pascais vão até ao Pentecostes.

Anselmo Borges - A Igreja é uma canoa, não é um museu

Anselmo Borges

“Queridos jovens, ficarei feliz vendo-vos correr mais rápido do que os lentos e temerosos. A Igreja precisa do vosso entusiasmo, das vossas intuições, da vossa fé. Fazeis-nos falta. E, quando chegardes aonde nós ainda não chegámos, tende paciência para esperar por nós.”

Papa Francisco

No Sínodo de Outubro passado, em Roma, um jovem proveniente das ilhas Samoa, disse que a Igreja é “uma canoa, na qual os velhos ajudam a manter a direcção, interpretando a posição das estrelas, e os jovens remam com força, imaginando aquilo que os espera mais além.” 
Na recente “Exortação Apostólica Pós-Sinodal Cristo Vive aos jovens e a todo o Povo de Deus”, inspirada nas reflexões e diálogos do Sínodo, incluindo opiniões de jovens de todo o mundo, crentes e não crentes, o Papa Francisco retoma a imagem da canoa, para acrescentar: “Não nos deixemos levar nem pelos jovens que pensam que os adultos são um passado que já não conta, que já caducou, nem pelos adultos que julgam saber sempre como é que os jovens se devem comportar. É preferível que todos subamos para a mesma canoa e que entre todos procuremos um mundo melhor, sob o impulso sempre novo do Espírito Santo.” 
A pastoral só pode ser sinodal, isto é, caminhando juntos, dado que a Igreja somos todos e cada um deve contribuir com os seus carismas e a sua situação. “Ao mundo nunca aproveitou nem aproveitará a ruptura entre gerações.” Só com os contributos intergeracionais se poderá construir um mundo novo e uma Igreja aberta. Lá diz o ditado: “Se o jovem soubesse e o velho pudesse, não haveria coisa que não se fizesse”. 
O Papa apela aos jovens para que não esqueçam as raízes: “É fácil ‘sumir-se no ar’ quando não há onde agarrar-se, onde apoiar-se.” Não devem seguir quem lhes peça que desprezem ou ignorem a História. Quem faz isso “precisa que estejais vazios, desenraizados, desconfiados de tudo, para que só confieis nas suas promessas e vos submetais aos seus planos. Assim funcionam as ideologias de diversas cores.” E previne-os contra outro perigo: a adoração da juventude e do corpo. “Os manipuladores utilizam outro recurso: uma adoração da juventude, como se tudo o que não seja jovem se convertesse numa coisa detestável e caduca. O corpo jovem torna-se o símbolo deste novo culto, e, então, tudo o que tiver que ver com esse corpo é idolatrado e desejado sem limites, e o que não for jovem é olhado com desprezo.

domingo, 31 de março de 2019

Bento Domingues: Confessar-se, pelo menos, uma vez por ano

Bento Domingues

"A queixa actual é contra a obrigação de se confessar antes de comungar. Tanta gente a comungar e tão pouca a confessar-se"

1. O título deste texto pode parecer ridículo por anacrónico. Quem desejar conhecer as posições oficiais da Igreja sobre os Sacramentos deve ler os textos do Vaticano II, o Código de Direito Canónico (1984) e as orientações de reforma da Igreja do Papa Francisco, expressas nos documentos por ele assinados. Se mantenho este título, é porque ele serviu para dar cobertura a uma história de terror, para distorcer a prática sacramental da Igreja e ocultar a própria essência do cristianismo. Por outro lado, a discussão actual, em torno dos ministérios ordenados, não se deve deixar polarizar, apenas, por carências funcionais da pastoral actual da Igreja, embora a situação seja calamitosa. 
O título desta crónica tem uma história. O IV Concílio de Latrão é assim chamado porque foi realizado em Roma, na Basílica de S. João de Latrão, a cátedra do Papa. Aconteceu entre 11 e 30 de Novembro de 1215. 
Esta iniciativa de Inocêncio III teve a maior participação de bispos de toda a Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna. É considerado, pelos historiadores, como o ponto mais alto e importante do papado do século XI ao século XIII [1]. 
Compareceram 404 bispos, 71 primazes e metropolitas, 800 abades e priores. Além disso, cada bispo possuía uma numerosa comitiva. Os patriarcas orientais, embora convidados, não compareceram, mas todos os reinos cristãos enviaram representantes. 
Este concílio confirmou as magníficas orientações de reforma da Igreja do grande Papa Inocêncio III; deixou-se, porém, enredar nas obsessões da Quinta Cruzada e das medidas violentas contra os albigenses. Deu, no entanto, amplo espaço à doutrina sobre a Eucaristia e o sacerdócio ministerial, acolhendo o conceito de transubstanciação, cunhado pela primeira escolástica. A obrigação da confissão anual e da comunhão pela Páscoa foram as ordenações mais notadas do concílio e mais duradoiras. 

sexta-feira, 8 de março de 2019

Anselmo Borges - Se as mulheres na Igreja fizessem greve?

Anselmo Borges 
«Também na Igreja, as mulheres estão em processo de emancipação e querem e lutam por libertação, contra a opressão»

1. Hoje, dia 8 de Março, é o Dia Internacional da Mulher. Mas dias da mulher são todos. Da mulher e do homem. Porque só com homens e mulheres, iguais e diferentes, há humanidade e futuro. Diferentes, mas com dignidade e direitos iguais. Só porque ainda se não reconhece ou, pelo menos, não suficientemente, essa igualdade de dignidade e direitos, é que é necessário haver o Dia da Mulher. 
Também na Igreja, não existe, desgraçadamente, esse reconhecimento. O próprio Papa Francisco, recentemente, depois de declarar que o preocupa que continue a persistir “uma certa mentalidade machista, inclusive nas sociedades mais avançadas, nas quais há actos de violência contra a mulher, convertendo-a em objecto de maus tratos, de tráfico e de lucro” (pergunto: saberá ele que em Portugal neste ano de 2019 já houve 12 mulheres assassinadas em contexto de violência doméstica?), disse: “Preocupa-me igualmente que, na própria Igreja, o papel de serviço a que todo o cristão está chamado deslize algumas vezes, no caso da mulher, para papéis que são mais de servidão do que de verdadeiro serviço.” 
A gente pasma ao constatar que esta situação de subalternização e exploração continue, pois Jesus manifestou claramente a igualdade. Contra o que se via e praticava no seu tempo, teve, com escândalo de muitos, discípulos e discípulas — pense-se nos amigos íntimos Lázaro, Marta e Maria; pense-se na samaritana, a quem, apesar de estrangeira, herética, pecadora, se revelou como o Messias; pense-se em Maria Madalena, por quem teve uma predilecção especial e que, após a crucifixão, foi a primeira a fazer a experiência avassaladora de fé de que o Jesus crucificado está vivo em Deus e voltou a reunir os discípulos para que fossem anunciar a Boa Nova do Evangelho, de tal modo que até Santo Agostinho a chamará “Apóstola dos Apóstolos”... 
Foi através de Jesus que veio ao mundo a ideia e a realidade da dignidade da pessoa e de que todos têm a dignidade de pessoa, com direitos divinos, respeitados pelo próprio Deus, que é Pai e Mãe de todos. Nesta consciência, São Paulo escreverá aos Gálatas: “Em Cristo, já não há homem nem mulher, judeu ou grego, escravo ou livre”. E na Carta aos Romanos menciona Júnia, “ilustre entre os Apóstolos”. 

