domingo, 18 de junho de 2017

O ECUMENISMO DAS MULHERES

Crónica de Frei Bento Domingues no DN


1. Nos finais dos anos 60 do século passado, num curso de cristologia, dediquei algumas aulas a investigar, com os alunos, o contraste entre a atitude de Jesus em relação às mulheres e a sua permanente ausência nas grandes decisões de orientação da Igreja. As mulheres não tinham podido votar os documentos do concílio ecuménico Vaticano II, como também nunca tinham tido voz activa em nenhum outro Concílio. Um estudante, no debate, argumentou que, por isso, era um abuso falar de concílios ecuménicos, porque lhes faltou sempre a voz e o voto das mulheres cristãs. Esse facto era mais grave do que a ausência das Igrejas ortodoxas e protestantes no Vaticano II.
Mesmo sem entrar agora nessa discussão, é preciso ir à raiz de toda a problemática actual na Igreja, sobre o acesso das mulheres aos ministérios ordenados, sobretudo depois da decisão de João Paulo II destinada a abolir, e para sempre, qualquer debate a esse respeito. Invocou para o efeito a sua missão e decidiu que a Igreja não tem qualquer poder para conceder a ordenação sacerdotal às mulheres e que esta posição deve ser mantida por todos os fiéis da Igreja, definitivamente.
A 18 de Novembro de 1995, a Congregação para a Doutrina da Fé declarou que esta Carta Apostólica não é uma definição ex-cathedra [1]. A vontade de suprimir para sempre qualquer debate sobre esta matéria é o desejo do impossível. Há-de haver sempre quem não sinta essa obrigação e teime em discutir, como seu direito.
De facto, esse documento vem na linha da progressiva sacerdotalização dos ministérios ordenados na Igreja com resultados pouco cristãos. Levou a esquecer o principal: a marca sacerdotal do baptismo. Isto sim, que é grave. O principal passou para secundário e o secundário para principal. É uma inversão que atinge a própria raiz do cristianismo.
Por outro lado, não existem dois baptismos, um para homens e outro para mulheres. A identidade cristã é sacerdotal sem distinção de género. No entanto, quando se fala de sacerdotes pensa-se logo nos padres e nos bispos, algo vedado às mulheres.
É por esta deformação que os ministérios ordenados adquiriram uma posição tão relevante e absoluta em relação aos outros ministérios eclesiais, mas sobretudo desvalorizando a dignidade baptismal, comum a todos os cristãos. Esta é anterior e determinante para o exercício de outro qualquer ministério na Igreja. Aquilo que é um serviço expressou-se como um poder que impõe e domina, desfigurando a imagem cristã da Igreja: uns ensinam, mandam e celebram e os outros e as outras escutam, obedecem e assistem.

2. A qualificação do Baptismo, no Espírito Santo, é ontológica. Existe para celebrar um nascimento novo para a fraternidade na Igreja de irmãs e irmãos. Quando Tomás de Aquino pergunta o que há de mais importante, de mais poderoso na lei nova do Evangelho, responde: a graça do Espírito Santo, tudo o resto é para a secundar. Os ministérios pertencem ao âmbito funcional, são da ordem do fazer. A graça do Baptismo é da ordem do ser.
O chamado sacerdócio comum dos baptizados não se identifica com os ministérios ordenados a que se costuma chamar sacerdócio ministerial ou hierárquico. Ao fazer isto, esquece-se que a diferença entre ambos é em benefício do Baptismo e não ao contrário. A verdadeira dignidade de todos os cristãos, masculinos e femininos, provém da graça baptismal.
A desgraça está mesmo neste ponto. Quando se fala do sacerdócio comum, dado pelo Baptismo, fica-se com a ideia, essa sim muito comum, de que este está muito abaixo do sacerdócio ministerial, quando a verdade é completamente inversa. Os chamados ministérios ordenados têm uma história muito complexa que importa conhecer para não se cair em contra-sensos [2], como documentou o teólogo J. Tillard.
Se a celebração do Baptismo é um sacramento da transformação pascal da vida, todos os baptizados, sejam masculinos ou femininos, tornam-se sacerdotes, participantes do sacerdócio de Cristo. Esta participação é o fundamento de tudo o que acontece na Igreja.
Quando se nega a possibilidade de as mulheres baptizadas acederem aos ministérios ordenados, são exibidas muitas razões. A particularidade de todas elas é a de terem perdido a razão. É frequente invocar a Última Ceia para falar da instituição da Eucaristia. Por não constarem, nessa narrativa, nomes de mulheres, diz-se que não receberam o sacramento da ordem, o fazei isto em memória de Mim! O uso do argumento da ausência de mulheres nessa Ceia, para não poderem presidir à Eucaristia, deveria ser radicalizado, para se ver o seu absurdo. Se isso fosse verdade, as mulheres ficariam definitivamente impedidas de participar na Eucaristia. Em termos “pastorais”, as mulheres deveriam ser impedidas de irem à missa!

