domingo, 31 de dezembro de 2017

NA AURORA DE UM NOVO ANO


No balanço próprio do final de 2017, prestes a passar à história, olhamos para 2018 com esperanças ciclicamente repetidas. O novo ano, no íntimo das nossas perspetivas, vai ser muito melhor. 
Propositadamente, regressei a 2004 para reler o que havia escrito no último dia do ano. Tinha criado, nesse mês e ano, o meu blogue Pela Positiva. E manifestei, então, o desejo de que todos devíamos assumir a nossa quota-parte nas responsabilidades de mudar o mundo para melhor. O mundo não estaria, obviamente, muito bem.
Em 2010 já se falava em crise e por isso sugeri que se avançasse, com o otimismo possível e necessário, para um novo ano de lutas, no sentido de conquistarmos o tempo perdido. De mangas arregaçadas, de olhar firme em novos horizontes e de coragem para ultrapassar obstáculos, é nosso dever caminhar em frente, na certeza de dias melhores, disse na altura.
Daqui a uma horas, como é tradição por estas bandas, haverá foguetes, sirenes dos barcos nos portos aqui à porta a assinalarem a sua presença. E outras barulheiras de gente bem disposta animarão a noite. Para alguns, não faltará o espumante, a alegria a rodos, as passas, o otimismo, tudo para afugentar o ano velho de triste memória para muitos, mas também para receber com esperança o ano novo. Outros ficarão calados, porventura esquecidos, imersos em recordações felizes, abertos a sonhos sempre possíveis. É, no fundo, uma forma de receber quem chega e nos bate à porta: O NOVO ANO. Oxalá 2018 não se esqueça do modo gentil como o acolhemos. E daqui a um ano, falaremos disso, se Deus quiser.

Fernando Martins

Nicolau Santos — Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.

Luís Vaz de Camões
in "Sonetos"

Nicolau Santos deixa o EXPRESSO ao fim de “19 anos, 9 meses, 30 dias e uma paixão”, como diz no texto de despedida publicado naquele semanário de referência que acompanho desde a sua fundação. Não sendo muito dado às Economias, embora da minha saiba curar bem, porque sou poupado, lia as suas opiniões em jeito de balanço semanal, para me sentir minimamente informado.
A dada altura, que não posso precisar, Nicolau Santos começou a publicar poesia no meio da aridez da Economia, talvez para amaciar a frieza dos números e a ganância dos resultados positivos no mundo do liberalismo económico, tantas vezes sem alma. E eu passei a gostar mais das suas considerações numa área em que foi e é especialista. 
Na despedida, Nicolau Santos, que também é poeta, brindou-nos, deste vez, com Luís Vaz de Camões, selecionando “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Quis fechar com chave de ouro e penso que acertou. 

FM

Bento Domingues — Um chora, outro faz chorar

1. A inspiração do concílio Vat. II (1962-1965) foi retomada com vigor, originalidade e alegria, por um bispo argentino, em 2013. 2017 foi o ano da contestação ruidosa ao Papa Francisco, acusado, por grupos conservadores, de oito heresias! Como recusa o papel de vedeta, continua ocupado, sobretudo, com as vítimas das mil formas de pobreza e exploração de crianças, adolescentes, adultos, velhos, doentes e com as guerras que provocam mundos de refugiados. Os seus gestos não se destinam a chamar a atenção para a sua pessoa ou para a figura papal, mas sim para a degradação da Casa Comum de que todos somos responsáveis. Não se mostra fascinado por viagens triunfais. Os seus destinos são lugares e situações, onde é preciso estabelecer pontes de entendimento. Tudo isso é conhecido. Não se refugia, porém, no mundo dos grandes princípios, porque sente que uma fé que não nos sacode é uma fé que deve ser sacudida.
Na apresentação dos votos natalícios aos membros da Cúria Romana (21.12.2017), continuou o estilo já adoptado em anos anteriores, mas noutra direcção. Os meios de comunicação destacaram, apenas, uma frase que ele usou, embora não tenha sido cunhada por ele: “Fazer as reformas em Roma é como limpar a Esfinge do Egipto com uma escova de dentes.” Serve para dizer que a sua determinação encontra muitas resistências, mas não vai desistir.
Sabe que existem conluios ou pequenos clubes que representam um cancro infiltrado nos organismos eclesiásticos e, de modo particular, nas pessoas que lá trabalham. Desce ao concreto na denúncia de um outro perigo: “o dos traidores da confiança ou os que se aproveitam da maternidade da Igreja, isto é, as pessoas que são cuidadosamente seleccionadas para dar maior vigor ao corpo e à reforma, mas — não compreendendo a alçada da sua responsabilidade — deixam-se corromper pela ambição ou a vanglória e, quando delicadamente são afastadas, autodeclaram-se falsamente mártires do sistema, do ‘Papa desinformado’, da ‘velha guarda’... em vez de recitar o ‘mea culpa’. A par destas pessoas, há ainda outras que continuam a trabalhar na Cúria e às quais se concede todo o tempo para retomar o caminho certo, com a esperança de que encontrem, na paciência da Igreja, uma oportunidade para se converterem e não para se aproveitarem. Isto naturalmente sem esquecer a esmagadora maioria de pessoas fiéis que nela trabalham com louvável empenho, fidelidade, competência, dedicação e também com grande santidade”.
O Papa Francisco não está preocupado com uma Cúria de puros anjos a quem não haja nada a apontar, uma instituição exemplar para autoconsolo. Seria ficar numa reforma ad intra, numa estética organizativa. O que lhe importa é uma Igreja ad extra, de saída, de diálogo com crentes e não crentes, para chegar a todas as periferias e colocá-las, não só no centro das preocupações das Igrejas e das Religiões, mas também no centro da política mundial.