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Frei Bento Domingues: Os outros estão a mais? (2)

Bento Domingues
"A declaração de Abu Dhabi é o gesto religioso, cultural e político 
mais importante desde há muitos séculos"

1. A fonte da realidade, una e múltipla, é sempre oculta para quem olha de fora. É da experiência mais imediata que há outros e outros. Uns são acolhidos, outros são rejeitados e outros ainda são vistos com indiferença pelos nossos afectos e comportamentos. Por pouco que se aprofunde, cada ser humano é um abismo misterioso. 
Quando falamos dos direitos e deveres humanos, enunciamos um reconhecimento e uma vontade que mais parecem uma veleidade do que uma energia de acção. Quando invocamos a fraternidade humana designamos apenas um horizonte e um desejo. Se desistíssemos desse horizonte, teríamos de responder a uma pergunta inquietante: quem tem direito a excluir os outros da condição comum? A pena de morte, por exemplo, significa um poder absoluto sobre o outro, em nome de quê? 
Que fazer para alterar aquilo que ofende a condição humana? É uma pergunta imensa, mas não nos impede de recordar coisas muito básicas. Parece evidente que existe, na consciência, a noção de bem e de mal. O bem deve-se praticar e o mal deve-se evitar. Diz-se que no concreto das tradições culturais e éticas, muitas vezes, aquilo a que uns chamam bem outros chamam mal. Mas não exageremos. Não pode ser uma apologia do relativismo: se vale tudo, nada vale! 
As sabedorias antigas da reciprocidade pediam: não faças aos outros o que não desejas que os outros te façam a ti; ou, de forma positiva, faz aos outros o que desejas que os outros te façam a ti. 
Essas generalidades não servem para construir uma articulação concreta de direitos e deveres que tornem possível a vida em sociedade. Pertence às normas fundamentadas do Direito e aos diferentes órgãos legítimos do poder a busca da sabedoria e da arte de governar para evitar a tirania e a desordem. 

domingo, 13 de janeiro de 2019

A Igreja e o sexo


sábado, 13 de outubro de 2018

Francisco​​​​​​​ em Pyongyang?

Anselmo Borges

"Na Coreia do Norte, em 1950, viviam ainda mais de 55 mil católicos, com 57 igrejas construídas, com missionários, escolas católicas e actividades pastorais florescentes. A perseguição tinha começado antes, mas acentuou-se com a guerra da Coreia e o brutal regime instalado: as igrejas foram arrasadas, os cristãos, católicos e protestantes, mortos ou enviados para campos de concentração, num processo de eliminação de qualquer presença religiosa."


A notícia chegou completamente inesperada e surpreendente: o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, será portador de um convite formal do presidente Kim Jong-un ao Papa Francisco para que visite o seu país, a Coreia do Norte. E está preparado para recebê-lo em Pyongyang "com entusiasmo". 
A Coreia do Norte ocupa hoje o primeiro lugar na lista dos países onde os cristãos são mais perseguidos. Nos princípios do século XX, a capital, Pyongyang, foi chamada "a Jerusalém do Oriente" ou "a Jerusalém da Ásia". Na Coreia do Norte, em 1950, viviam ainda mais de 55 mil católicos, com 57 igrejas construídas, com missionários, escolas católicas e actividades pastorais florescentes. A perseguição tinha começado antes, mas acentuou-se com a guerra da Coreia e o brutal regime instalado: as igrejas foram arrasadas, os cristãos, católicos e protestantes, mortos ou enviados para campos de concentração, num processo de eliminação de qualquer presença religiosa. As comunidades católicas tornaram-se verdadeiramente a "Igreja do silêncio". Hoje existe apenas uma igreja católica, construída em 1988, mas sem padre nem religiosos nem baptismos. Na capital, os católicos serão uns 800 e, dispersos por toda a Coreia do Norte, uns dois ou três mil; no entanto, é convicção de padres do Sul, que estiveram no Norte, que o número pode ser muito superior: haverá muitos homens e mulheres que continuam a viver a sua fé em Cristo de modo íntimo, sem possibilidade de exprimi-la publicamente. O regime é ateu, mas, a partir de 1989, com a queda do bloco comunista, reconheceu uma Associação Católica e uma Federação Cristã, que são duramente enquadradas e controladas pelo governo. Alguns contactos informais têm tido lugar em Roma entre representantes norte-coreanos e diplomatas do Vaticano, revela o jornal La Croix, que também escreve que em 2017 um diplomata norte-coreano declarou expressamente a um seu enviado especial à Coreia do Norte que "as organizações humanitárias católicas faziam um trabalho muito bom na Coreia do Norte; são sérias, eficazes e nós confiamos, pois são mais honestas e sinceras do que outras grandes organizações laicas que nos enviam espiões". 

domingo, 30 de setembro de 2018

Não varrer a casa ao diabo (2)

Bento Domingues
"Evoco esse passado por uma simples razão: os tormentos chegaram ao fim com a eleição do Papa João XXIII, o milagre maior que eu já vivi. Por dificuldades em Portugal, tive a graça de, antes e durante o Concílio, poder frequentar, devotamente, as suas audiências públicas. Vi, pela primeira vez, um papa que parecia o avô de toda a gente. Podíamos verificar que ele gostava de nós todos, os que estavam lá e os que não estavam, crentes e não crentes, porque todos acreditávamos que ele era a voz da humanidade à procura de paz e de esperança. Este João era a alegria bem-humorada. Chegou a dizer que se lembrou de convocar o Concílio quando estava a fazer a barba. Veio o Concílio. Abriu portas e janelas, acreditando que as correntes de liberdade mais contrastadas ajudavam a encontrar novos caminhos."