3. O teólogo valdense italiano, Paolo Ricca [3], depois de analisar a situação da mulher na comunidade cristã nascente, procurou mostrar como “progressivamente foi afastada, de quase todas as funções, até se tornar o proletariado do cristianismo. Tal como na sociedade industrial do século XIX, o proletariado levava as coisas para a frente, as mulheres levam a Igreja para a frente, mas justamente como proletárias, isto é, sem poder”.
Parece-me um retrato sugestivo, mas esse caminho pode desvirtuar o que, hoje, está em causa: as mulheres, como no tempo de Jesus, não pretendem, como os discípulos, um poder de dominação, mas o poder de servir.
A regra de Santo Agostinho está certa: “Convosco sou cristão, para vós sou bispo.” A complementaridade das mulheres nos ministérios ordenados manifestará a originalidade das capacidades femininas de servir as comunidades cristãs, que tradições obsoletas impedem.
O Papa Francisco foi à Suécia para celebrar os 500 anos da Reforma Luterana. Encontrou mulheres e homens ordenados no serviço de uma Igreja cada vez mais democrática nas suas decisões. Não se poderá aprender nada com essa tradição?
As mulheres ordenadas, caminho ou obstáculo ao ecumenismo cristão?

[1] La Documentation Catholique, 19.06.1994, n.º 2096, pp 551-552; Ib. 553; Ib 03.07.1994 n.º 2097, pp 611-615
[2] Cf. J. M. R, Tillard, O.P., La “qualité sacerdotale” du ministère chrétien, NRTH, 5, 1973, pp 481-514
[3] Cf. Revista da Associação Oreundici, n.º 3, de Junho de 2013

POESIA DE TOLENTINO MENDONÇA PARA ESTE TEMPO



Existem palavras por nós ignoradas
vivem ao lado das que mais usamos
e nunca sabemos quando
uma delas em fuga
com a calibração precisa
surgirá para transtornar a neutralidade

a língua arrasta a noite ancestral
um vento de neve
cheio de folhas mortas
a idade que possuímos em segredo
sem que nenhuma documentação civil 
a detecte

as línguas são portas
que se abrem rangendo
para coisas que não existem

José Tolentino Mendonça.
“Bocca della Veritá.
In “Teoria da Fronteira”
Assírio & Alvim, maio de 2017