2. Um caso exemplar foi a sua recente viagem apostólica a Myanmar e ao Bangladesh, países de minoria católica, mas de grande significação na promoção do diálogo inter-religioso em condições extremamente complexas, dada a grave violação dos direitos humanos. A Amnistia Internacional considera que as autoridades de Myanmar estão a aplicar, ao povo rohingya, no Estado de Rakhine, um sistema comparável ao apartheid, descrito como uma “prisão a céu aberto”.
No avião de regresso, foi questionado sobre todos os passos desse percurso. O mais importante era a questão da situação do povo rohingya. Uma jornalista perguntou-lhe o que tinha sentido no encontro com esses exilados no Bangladesh.
Resposta do Papa: “Aquilo não estava programado assim. [...] Depois de muitos contactos, inclusive com o governo, com a Cáritas, o governo permitiu a viagem destes que vieram ontem. [...] Aquilo que o Bangladesh faz por eles é estupendo, é um exemplo de acolhimento. Um país pequeno, pobre, que recebeu 700 mil refugiados...”
“Vinham cheios de medo, não sabiam que fazer. Alguém lhes dissera: ‘Cumprimentais o Papa, não dizeis nada.’ [...] Chegou o momento de eles virem cumprimentar-me. Em fila indiana: já não gostei disto, um atrás do outro. O pior é que, imediatamente, queriam expulsá-los do palco. Nesse momento, irritei-me e levantei um pouco a voz — sou pecador — e repeti muitas vezes a palavra ‘respeito’, respeito! Fiz parar a evacuação e eles ficaram lá. Em seguida, depois de os ouvir um a um com a ajuda do intérprete que falava a língua deles, comecei a sentir algo dentro de mim: ‘Não posso deixá-los ir embora, sem dizer uma palavra’; e pedi o microfone. E comecei a falar... Não me lembro do que disse. Sei que, a dada altura, pedi perdão. Penso que duas vezes, não me lembro.”
“Entretanto, a sua pergunta é: ‘Que senti.’ Naquele momento, eu chorava. Fazia de modo que não se visse. Eles choravam também. Depois pensei que estávamos num encontro inter-religioso, mas os líderes das outras tradições religiosas estavam distantes. [Então disse:] ‘Vinde também vós; estes rohingya são de todos nós.’ E eles cumprimentaram. Eu não sabia o que dizer mais, porque fixava-os, cumprimentava-os... Veio-me este pensamento: ‘Todos nós, líderes religiosos, já falámos. Peço a um de vós que faça uma oração, um do vosso grupo.’ Penso que foi um imã, um ‘clérigo’ da sua religião, que fez aquela oração e eles também rezaram ali connosco. Ao ver todo o caminho percorrido, senti que a mensagem tinha chegado. Não sei se respondi à sua pergunta. Uma parte estava programada, mas a maior parte saiu espontaneamente.”