1. Estaremos no bom caminho? Parece-me que sim. Digo isto com toda a convicção, mas nada está garantido, à partida. A história da Igreja não é, nunca foi, nem pode ser, desenhada como uma auto-estrada de santidade. Quando certa apologética infantil, ignorante ou perversa falava da história admirável da Igreja, como uma procissão de heróis, santos, mártires, doutores e místicos, ilustrada nas pinturas e esculturas das igrejas e capelas, faltava lá o reverso da medalha: a lista das vítimas dos inquisidores, dos criminosos e perversos em nome da santa vontade de Deus. Em defesa da revelação divina e da sua verdade contida nas escrituras, nos concílios ecuménicos, no magistério ordinário e extraordinário dos Papas, decretaram-se condenações e excomunhões odiosas.
Na preparação da entrada no Terceiro Milénio [1] manifestou-se, em alguns sectores da Igreja, a vontade de confessar, publicamente, os crimes e os pecados do passado, fazendo propósitos de emenda em relação a determinados processos e instituições que se tinham tornado prática odiosa e corrente. Basta lembrar o texto de João Paulo II: “Muitos motivos convergem, com frequência, na criação de premissas de intolerância, alimentando uma atmosfera passional, à qual só os grandes espíritos, verdadeiramente livres e cheios de Deus, conseguiram, de algum modo, subtrair-se. No entanto, a consideração das circunstâncias atenuantes não dispensa a Igreja do dever de lamentar, profundamente, as debilidades de tantos dos seus filhos que desfiguraram o seu rosto, impedindo-o de reflectir, plenamente, a imagem do seu Senhor crucificado, testemunha insuperável do amor paciente e manso. Destes traços dolorosos do passado, emerge uma lição para o futuro, que deve levar todo o cristão a ter em conta, o princípio de ouro proclamado pelo Concílio Vaticano II: A verdade só se impõe pela força dessa mesma verdade, que penetra nas almas, com suavidade e firmeza.”

terça-feira, 15 de maio de 2018

Recordando D. António Marcelino

Editado por Fernando Martins 
Quinta-feira, 
30 Julho,
2009, 
11:13 


O necessário rosto da verdade 

Diz-se que são demasiadamente clericais os meios de comunicação social da Igreja. Logo se diz, também, que é esse, ainda hoje, o seu rosto mais visível e, por isso, não é de estranhar que assim seja e assim apareça. Não falta quem teime, dentro e fora, em continuar a identificar Igreja com bispos e padres, por preconceito, por falta de formação e de informação, por restos históricos que tardam em se apagar.
Na Igreja, continua a ser difícil e lenta a passagem de uma classe restrita, mas dominante, o clero, a um povo diversificado, alargado e plural, a comunidade dos crentes. A Igreja de Cristo é Povo, é comunidade. Não é grupo, nem elite, nem classe.
Pode acontecer, e em diversos casos acontece mesmo, que o tom clerical dos jornais, e não só, seja, por vezes, ainda o tom que prevalece. A verdade, porém, é que o trabalho que se vem fazendo, por todo o lado, com os leigos e para lhes dar consciência da sua dignidade e missão, é significativo. O seu protagonismo, em muitas comunidades paroquiais, tem crescido sempre mais. Por caminhos não reivindicativos, mas de fé.
O Ano Paulino, iluminado pela Palavra de Deus e conduzido pela vida de Paulo e das suas comunidades, com suas fraquezas e méritos, foi uma lufada de ar fresco na Igreja. Muitos leigos acordaram para novos rumos, ao longo deste Ano. Pelo caminho da Palavra se vai à fonte que não deixa que a Igreja se clericalize. Um caminho que ajuda todos os membros da Igreja, leigos, clérigos e consagrados, a sentir a alegria e a graça de serem, acima de tudo, Povo de Deus, “nação santa e povo resgatado”, com uma missão comum no mundo.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

AS MULHERES NA IGREJA E NA SOCIEDADE

Crónica de Anselmo Borges 

Anselmo Borges 


1- Devemos a vida a uma mulher, à mãe. Claro que também ao pai, mas a nossa mãe poderia ter-nos rejeitado e não nasceríamos. Se alguém se sacrificou e nos amou e ama é a mãe. Dá, pois, que pensar o modo como as mulheres são tratadas ao longo da história e, nessa história, também as religiões são acusadas, pois, com excepção do taoísmo, tendem para a misoginia. Ficam aí alguns textos universais significativos. "A mulher deve adorar o homem como a um deus" (Zaratustra). Um texto antigo budista diz que "a filha deve obedecer ao pai; a esposa, ao marido; por morte deste, a mãe deve obedecer ao filho". "A natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens. A mulher é, portanto, um homem falhado" (Aristóteles). "Toda a malícia é leve, comparada com a malícia da mulher" (Bíblia, Ben Sira). "Dou-te graças, Senhor, por não ter nascido mulher" (oração dos judeus ortodoxos). "As mulheres estão essencialmente feitas para satisfazer a luxúria dos homens. Não permito à mulher ensinar nem ter autoridade frente ao homem, mas estar em silêncio" (São João Crisóstomo). "A ordem justa só se dá quando o homem manda e a mulher obedece" (Santo Agostinho). "Nada mais impuro do que uma mulher com a menstruação. Tudo o que toca fica impuro" (São Jerónimo). "No que se refere à natureza do indivíduo, a mulher é defeituosa e mal nascida, porque o poder activo da semente masculina tende a produzir um ser perfeito parecido, do sexo masculino, enquanto que a produção de uma mulher provém de uma falta do poder activo " (Santo Tomás de Aquino). "Os homens têm autoridade sobre as mulheres em virtude da preferência que Deus deu a uns sobre outros" (Alcorão, que permite desposar duas, três ou quatro mulheres e também bater nas que se rebelem).

domingo, 21 de janeiro de 2018

As trapalhadas com as mulheres na Igreja (II)

Frei Bento Domingues 
no PÚBLICO



1. No passado domingo, o PÚBLICO apresentou uma deliciosa reportagem [1] sobre as celebrações dominicais promovidas e orientadas por leigos, mulheres e homens e um oportuno editorial de Lurdes Ferreira, sobre O tempo dos leigos.
As trapalhadas com os ministérios na Igreja afectam, sobretudo, a celebração da Eucaristia e são uma dificuldade para a hospitalidade eucarística entre as Igrejas cristãs [2]. 
Na reportagem sobre as pessoas que tomam a iniciativa de reunir e formar uma comunidade que não tem ministros ordenados para presidir à Eucaristia, por que razão não poderá o bispo ordenar alguém que é reconhecido como competente e zeloso na formação e no crescimento dessa mesma comunidade?
Edward Schillebeeckx [3] tentou, em 1980, uma solução para o serviço de presidência da Eucaristia, nas comunidades eclesiais. Aparentemente não correu bem, mas ele não desistiu. Esse caminho é, neste momento, aquele que nos pode abrir um presente e um futuro para a vida eucarística das comunidades católicas. Em nome de uma disciplina canónica inadequada, estamos a deixar as paróquias, os grupos e os movimentos católicos à deriva. Insiste-se na celebração da Eucaristia como o sacramento dos sacramentos. Com toda a razão. As comunidades de baptizados têm direito a participar na sua celebração. De facto, arranjam-se cenários para as impedirem. O pretexto é sempre o mesmo: não há padres. Se não há, façam-nos. Não faltam candidatos e candidatas preparados, ou que podem ser preparados, com desejo de receberem esse ministério. Mas não nos moldes actuais. O modelo presente já não pode ser o único. Sem imaginação, sem vontade de alimentar e dinamizar as comunidades católicas, as lideranças da Igreja só se podem queixar de si mesmas.
Importa entender o percurso e as razões deste dominicano holandês para perceber duas coisas: nunca se conformou com os obstáculos criados às reformas propostas pelo Vaticano II, nem se contentou com repetir os seus documentos. Procurou inovar e não se resignou perante os repetidos processos que Roma lhe moveu, sem nunca o conseguir condenar.