Nota: Proposta do caderno Economia do EXPRESSO

À SOMBRA DO PRIOR SARDO FOI CELEBRADO O DIA DA COMUNIDADE




Realizou-se hoje, sábado, 15 de junho, no Jardim 31 de Agosto, o Dia da Comunidade Paroquial, junto à estátua do Prior Sardo, fundador e dinamizador da paróquia de Nossa Senhora da Nazaré. A Eucaristia, fonte da nossa fé, foi presidida pelo nosso prior, Padre César Fernandes, que à homilia deixou um apelo, no sentido de todos assumirmos a tarefa da evangelização, que não é exclusiva «dos bispos e dos padres». 
Mais de 500 pessoas participaram no Dia da Comunidade, apesar de o sol escaldante se fazer sentir, número que excedeu as expetativas, talvez por ser o Jardim 31 de Agosto o verdadeiro centro cívico da Gafanha da Nazaré. Os trabalhos de organização estiveram a cargo dos Conselhos Económico e Pastoral e contaram com a colaboração sempre disponível do Agrupamento n.º 588 do CNE, todos dinamizados pelo prior César Fernandes, que no final da missa agradeceu os contributos dos que trabalharam com afinco, para que tudo corresse bem. E depois da Eucaristia veio o convívio com bifanas, rojões, caldo verde, doces, cerveja, vinhos, águas e sumos.
Os participantes ouviram do presidente da celebração propostas de uma maior envolvência na missão salvadora que nos veio de Jesus Cristo, sobretudo através do testemunho de vida e pela nossa dedicação em favor do próximo. Temos de ser «pessoas que perdoam, como o Senhor nos perdoou». 
Frisou que «é preciso estar sempre na linha da frente com as nossas vidas lúcidas e cheias de humildade e de simplicidade», neste tempo «cada vez mais materializado, mais paganizado e mais agnóstico», procurando ser «os apóstolos do século XXI».
Perante os mais fragilizados da vida, temos de assumir, «cada vez mais e melhor, as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres dos nossos dias». 
João Lagarto, Chefe do Agrupamento n.º 588 da Gafanha da Nazaré, disse-nos, entre bifanas, caldo verde e bebidas, com tudo coordenado como máquina afinada, que é com gosto que colaboram com a paróquia, mas lembrou que é missão do escutismo contribuir para a educação e formação cívica e religiosa dos membros das diversas secções. Desta feita, como noutras ocasiões, estão sempre disponíveis para colaborar com a paróquia. 
João Lagarto considerou que o Dia da Comunidade corre «sempre melhor quando se faz junto da igreja matriz». «Aqui torna-se tudo mais simples; as pessoas não têm que se deslocar», disse.
O chefe adiantou, entretanto, que a equipa, na qual os escuteiros se envolveram, era constituída pelos membros dos Conselhos Económico e Pastoral, não faltando as experiências colhidas noutras tarefas semelhantes. E na sua opinião, o número de pessoas ultrapassou as expetativas, «obrigando a equipa a procurar reforços», porque, doutro modo, «não conseguíamos alimentar toda a gente».
Carlos Rocha, Presidente da Junta de Freguesia, achou «extraordinária a ideia de realizar o Dia da Comunidade Paroquial» neste jardim, «mais próximo da população». E também conseguimos perceber «quanto é bom estar aqui».
Levantada a questão do aproveitamento do Jardim Oudinot, outra zona de lazer privilegiada da nossa terra, o autarca adiantou que aquele parque «tem solicitações variadas e demasiadas até, sendo bom apostar no Jardim 31 de Agosto, mais central e de fácil acesso para as pessoas». 
O Presidente ainda referiu que a Câmara Municipal de Ílhavo quer valorizar a Fábrica das Ideias, «virando-a para o exterior», numa perspetiva de «dinamizar este espaço com diversas iniciativas, envolvendo as nossas associações em projetos de interesse para as populações.

Fernando Martins

sexta-feira, 16 de junho de 2017

PAPA FRANCISCO — ÂNCORAS DA REFORMA DA IGREJA

Reflexão  de Georgino Rocha


O Papa Francisco é um ítalo-argentino, engenheiro de formação, jesuíta por vocação e franciscano por opção. O contexto em que vive antes de ser escolhido para a cadeira de Pedro em Roma, leva-o a enfrentar enormes desafios que enriquecem a sua dotada personalidade, credenciando-o para o desempenho de missões de “risco”. O estilo que transparece da sua presença e intervenções em público marca indelevelmente todos os que se preocupam com a humanidade e a criação, com a Igreja e sua missão na sociedade. A mensagem decorre transparente, como a água cristalina, e revela o sentido profundo do que está a acontecer como “rosto” histórico do amor de Deus misericordioso. Os contactos pessoais e os encontros de ocasião criam uma rede de comunicações que o fazem próximo e amigo. O seu estilo de vida irradia a alegria da fé que ilumina a caminhada em que se vê envolvido e que, de algum modo, protagoniza.
Tendo em conta o que de mais saliente se pode captar, a partir da periferia em que me encontro, desejo partilhar algumas observações breves que podem servir para fazer uma leitura crítica do que está em curso e das âncoras de esperança que darão consistência e estabilidade à reforma pretendida e a tornarão irreversível com o impulso do Espírito Santo.