domingo, 14 de janeiro de 2018

AS TRAPALHADAS COM AS MULHERES NA IGREJA (I)

Frei Bento Domingues 

1. O Cardeal norte-americano Joseph William Tobin, arcebispo de Newark, nasceu em 1952. É o mais velho de 13 irmãos, entre os quais, oito são mulheres. Numa entrevista, revela a sensação generalizada de frustração e retrocesso produzida pela continuada proibição das mulheres receberem as ordens sagradas na Igreja Católica. Vive num país e numa cultura em que todas as áreas da vida se vão abrindo às mulheres, menos na Igreja. Este género de obstáculos acaba por as afastar. Está, no entanto, optimista. É desejo do Papa Francisco reconhecer-lhes um papel mais activo. Esse desejo não se pode realizar, apenas, com algumas nomeações isoladas para certas funções na Cúria Romana. Lembra, de forma astuta, que para alguém ser nomeado cardeal, isto é, para o próprio governo da Igreja, não é preciso ter o sacramento da Ordem, pois, no século XIX, houve cardeais leigos. Conclusão: não há nenhum obstáculo, de ordem teológica, que impeça a nomeação de mulheres para o cardinalato, para ajudar o Papa no governo da Igreja.
Parece-me uma posição habilidosa. Se as mulheres passarem a ter influência na orientação e no governo da Igreja, poderão ajudar a que os argumentos pseudo-teológicos, que as impedem de receber o sacramento da Ordem, sejam revistos e acabem com a ideia da chamada impossibilidade definitiva [1]. Este arcebispo propõe: já que não as deixam entrar pela porta, sugiro que entrem pelo telhado!

domingo, 19 de novembro de 2017

Bento Domingues — Teologia da libertação ou libertação da teologia? (2)



«Hoje, não posso esquecer que o Papa Francisco, o praticante e resistente da teologia da libertação e da libertação da teologia, instituiu o Dia Mundial do Pobre. Acontece neste Domingo. Se os pobres não estiverem na missa, é porque lha roubaram.»

1. Recebi, recentemente, três obras de três consagrados autores portugueses. Uma é de António Lobo Antunes, outra de Frederico Lourenço e a terceira de António Damásio. Uma pertence à criação literária, outra ao alargamento do nosso mundo bíblico e a terceira à investigação científica. Ninguém escreve como Lobo Antunes, ninguém pode ousar o que Frederico Lourenço consegue, a antropologia científica, filosófica e sapiencial de António Damásio é o guião e o mapa que nos faltavam para a fascinante viagem às raízes da vida, dos sentimentos e das culturas humanas. Mostra-nos como e porquê “os seres humanos acabam sempre por depender da maquinaria dos afectos e das suas ligações com a razão. Não há maneira de fugir a tal condição”.
Conhecer essa maquinaria ajuda a não sermos cegos a conduzir outros cegos para o desastre pessoal e colectivo. As investigações destinadas a saber quem somos, como somos, quem podemos e devemos ser, requerem a cooperação de todas as ciências e sabedorias. A cultura da cooperação é um caminho luminoso para nos irmos libertando do egoísmo, o inimigo público e privado do presente e do futuro da humanidade.
Repete-se que a ciência e a tecnologia podem ser usadas para melhorar o nosso futuro — o seu potencial continua a ser extraordinário — ou podem representar a nossa perdição. Pode-se continuar, por outro lado, a desenvolver a ideia de que o ser humano é uma paixão inútil que importa substituir por outra coisa mais limpa, mais inteligente e mais rentável. Essa coisa pós-humana já está configurada, mas continuo a não saber para quem. 
Destaquei o novo livro deste investigador português, radicado nos EUA, porque, em primeiro lugar, preciso dele — talvez não seja o único — para perceber “a estranha ordem das coisas” na evidente desordem do mundo. Ao chegar ao fim, exprime uma atitude que é essencial à libertação da teologia. Permito-me transcrever: “Em primeiro lugar, e tendo em conta as imensas novas e poderosas descobertas científicas, é fácil ceder à tentação de acreditar em certezas e interpretações prematuras que o tempo se encarregará de rejeitar impiedosamente. Estou preparado para defender a minha actual visão sobre a biologia dos sentimentos, da consciência e das raízes da mente cultural, mas não tenho ilusões sobre a durabilidade dessa visão. Em segundo lugar, embora seja possível falar com alguma confiança das características e das operações dos organismos vivos e da sua evolução, e embora seja possível situar o início do respectivo universo há cerca de 13 mil milhões de anos, não temos qualquer relato científico satisfatório quanto à origem e ao significado do Universo, ou seja, não temos uma teoria de tudo que nos diga respeito. Serve isto para recordar que os nossos esforços são modestos e hesitantes, e que devemos estar a abertos e atentos quando decidimos abordar o desconhecido.” [1]

2. Se as lideranças da Igreja, os teólogos, os padres e os catequistas tivessem estes cuidados de puro bom senso teriam evitado, às comunidades cristãs, muitos falsos problemas no campo da criação cultural, das ciências, da acção pastoral e da ética. Não tomariam atitudes e decisões que pudessem impedir uma virtuosa abertura ao futuro, ao imprevisto e imprevisível.
Nota-se isto em muitos âmbitos, mas tornou-se uma tragédia que se aprofunda e alarga, dia a dia, em relação aos “ministérios ordenados” de solteiros e casados, sobretudo à declaração de que as mulheres nunca poderão receber o sacramento da Ordem. Poder-se-ia perguntar como é que se sabe tanto acerca do futuro e tão pouco acerca do presente?
Configuraram-se as instituições funcionais da Igreja para determinados contextos sociais e culturais que não podem ter garantias de eternidade. Não tendo isso em conta, acabam por deixar a vida pastoral em becos sem saída, paralisada. Abandonaram-se os avisos de Cristo: “para vinho novo, odres novos”; “o sábado é para o ser humano e não o ser humano para o sábado.” S. Paulo não se esqueceu: foi para a liberdade que Cristo vos libertou.
É muito importante a questão e a história da teologia da libertação, mas volto a dizer que é ainda mais decisivo libertar a teologia da ideologia, da visão distorcida da fidelidade confundida com a repetição do pré-definido, do pré-sabido e do sempre rezado, assim como era no princípio agora e sempre pelos séculos dos séculos [2].
Um dos modelos medievais da prática teológica, que sempre me deliciaram, estava ligado à interrogação sistemática, isto é, às questões disputadas (quaestiones disputatae). Tomás de Aquino, além disso, estava profundamente marcado pela teologia negativa, que nada tinha de niilista. Qualquer afirmação tinha de ser acompanhada de negação. Depois de descrever a sua teoria do conhecimento teológico e de mostrar a razoabilidade da afirmação da existência de Deus, diz que seria normal que se procurasse saber como é Deus, mas não podia ir por aí, pois só podemos saber como Ele não é. Esta é uma teologia da libertação da idolatria dos nossos conceitos da divindade [3].
Era o tempo da combinação do atrevimento, na teologia, com a virtude da modéstia na sua prática. Tomás de Aquino sabia unir o que outros separavam: procurar entender para crer e crer para entender.

3. Quando me perguntam qual foi o papel da teologia da libertação em Portugal, tenho de ter em conta vários aspectos para poder responder. A teologia académica, entre 1911 e 1968, esteve em perfeito jejum, como já referi. Não é uma interpretação. É um facto. Na maioria dos casos, a teologia dos seminários era de importação, de justificação do que estava mandado crer e pensar, preparava párocos. O padre Joaquim Alves Correia era um teólogo por conta própria. Testemunhava a Largueza do Reino de Deus, que lhe saiu caro, dada a estreiteza da ideologia dominante.
Existe uma produção histórica abundante sobre a relação da Igreja com o Estado Novo e o mundo dos católicos que a questionavam. Nessa produção não se fala de teologia da libertação nem da libertação da teologia, mas existiram ambas com os limites que as circunstâncias eclesiais e políticas impunham, mas o conhecimento dos seus percursos tem de ficar para outra crónica.
Hoje, não posso esquecer que o Papa Francisco, o praticante e resistente da teologia da libertação e da libertação da teologia, instituiu o Dia Mundial do Pobre. Acontece neste Domingo. Se os pobres não estiverem na missa, é porque lha roubaram.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] António Damásio, A Estranha Ordem das Coisas, Círculo de Leitores, 2017, pp. 331-332.
[2] Quem desejar conhecer o que era a prisão da teologia nos anos 50 do séc. passado, leia o impressionante Journal d’un théologien (1946-1956), de Yves Congar, Cerf, 2000
[3] Summa Theologiae, q. III, Prólogo

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Anselmo Borges — Francisco sobre: 5. A Igreja e a política


Ainda com os diálogos do Papa Francisco e de Dominique Wolton: Politique et Société. Concluo.

1. Um tema que atravessa todo o livro é a política. Francisco pronuncia-se sob múltiplos ângulos. Trump "terá dito de mim que sou um homem político... Agradeci--lhe, porque Aristóteles define a pessoa humana como um animal político, e é uma honra para mim. Portanto, sou, pelo menos, uma pessoa! Quanto aos muros..." "A Igreja deve servir em política, lançando pontes: é esse o seu papel diplomático. "O trabalho dos núncios é lançar pontes"." Mas há "a grande política e a pequena política. A Igreja não deve meter-se na política partidária. A política, a grande política, é uma das formas mais elevadas de amor. Porquê? Porque está orientada para o bem comum de todos". "Há sempre uma relação com a política. Porque a pastoral não pode não ser política", para indicar caminhos e valores do Evangelho. Mas concorda com Wolton na denúncia do fundamentalismo e "do risco de fusão da religião e da política".

2. Sobre as desigualdades. Os números: "Hoje, no mundo, 62 ricos possuem a mesma riqueza que 3,5 mil milhões de pobres. Há hoje 871 milhões de pessoas com fome, 250 milhões de migrantes que não têm para onde ir, que não têm nada. Mas o tráfico de droga envolve mais ou menos 300 mil milhões de dólares e pensa-se que, nos paraísos fiscais, 2,4 milhões de milhões de dólares circulam de um lugar para outro."
Na base, está "o ídolo dinheiro". "Caímos na idolatria do dinheiro." Segundo o Evangelho, há incompatibilidade entre Deus e o dinheiro, quando este é divinizado. "Os dois pilares da fé cristã, das nossas riquezas, são: as Bem-aventuranças e o capítulo 25 de São Mateus, que estabelece o critério pelo qual seremos julgados": tive fome, tive sede, e destes-me de comer, de beber...; "é aqui que está a nossa riqueza. Mas irá dizer que sou um Papa demasiado simplista! [risos]. Graças a Deus..."
Wolton: "Diz que é necessário o Estado e que se comprometa..." Francisco: "A economia liberal de mercado é uma loucura. Temos necessidade de que o Estado regule um pouco. E é o que falta: o papel do Estado regulador. Por isso, peço que se abandone a "liquidez" da economia para voltar a qualquer coisa de concreto, isto é, à economia social de mercado: mantenho o mercado, mas "social" de mercado." O problema é "uma economia líquida. A finança". Wolton concorda: "A finança é um modelo de liberalismo demasiado desigual. A finança comeu a economia, que comeu a política..." E Francisco: "É o virtual contra o real." Para meditação, avisa: "Na morte, não levaremos dinheiro connosco. Nunca vi atrás de um carro funerário um camião com os haveres da residência anterior..."

3. Sobre as migrações e a Europa. Francisco é o primeiro Papa jesuíta da história e também o primeiro latino-americano. Argentino, filho de pais italianos, imigrados. "A identidade do povo argentino provém da mestiçagem, porque as vagas de imigrações misturaram-se, misturaram-se... E eu senti-me sempre um pouco assim. Para nós, era absolutamente normal ter na escola várias religiões em conjunto."
Esta sua experiência contribuirá para a sua sensibilidade para com os migrantes. Considera aliás que a teologia cristã é "uma teologia de migrantes", "o próprio Jesus foi um refugiado, um emigrante".
"O problema começa nos países donde vêm os emigrantes. Porque deixam a sua terra? Por falta de trabalho ou por causa da guerra. São as razões principais... Pode-se investir, as pessoas terão uma fonte de trabalho e não terão necessidade de partir. Mas, se há guerra, de qualquer modo, têm de fugir. Ora, quem faz a guerra? Quem dá as armas? Nós."
"A Europa é uma história de integração cultural, multicultural, muito forte. Neste momento, a Europa tem medo. Ela fecha, fecha, fecha..." A questão é que "creio que a Europa se tornou uma "avó". Ora, eu quereria ver uma Europa mãe. A Europa pode perder o sentido da sua cultura, da sua tradição. Pensemos que é o único continente a ter-nos dado uma tão grande riqueza cultural, quero sublinhá-lo. A Europa é o berço do humanismo. A Europa deve reencontrar as suas raízes, também cristãs. E não ter medo. Não ter medo de tornar-se a Europa mãe". E atira de modo mordaz: "Se os europeus querem ficar só com europeus, façam filhos!" Inquietação maior: "Já não vejo estadistas como Schuman, como Adenauer..."