1. Primeira âncora: a renovação do episcopado e do colégio cardinalício. Esta renovação constitui uma linha muito clara do agir do Papa Francisco. Nela explicita a sua intenção e com ela dá suporte sustentável ao que pretende. São bispos em profunda sintonia com o novo espírito reformista que deseja implementar, colocados em dioceses significativas ou serviços especiais; são cardeais que garantirão uma sucessão apostólica consequente.

2. Segunda âncora: a constituição do G9 (grupo de nove cardeais escolhidos pessoalmente pelo Papa) que reflecte com ele a reforma da Cúria Romana, o perfil dos bispos a nomear, a situação da Igreja, os projectos de renovação a implementar, os critérios a observar, e, certamente outros assuntos prementes, os dramas da humanidade e as forças em presença na conjuntura mundial, designadamente nas zonas em conflito.

3. Terceira âncora: a valorização do estatuto do bispo da Igreja diocesana, dos órgãos colegiais de discernimento e decisão como as conferências episcopais ou dos religiosos, dos conselhos presbiterais, dos organismos laicais ou afins. É o estilo sinodal que reforça a comunhão entre todos e responsabiliza cada um. É o apelo insistente aos presbíteros a que sejam “pastores” ao jeito do Bom Pastor, que cultivem o “cheiro a ovelha”. É a exortação solícita aos diáconos a que se dediquem às “novas periferias” no exercício da sua diaconia. É a indicação clara aos religiosos e leigos para que assumam os desafios actuais e façam avançar o relógio da hora histórica que vivemos.

4. Quarta âncora: o processo da reforma da Cúria romana. Este processo vai dando passos significativos: responsáveis de dicastérios são renovados e competências redefinidas; valorização de outros órgãos de serviço que agilizam o funcionamento, criam maior familiaridade e favorecem a descentralização.

5. Quinta âncora: o agir irradiante do Papa Francisco e as suas viagens apostólicas. Este agir abre novas dimensões à Igreja em saída missionária e, mediante a conversão pastoral, aviva o espírito e lança as estruturas indispensáveis, especialmente os espaços de acolhimento e de encontro, a Cúria diocesana, o cartório paroquial e os templos. A visão da Igreja, “a partir de baixo”, vai fazendo o seu caminho; a convicção séria de que o povo de Deus está dotado do sentido da fé manifesta-se progressivamente.

6. Sexta âncora: o povo humilde “das periferias” que tem um lugar especial no coração do Papa. E lhe corresponde, afluindo em grande número. Mobilizado para participar e deixar de ser multidão esquecida, sente o que está chamado a ser; portador de uma missão histórica, “viveiro” dos dons de Deus, sempre em renovação pela força do Espírito Santo. Os encontros com os movimentos populares apontam claramente para uma alternativa, bem como o apoio à dinâmica de partilha solidária das escolas de educação/formação; os Dias Mundiais dos Jovens lançam sementes de esperança que tendem a germinar e a crescer. A instituição do Dia Mundial dos Pobres, além do valor em si mesmo, é um símbolo das novas prioridades. 

7. Sétima âncora: a memória das experiências e os textos do magistério. O sonho profético de Francisco vai sendo escrito no coração das pessoas de boa vontade e dos cristãos, em homilias e discursos, mensagens, encíclicas e sobretudo exortações apostólicas pós-sinodais. Em todas elas sobressai o desejo de fidelidade crescente ao projecto de salvação do nosso bom Deus e de presença solícita e próxima a uma humanidade ferida que aspira à cura integral.

8. Oitava âncora: a atenção à diplomacia do Vaticano. A convicção do Papa, enraizado no Evangelho e em alguns períodos da história da Igreja, é a de que a sua missão de pastor universal comporta a intervenção na grande política, na mediação da paz entre os contendores, na criação de uma consciência alternativa à acomodação da ordem estabelecida. Sua e dos bispos, sobretudo a nível local onde as pessoas pobres mais sofrem. A renovação da Secretaria de Estado e a nomeação do Cardeal Parolin dão rosto institucional a esta vontade positiva do Papa Francisco, bem como a relação amiga e a concórdia gerada com os responsáveis das Igrejas e de outras instituições culturais e religiosas.

Em síntese, a dinâmica da reforma da Igreja conta com algumas âncoras de segurança. Outras poderão estar a surgir. O Papa Francisco, sempre aberto ao Espírito de Deus renovador, é homem de surpresas. Também os opositores à sua visão reformista parece que não abranda a obstrução crítica. Oxalá a tensão verificada seja salutar e faça surgir novos impulsos de fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo e aos desafios dos sinais dos tempos messiânicos.