4. Wolton lança desafios a Francisco.

4. 1. Seja como for, "a Europa representa o maior "estaleiro" pacífico democrático da história do mundo". Porque é que as Igrejas não convocam, com todas as religiões e famílias de pensamento, um "acontecimento solene, para dizer que é fundamental" que a união da Europa resulte? Trata-se da "maior utopia democrática da história da humanidade: nunca 27 a 30 países, isto é, 500 milhões de habitantes com 25 línguas, tentaram pacificamente coabitar". Francisco: "Desejo fazer um encontro sobre a Europa com os intelectuais europeus", do Atlântico aos Urais...

4. 2. Há tensão à volta da diversidade cultural. Francisco reafirma que a Igreja não pode ser "imperialista" e que a globalização "em forma de esfera é má" enquanto a Igreja fala da globalização em "poliedro".

4. 3. É urgente uma reflexão crítica sobre a comunicação: por todo lado há comunicação técnica e, no entanto, "nunca houve tanta incomunicação"; está-se perante o perigo de "uma forma de esquizofrenia da comunicação": uma mundialização das técnicas e cada vez menos comunicação humana; não há "o toque, falta o corpo". E pense-se no poder inaudito, quanto a dinheiro e controlo, dos GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon)...

5. Wolton confessa que foi um privilégio dialogar com "uma das personalidades intelectuais e religiosas mais excecionais do mundo". Duas frases o marcaram: "Não tenho medo de nada" e "Não é fácil, não é fácil..."

Anselmo Borges no Diário de Notícias

*padre e professor de filosofia

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Anselmo Borges — Francisco sobre: 3. a Igreja e a alegria



Continuo com os diálogos do Papa Francisco e de Dominique Wolton: Politique et société. Quando se fala da Igreja, pensa-se logo na instituição e nos dirigentes: papa, bispos, padres... Ora, acentua Francisco, "a Igreja somos nós todos." "Há os pecados dos dirigentes da Igreja, com falta de inteligência ou que se deixam manipular. Mas a Igreja não são os bispos, os papas e os padres. A Igreja é o povo. O Vaticano II disse: "O povo de Deus, no seu conjunto, não se engana." Se quiser conhecer a Igreja, vá a uma aldeia onde se vive a vida da Igreja. Vá a um hospital onde há tantos cristãos que vêm ajudar, leigos, irmãs... Vá a África, onde se encontram tantos missionários. Não para converter - era noutros tempos que se falava de conversão -, mas para servir."

O que é que mais o toca? "Há tanta santidade. É uma palavra que quero utilizar na Igreja hoje, mas no sentido da santidade quotidiana, nas famílias... Quando falo desta santidade ordinária, que já designei como a "classe média" da santidade..., sabe qual é a imagem que me vem ao espírito? O Angelus, de Millet. A simplicidade desses dois camponeses que rezam. Um povo que reza, um povo que peca e depois se arrepende dos seus pecados. Há uma forma de santidade oculta na Igreja. Há heróis que partem em missão. Alguns sacrificaram a sua vida. É isso que me toca mais na Igreja: a sua santidade fecunda, ordinária. Essa capacidade de tornar-se santo sem se fazer notar."

Por isso, Francisco tem medo da rigidez. "Por detrás de cada rigidez há uma incapacidade de comunicar. Pense nesses padres rígidos que têm medo da comunicação, pense nos políticos rígidos... É uma forma de fundamentalismo. Quando me aparece uma pessoa rígida, e sobretudo um jovem, digo imediatamente a mim próprio que está doente. O perigo é que procuram a segurança... Não sabem, sentem-no. Vão, portanto, procurar estruturas fortes que os defendam na vida." Temos então o tradicionalismo, o medo da novidade, do diálogo. Ignoram que a tradição, para ser viva, tem de estar em movimento. "Como cresce a tradição? Cresce como uma pessoa: pelo diálogo, que é como a amamentação para a criança. O diálogo com o mundo que nos rodeia. Se não se dialoga, não se pode crescer, fica-se fechado, pequeno, um anão. Não posso contentar-me com caminhar com palas, devo olhar e dialogar. Dialogando e escutando outra opinião, posso, como no caso da pena de morte, da tortura, da escravatura, mudar o meu ponto de vista. Sem mudar a doutrina. A doutrina cresceu com a compreensão. Isso é a base da tradição. Ao contrário, a ideologia tradicionalista tem uma fé como isto [faz o gesto das palas]: na missa, a bênção deve dar-se desta maneira, os dedos devem colocar-se deste modo, como se fazia antes... O que o Vaticano II fez com a liturgia foi algo enormíssimo. Porque abriu o culto de Deus ao povo. Agora, o povo participa." Aqui, digo eu: o cardeal Robert Sarah que não pense que vai pôr outra vez a missa em latim, com o padre de costas para o povo...

Neste contexto, põe-se a pergunta: os divorciados recasados podem comungar? "Há o que eu fiz, depois de dois sínodos: a exortação "A Alegria do Amor"... É algo claro e positivo, que alguns com tendências ultratradicionalistas combatem, dizendo que não é a verdadeira doutrina. Quanto às famílias feridas, eu digo lá que há quatro critérios: acolher, acompanhar, discernir as situações e integrar. Abre-se um caminho de comunicação. Perguntam-me: "Mas pode dar-se a comunhão aos divorciados?" Respondo: "Falai com o divorciado, falai com a divorciada, acolhei, acompanhai, integrai, discerni!" Infelizmente, nós os padres estamos habituados a normas congeladas, fixas. E ouve-se dizer: "Não podem receber a comunhão." Que não, não e não. Este tipo de proibições é o que encontramos no drama de Jesus com os fariseus. A mesma coisa!"

Neste enquadramento, porque "a misericórdia é um dos nomes de Deus - se eu não aceito que Deus é misericordioso não sou crente" -, todos os padres, incluindo os lefebvrianos, podem agora absolver o pecado do aborto. "Atenção! Isto não significa banalizar o aborto. O aborto é grave, um pecado grave. É o assassínio de um inocente. Mas se há pecado é necessário facilitar o perdão."

O cristianismo "não é uma ciência, uma moral, uma ideologia, uma ONG: o cristianismo é um encontro com uma pessoa. É a experiência da estupefacção, da maravilha espantosa de ter encontrado Deus, Jesus Cristo, é isso que me deixa estupefacto". Por isso, "não se pode ensinar a moral com preceitos como: "Não podes fazer isto, deves fazer isto, tu deves, tu não deves, tu podes, tu não podes." A moral é uma consequência do encontro com Jesus Cristo, uma consequência da fé, para nós os católicos. E para os outros a moral é uma consequência do encontro com um ideal, ou com Deus, ou consigo mesmo, mas com a melhor parte de si mesmo. A moral é sempre uma consequência". Assim, é inconcebível uma Igreja afastada das pessoas. "A Igreja de Jesus Cristo tem de estar ligada ao povo. O contrário seria fazer como alguns políticos que se interessam pelas pessoas durante as campanhas eleitorais e depois as esquecem. Para mim, a proximidade, mesmo na vida pastoral, é a chave da evangelização... Quando quero transmitir algo a alguém, devo esforçar-me por pensar que estou diante do mistério de uma outra pessoa."

Wolton: "Que palavras do seu pontificado quereria ver retidas?" Francisco: "A palavra que mais utilizo é a "alegria". Uso muitas vezes a "ternura", a "proximidade". Aos padres digo: "Por favor, sede próximos das pessoas." Aos bispos digo: "Não sejais príncipes, senhores, sede próximos das pessoas, dos padres." Também a "oração", rezar no sentido de estar diante de Deus" e fazer silêncio e meditar, no meio de uma sociedade do ruído, do "rapidão".

Anselmo Borges, no Diário de Notícias 


quinta-feira, 29 de junho de 2017

Georgino Rocha: Igreja Caridade — Um olhar a partir de dentro


«A caridade política merece destaque especial pela sua relação directa com o bem comum e a qualidade ética da convivência dos cidadãos. Ninguém pode dispensar-se, como pessoa ou associação, ninguém pode alhear-se da grande política. O magistério social da Igreja, passada a fase restauracionista, não cessa de salientar a excelência desta política e de assinalar a urgência da civilização do amor, alternativa daquela que nos envolve até à medula – a do consumo sem medida, apenas limitado pelas cautelas de prevenção de grandes males»

A Igreja é caridade por participação. Só Deus é caridade e vive esta realidade do seu ser na unidade das relações entre as três pessoas divinas. São relações pautadas pelo amor de doação incondicional, autêntica fonte de vida a transbordar e a comunicar-se. Jesus, o Deus humanado, desvenda “a ponta do véu” e abre o acesso a esta fonte insondável. E deixa a Igreja como sinal e instrumento (sacramento) que vive e transmite o que Ele mesmo testemunha: Deus é amor de misericórdia compassiva que intervém na história humana de muitos modos e em todas as épocas. Vive e realiza connosco. É a caridade em dinamismo de salvação libertadora.
A Igreja caridade tem aqui a sua matriz e o seu rosto. Ouso fazer-me peregrino no seu interior e realçar alguns marcos irradiantes que assinalam o seu caminho actual “entre as tribulações do mundo e as consolações de Deus” (Santo Agostinho). Outros se poderiam facilmente apontar.
Antes de mais, surgem as formas de relacionamento entre as pessoas, em todos os âmbitos da organização eclesial, de modo a que a sua instituição faça brilhar o amor com Deus nos ama. Incluem-se nesta dimensão, pelo seu especial significado, aqueles e aquelas que desempenham uma “função” especial no povo de Deus: bispos, padres, diáconos, religiosos/as e leigos/as, designadamente os que realizam o “ministério conjugal”. É um conjunto que faz brilhar a mesma caridade à maneira de poliedro, como gosta de dizer o Papa Francisco. “Vede como eles se amam” diziam admirados os que viam o estilo de vida dos cristãos nas primeiras comunidades.
A realidade actual, iluminada por este foco de luz, evidencia o caminho andado e, ainda mais, o que falta percorrer. É “tarefa” mobilizadora de quem sente a urgência de fazer brilhar a luz acesa para que todos vejam as boas obras e dêem glória ao Pai do Céu. É proposta e apelo que, após o Vaticano II, se faz mais interpelante e o Papa Francisco impulsiona pelo estilo de vida, pelas atitudes, pelo magistério e pelas reformas implementadas. E com ele tantos outros, felizmente!
A caridade eclesial vai configurando a sua originalidade conforme as situações e o desempenho dos discípulos missionários: a social para os que assumem a cidadania responsável e estão chamados a intervir de forma positiva para a humanização da sociedade e suas múltiplas associações e instituições. É propósito deste tipo de caridade ajudar a abrir horizontes a todas as realidades temporais: cultura, política, economia, entre outras. O bem comum e a comunhão no bem e na beleza constituem o pólo de atracção desta mobilização geral.

A caridade política merece destaque especial pela sua relação directa com o bem comum e a qualidade ética da convivência dos cidadãos. Ninguém pode dispensar-se, como pessoa ou associação, ninguém pode alhear-se da grande política. O magistério social da Igreja, passada a fase restauracionista, não cessa de salientar a excelência desta política e de assinalar a urgência da civilização do amor, alternativa daquela que nos envolve até à medula – a do consumo sem medida, apenas limitado pelas cautelas de prevenção de grandes males. E, a céu descoberto, fica a legião dos esfomeados, desnutridos, descartados. Sem a educação política para o bem comum, prevalece sempre a visão partidária, ideológica, sectária.

A caridade pastoral é aquela que dá ânimo profético ao testemunho do povo de Deus e às suas múltiplas esperanças, canseiras e lutas. Recebe um impulso muito grande do estilo de vida dos seus “pastores” ou de quem recebe a missão de o servir em nome de Jesus e por delegação da Igreja, na pessoa do Bispo diocesano. São notas típicas desta caridade: o amor solícito e misericordioso, a disponibilidade apostólica, a promoção de iniciativas que ajudem a descobrir o que de melhor existe em cada pessoa e a que ela mesma queira oferecer como dom aos outros, à comunidade. Até lá, prevalece o cultivo provisório do assistencialismo.

A caridade de Cristo lança em nós impulsos de conversão pessoal, de reforma da Igreja, de humanização da sociedade e de cuidado por toda a criação e suas criaturas; impulsos do Espírito que renova a face da terra.

domingo, 4 de junho de 2017

PAPA ALERTA PARA DIVISÕES E PEDE UNIDADE NA IGREJA



O Papa Francisco disse hoje no Vaticano que a Igreja deve rejeitar “coligações e partidos” no seu seio, apelando à unidade dos católicos, sem “posições excludentes”.
“Inflexíveis guardiães do passado ou vanguardistas do futuro, em vez de filhos humildes e agradecidos da Igreja: assim temos a diversidade sem a unidade”, assinalou, na homilia da Missa da Solenidade de Pentecostes, perante milhares de pessoas reunidas na Praça de São Pedro, que ali acorreram desde as primeiras horas da 
O Papa Francisco alertou ainda para as “maledicências que semeiam cizânia” e “as invejas que envenenam”, defendendo que os homens e mulheres de Igreja devem ser “homens e mulheres 

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Foto da Ecclesia 

domingo, 23 de abril de 2017

Metamorfoses pascais do desejo (2)

Crónica de Frei Bento Domingues no PÚBLICO 


«Ao fim desta Quaresma, da Semana Santa e da Oitava da Páscoa, há um sabor amargo: tirando o Papa, quem, no mundo católico, nas dioceses, nas paróquias, nos conventos, se levantou contra os sinais de guerra que marcam o mapa do mundo?
Repetiu-se: estar com o Papa é estar com a Igreja. Isto era quando os Papas não se comoviam com as dores dos mais feridos.»