ILHA TERCEIRA — CAIS DE ANGRA

Crónica de Júlio Cirino 

Cais de Angra

Igreja da Misericórdia 

Vasco da Gama

O Cais de Angra do Heroísmo é um lugar histórico muito frequentado pelos turistas que visitam a ilha Terceira. Os barcos que por aqui aproam provêem das mais diversas nacionalidades.
No socalco superior do Cais existe a Igreja da Misericórdia, erigida no Séc. XVIII, ladeada pelo Pátio da Alfândega, onde se encontra uma estátua em honra de Vasco da Gama que por aqui passou para enterrar o seu irmão no regresso de uma viagem que fizeram à Índia:

Paulo da Gama hu dos capittães que
acompanharão no descobrimento da Índia Oriental
seu irmão o heróico Dom Vasco da Gama
no ano de 1497 e voltando no de 1449, faleceu o
dito Paulo da Gama na Ilha Terceira e jaz sepultado
nesta capella mór de São Francisco.

O Cais de Angra, agora tão calmo, no passado foi alvo das pilhagens dos piratas e corsários que tentavam apoderar-se das riquezas trazidas pelas naus que aqui aproavam vindas da África, da Índia e do Brasil.

Angra do Heroísmo, 15 de Junho de 2017

Francisco não tem razão? (1)

Crónica de Anselmo Borges no DN 


Não tem razão o Papa Francisco quando, ele que acredita no Evangelho de Jesus enquanto notícia boa e felicitante para todos da parte de Deus e que segue os seus ensinamentos e prática, apela a que todos os católicos, começando por cardeais, bispos, padres, se convertam e sigam também o Evangelho?
Não tem razão quando proclama tolerância zero para essa tragédia que é a pedofilia do clero e estabelece regras claras, internacionalmente reconhecidas, para que acabem as máfias no banco do Vaticano e a lavagem de dinheiro e haja total transparência?
Não tem razão quando exige uma reforma profunda na Cúria Romana, que tem de estar ao serviço da Igreja universal? Não tem a Igreja de respeitar no seu seio os direitos humanos, que não pode pregar apenas para fora, nomeadamente o direito à liberdade de pensamento e de expressão? Não tem razão ao deixar campo livre à missão dos teólogos para poderem investigar?
Não tem razão ao querer que a Igreja enquanto instituição siga um caminho sinodal, isto é, um caminho que se trilha em conjunto, com a participação de todos, uma vez que a Igreja são todos os seus membros? Não tem razão ao declarar que os leigos têm de participar activamente nas decisões da Igreja e que às mulheres tem de ser dado o seu lugar, também em postos cimeiros de decisão, não podendo, como Jesus exigiu, ser discriminadas? De facto, enquanto organização, a Igreja, se quiser seguir o exemplo de Jesus e não ficar cada vez mais atrasada em relação ao mundo, tem dois problemas fundamentais a resolver: por um lado, a democratização e, por outro, a integração das mulheres, sem discriminação.
Não tem razão quando afirma que o celibato obrigatório não é dogma e que é preciso começar a pensar em ordenar homens casados, modelos de virtude e de participação activa na vida da Igreja?
Não tem razão quando denuncia o clericalismo e o carreirismo como "peste" na Igreja? E quando chama a atenção contra os "bispos-príncipes" e os "bispos de aeroporto"?
A Igreja Católica é hoje a única instituição verdadeiramente global. Contra a uniformidade, não tem razão Francisco quando pede uma Igreja que não funcione à maneira de esfera, mas que se realize segundo o modelo do poliedro, isto é, uma só Igreja, mas inculturada nos diferentes continentes e atendendo às várias culturas? Quando se entenderá que a Igreja já não é eurocêntrica e que o Papa não pode ser um monarca absoluto, mas sinal de unidade na caridade? Neste sentido, não tem razão Francisco ao não se referir a si mesmo como Papa, mas como bispo de Roma?
Não tem razão ao propor caminhos de progresso no ecumenismo, apelando por palavras e obras à unidade das diferentes Igrejas e confissões cristãs? Não tem razão ao seguir para Lesbos acompanhado do patriarca de Constantinopla, ao encontrar-se com o patriarca de Moscovo em Havana, ao querer que os 500 anos da Reforma sejam celebrados conjuntamente por católicos e protestantes e ao declarar que Lutero tinha razão e que não queria dividir a Igreja?
Não tem razão ao promover o diálogo inter-religioso de todas as religiões, mais concretamente com o islão moderado? De facto, ele sabe que o número de cristãos e muçulmanos juntos é superior a mais de metade da humanidade, de tal modo que faz sentido a pergunta: se nos entendêssemos todos, não haveria nessa compreensão uma força excepcional a favor da paz no mundo todo? Mas Francisco não tem igualmente razão quando denuncia como blasfema a violência em nome de Deus? E não tem razão também quando apela à comunidade internacional a favor dos cristãos, concretamente no Médio Oriente, vítimas de uma perseguição brutal? Não é verdade que, ainda antes das invasões ocidentais, estava já a caminho uma política de extermínio do cristianismo no Médio Oriente, onde, no início do século XX, os cristãos constituíam ainda um quinto da população? Não é hoje o cristianismo a religião mais perseguida do mundo?
Francisco é hoje um líder político-moral global, dos mais amados, senão o mais amado, dos mais influentes, senão o mais influente. E está ao serviço da paz mundial. Não tem razão, quando diz que a terceira guerra mundial está em curso, embora aos pedaços, às fatias, e o que mais teme é que essa guerra de repente expluda e se torne mesmo global e até nuclear, ameaçando a sobrevivência da humanidade?
Não tem razão quando escreve uma encíclica - "Laudato si" - sobre o meio ambiente e a ecologia integral, para que a humanidade toda tome consciência de que precisamos de salvar a nossa casa comum, pois podemos estar em vésperas de um cataclismo ecológico de dimensões imprevisíveis e irreversíveis? Não tem razão, ele que não é comunista nem marxista, quando proclama, com Jesus, que não é possível servir ao mesmo tempo a Deus Pai e Mãe de todos os homens e mulheres, sem excepção, e ao deus Dinheiro? Que a economia tem de estar ao serviço da pessoa humana, de todas as pessoas, e não da financeirização especulativa, que faz milhões de vítimas? Não é urgente a constituição de instâncias políticas globais, para a regulação dos mercados e da economia global?
Não tem o Papa Francisco razão quando afirma, por palavras e obras, que a Igreja não pode ser auto-referencial, já que a razão da sua existência é o serviço da humanidade? Não era o famoso bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que, com razão, dizia que "uma Igreja que vive para si morre por si"?
Então, porque é que Francisco tem opositores e inimigos? Mesmo sem querer canonizá-lo, a resposta é simples: se se quiser ser honesto, exactamente pelas mesmas razões que Jesus também os teve.

Nota: Imagem da Ecclesia

CHAMADOS E ENVIADOS A ANUNCIAR O EVANGELHO DA MISERICÓRDIA

Reflexão de Georgino Rocha


O entusiasmo das multidões em seguir Jesus contrasta radicalmente com a hostilidade dos fariseus. Aquelas, desde o início, seguem-no encantadas com os seus ensinamentos; estes chocados com o seu proceder, desconfiam cada vez mais da novidade que anuncia e das pretensões que revela. A situação daquelas desperta em Jesus sentimentos de compaixão benevolente; e a reacção destes provoca em Jesus uma atitude de atenção vigilante. Ninguém fica indiferente. Cada um, a seu modo, vai tomando partido. E hoje? A realidade dá-nos sinais contrastantes que muito nos interpelam.