1. O filósofo Bertrand Russel não foi muito original ao destacar que os dois grandes desejos humanos são o poder e a glória. Podem realizar-se pelos caminhos da ilimitada vontade de dominação económica, política e religiosa ou pelo desenvolvimento dos próprios talentos em função da vontade de criar condições para que tenham todos iguais oportunidades.
Em Portugal, a julgar pelas aparências, o grande desejo de poder e glória, de pais e filhos, é que ganhe o clube da sua paixão. Os mais devotos têm sempre os caminhos de Fátima à disposição. Se aparecer um Papa, é o segredo da glória, o desejo consumado.
Em meados do séc. VI a.C., nasceu um príncipe desencantado, Siddharta Gautama, mais conhecido por Buda, o iluminado, e viu-se confrontado com a pulsão avassaladora do desejo. No célebre discurso pronunciado em Benares, nas margens do rio Ganges, teria sentenciado que a terceira “nobre verdade”, para acabar com a dor omnipresente, era indispensável abolir o desejo e os seus laços. Vale a pena perguntar: será o desejo uma doença ou uma bênção?
O mundo do desejo, da fantasia, do afecto, é de tal forma essencial ao psiquismo humano que todas as outras faculdades é dele que recebem a sua energia. Nasce de uma falta estrutural no ser humano, não como uma maldição, mas como um infindo desassossego. Para Espinosa, a essência do ser humano é o desejo. Segundo Aristóteles, os desejos que não dependem da fisiologia, mas da razão, são ilimitados; os seres humanos desejam o infinito. S. Tomás de Aquino descobriu, nessa sede insaciável, o desejo natural de ver a Deus que não pode ser defraudado [1].
Não há notícias de que Buda tenha influenciado o Nazareno, embora este também tenha mudado de rumo depois de uma divina iluminação. Já foram descobertas afinidades entre certas passagens dos evangelhos e algumas propostas da sabedoria budista, mas não são da mesma extracção. Jesus não era pela abolição do desejo, mas pela sua intensificação e metamorfose, isto é, pela sua conversão. O seu desejo mais ardente era colocar-se ao serviço do desejo libertador de Deus, alegria do mundo. Era vontade humana e divina de alteração radical da nossa sociedade.
Os Evangelhos sinópticos mostram, no entanto, que ele teve de lutar contra tentações diabólicas infiltradas nos caminhos do advento e da configuração da era messiânica. Se era realmente o Messias, tinha de o provar. Mediante acontecimentos espectaculares, transformações económicas, políticas e religiosas radicais, teria o mundo a seus pés.
Jesus conhecia os desejos, os modelos, os grupos e os movimentos messiânicos que agitavam o povo a que pertencia e que, sem um poder absoluto, era impossível realizar os seus projectos. Percebeu também que, por esse caminho, tinha de renunciar à alma da sua alma: à experiência do Deus do puro amor e ao projecto de passar os marginalizados dos diversos poderes para o coração da sociedade [2].

2. As tentações supunham que conheciam bem a Deus, os apetites do coração humano e o projecto do Nazareno. Vencida a tentação, ficou o aviso: quando alguém invocar a Deus para O negar ou para O louvar, é indispensável perguntar: qual é a experiência pessoal, existencial, donde nasce essa negação, exaltação ou indiferença religiosa? Fora do contexto cultural, político e religioso que provoca essas atitudes, não podemos saber o que está a comandar o uso da palavra Deus.
Na teologia de S. Tomás de Aquino, muito marcado pela teologia negativa do Pseudo-Areopagita, Deus só pode ser conhecido como infinitamente Desconhecido. A tentação permanente das religiões é a criação de deuses à imagem dos nossos desejos distorcidos para legitimar sociedades enlouquecidas pelas lutas da dominação económica, política e religiosa.
Como vimos, Jesus disse radicalmente não às tentações messiânicas que o assaltaram, mas levou muito tempo a compreender a prontidão dos discípulos em abandonar tudo para o seguirem. O Evangelho segundo S. Marcos mostrou, com insistência, que Jesus os chamou para uma missão e o que eles desejavam era que o Nazareno tomasse mesmo o Poder e o resto era só conversa. Por isso, a discussão entre eles girava sempre em torno da futura distribuição dos cargos políticos. Um dia a tensão explodiu: os irmãos, Tiago e João, perderam o pudor e foram reclamar os dois primeiros lugares, o que indignou os outros dez.
Perante essa situação, Jesus resolveu pôr tudo em pratos limpos: sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim: ao contrário, aquele dentre vós que desejar ser grande, seja o vosso servidor e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida pela libertação de todos [3].

3. O texto de S. Marcos deixou claro como devem ser as relações de poder na Igreja. Só dessa forma ela se pode tornar uma instância crítica dos poderes de dominação na sociedade.
O que o Papa Francisco está a fazer na Cúria romana, com tantas resistências, é puro Evangelho. Já em 1969, o Cardeal Suenes denunciava o sistema que aprisiona o Papa e o torna cúmplice e solidário daquilo que ele não quer, tenha ou não a sua assinatura. É preciso conseguir libertar o Papa do sistema do qual há queixas há vários séculos, sem resultado. Porque, como Suenes frisou, ainda que os Papas mudem, a Cúria permanece.
O poema do bispo Casaldáliga gritou: 

“Larga a cúria, Pedro,
desmantela o sinédrio e a muralha.
Ordena que se mudem
todas as filactérias impecáveis
em palavras vibrantes de vida.”

Ao fim desta Quaresma, da Semana Santa e da Oitava da Páscoa, há um sabor amargo: tirando o Papa, quem, no mundo católico, nas dioceses, nas paróquias, nos conventos, se levantou contra os sinais de guerra que marcam o mapa do mundo?
Repetiu-se: estar com o Papa é estar com a Igreja. Isto era quando os Papas não se comoviam com as dores dos mais feridos.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO 

[1] José Antonio Marina, Las arquitecturas del deseo, Anagrama, Barcelona, 2007; Juan Guillermo Droguett, Desejo de Deus. Diálogo entre psicanálise e fé, Vozes, Petrópolis, 2000, pp. 13 e 139; Cipriano Franco Pacheco, O desejo natural da visão de Deus. Expressão de abertura humana ao transcendente, Romae, 2001; Teresa Messias, O desejo e a sua transformação no seguimento de Jesus. Uma leitura dos escritos de Sebastião Moore, Paulus, 2017.
[2] Cf. Lc 4, 1-13; Mt 4,1-11; Mc 1,12-13
[3] Mc 10, 35-45