O movimento espontâneo da Galileia surge a partir da acção missionária de Jesus que percorre cidades e aldeias e ensina nas sinagogas, anuncia a boa nova do Reino de Deus e cura toda a espécie de doenças. Mateus, o autor que narra os factos, faz-nos advertir num modo original de proceder: Ver a realidade, sentir compaixão, agir no presente, prevendo e acautelando o futuro. O cansaço e o abatimento das multidões estavam relacionados com a falta de pastores, de serem como rebanho abandonado e esquecido. O amor compassivo torna-se criativo e nasce o projecto de prover a que haja quem cuide do povo de Deus e tenha em conta o exemplo de Jesus, o Bom Pastor, como ele mesmo afirmará mais tarde. Cuide e sirva.
A poetisa chilena, Gabriela Mistral, 1889-1957, (aaldeia.net) dá rosto literário «à imensa alegria de servir» em versos cheios de realismo e de verdade. Transcrevem-se alguns:

Há a alegria de ser sincero e de ser justo; há, porém, mais do que isso, a imensa alegria de servir. Como seria triste o mundo se tudo já estivesse feito, se não houvesse uma roseira para plantar, uma iniciativa para lutar! Não te seduzam as obras fáceis. É belo fazer tudo o que os outros se recusam a executar. Não cometas, porém, o erro de pensar que só tem merecimento executar as grandes obras; há pequenos préstimos que são bons serviços: enfeitar uma mesa, arrumar uns livros, pentear uma criança… Deus, que nos dá fruto e luz, serve. Poderia chamar-se: o Servidor. E tem os seus olhos fixos nas nossas mãos e pergunta-nos todos os dias: Serviste hoje?

O primeiro passo do projecto de Jesus, que se manterá para sempre, consiste em pedir ao dono da seara que mande trabalhadores para a sua seara. É feito em linguagem rural e agrícola, mas que se alarga a todas as culturas, Mateus apresenta duas verdades sublimes: a seara/o povo é de Deus; a primeira atitude do discípulo/cristão é a oração humilde e confiante. Verdades que servem de referência constante à acção apostólica de todos os tempos. Em sintonia afectiva com o único Senhor da missão, aferida no diálogo de oração insistente, encontra o trabalhador da messe a verdade do seu pensar e a norma do seu agir.

A esta recomendação primeira, segue-se o chamamento daqueles que já tinham alguma familiaridade com Jesus. Mateus dá-lhes o nome de apóstolos e indicam que são doze. Esta precisão é significativa: Não há gente anónima, cada pessoa tem nome próprio e, às vezes, apelido; o número doze dos escolhidos simboliza todo o povo de Deus, como outrora as doze tribos de Israel. A familiaridade será crescente e amadurecerá no dia-a-dia com surpresas agradáveis e com fracasso rotundos. Alguns, como Pedro, Tiago e João, terão momentos especiais de proximidade e de confidência. Em toda a caminhada por vilas e aldeias, os apóstolos sentem o apelo a centrarem as suas atenções na novidade de Jesus: o Reino que anuncia e está em realização. Apelo que é de sempre. Especialmente numa época, como a nossa, marcada pela cultura do egoísmo e da acomodação, da indiferença e do “descarte”. O cultivo do ego acentua a avareza dos sentimentos e da relação. 
“Tem-se muitas vezes a tentação de negar ao próximo não tanto o dinheiro (um gesto de caridade por vezes não custa muito e põe a consciência em paz) mas sobretudo o próprio tempo na escuta, na proximidade, na ternura, afirma o Cardeal Ravasi, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura. Paradoxalmente esta avareza é muito mais séria porque recusa não tanto um bem material, ainda que importante, mas uma realidade íntima e profunda que não pode ser adquirida. Todos, creio, devemos confessar termos dito não a quem queria apenas ouvir-nos ao telefone para ter uma palavra boa, ter evitado quem desejava ser escutado, ter recusado a companhia a uma pessoa só e doente. Também esta é uma avareza mesquinha”.
Centrados no anúncio do Reino ( cujos valores fundamentais são em Jesus Cristo a verdade para a inteligência, a liberdade para pensar e agir, a mansidão e humildade para se expressar, a justiça e a paz para edificar a sociedade e revelar a dignidade humana), os apóstolos são enviados em missão. E partem pelos caminhos do Império romano, procurando chegar onde as pessoas se encontram; pelas vias da cultura, ajudando-a a assumir e valorizar a riqueza das suas múltiplas expressões; pelas sendas do espírito, estimulando a libertação de preconceitos inibidores e favorecendo a abertura ao Transcendente e à comunhão com Deus em Jesus Cristo.

Ide! Os caminhos são novos, a missão é de sempre. Há novos rostos, novas linguagens, novas proximidades de lonjuras quase esquecidas, o amor de misericórdia está em todos e perpasse pelos gestos de cada um.