3. O Papa Francisco chorou com aqueles exilados. Por desgraça, ensinaram a Donald Trump a oração de S. Francisco ao contrário: onde houver paz, que eu leve a guerra; onde houver amor, que eu leve o ódio; onde houver perdão, que eu leve a ofensa; onde houver a união, que eu leve a discórdia; onde houver a verdade, que eu leve o erro, a mentira; onde houver esperança, que eu leve o desespero; onde houver alegria, que eu leve a tristeza; onde houver luz, que eu leve as trevas.
D. Trump parece ter uma paixão especial pelo caos. Sem a promoção da desordem mundial, sem fazer sofrer, sem fazer chorar, não sabe o que fazer como Presidente dos EUA, um cego guia de muitos cegos.
Não vale a pena diabolizar este senhor da guerra e do comércio das armas. É preferível que todos os cristãos, fundamentalistas ou não, o saibam ajudar a descobrir a verdadeira oração de S. Francisco: onde houver guerra, que eu leve a paz. É muito melhor para todos!
Bom Ano!

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

MENSAGEM DO PAPA PARA O DIA MUNDIAL DA PAZ


No primeiro dia do ano de 2018, celebra-se o 51.º Dia Mundial da Paz. O Papa Francisco, atento, como sempre, ao mundo sofredor, dedica a sua mensagem aos “Migrantes e refugiados: homens e mulheres em busca de paz”. E a abrir, formula votos de paz a todos as pessoas e a todas as nações da terra, lembrando que a paz, que os anjos anunciam aos pastores na noite de Natal, é «uma aspiração profunda de todas as pessoas e de todos os povos, sobretudo de quantos padecem mais duramente pela sua falta», e dentre estes, que traz presente nos seus pensamentos e na sua oração, quis «recordar de novo os mais de 250 milhões de migrantes no mundo, dos quais 22 milhões e meio são refugiados».
Atrevo-me a dizer que a leitura da Mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz é obrigatória para todos os católicos e para todos os homens e mulheres de boa vontade, por imperativo de consciência. O Papa, a voz mais autorizada da Terra no presente, dirige-se a todos, em especial aos que pretendem viver e lutar pela paz no mundo, começando na família e estendendo-se depois às comunidades locais e aos círculos mais alargados, sobretudo aos palcos de guerras e violências e de políticas opressoras.

Ler mensagem aqui

Georgino Rocha - Em Jesus, Deus tem Mãe


Santa Maria, Mãe de Deus

Maria surge na liturgia do início do Ano com o título de Santa Mãe de Deus. Título que distingue a sua especial vocação e singular missão. Título que enaltece a humanidade que ela representa. Título que nos faz intuir e acolher que, em Jesus, Deus tem Mãe. Que alegria e encanto! Que apelo a rezarmos com grande devoção: Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores! Que conforto para o nosso esforçado peregrinar nos tempos de intempérie, como os actuais!
Lucas, o evangelista narrador (Lc2, 16-21), leva-nos à gruta de Belém e faz-nos ver uma cena maravilhosa: o encontro dos pastores com “Maria, José e o Menino”. A sobriedade da descrição realça a grandeza da mensagem. E a alusão à atitude de cada um dos intervenientes configura um quadro muito expressivo da maravilha/mistério ali visualizado. O Menino está deitado na manjedoura. Os pastores contam o que os anjos lhes haviam anunciado. Maria, em silêncio, ouvia e conservava em coração agradecido. José, recolhido a um canto, nem deixa perceber reacção, que será certamente de grande admiração. E todos se maravilhavam pelo acontecido. Os pastores mensageiros regressam à vida quotidiana, à pastorícia, exultantes por tudo o que tinham ouvido e visto, cantando o alcance da experiência vivenciada.
O Menino tem nome. Não é um ser indiferenciado, letra ou número. Nome indicado pelo anjo Gabriel, o mensageiro das boas notícias. Nome que é inscrito nos registos oficiais do Templo de Jerusalém por José e Maria, sua Mãe. Nome que sempre o acompanha e fica como memória perpétua na inscrição da cruz no Calvário, a mando de Pilatos. Com o nome que simboliza a sua vocação pessoalíssima de Salvador da humanidade, “Jesus é circundado, conhece o gesto que simboliza a sua pertença ao povo da aliança, a sua integração nas relações familiares e sociais”. (Manicardi Comentário à Liturgia Dominical e Festiva, p. 39).
Jesus pertence a Israel, o povo que é de Deus, a Maria e a José de quem recebe o carinho e a educação familiares, aos avós e vizinhos com quem convive e se socializa, ao Templo com a sua vasta rede de leis e ritos, de práticas e tradições. Jesus entra na realidade que envolve a vida e tece a sua moldura cultural, abrindo a “janela” do mundo, horizonte maior da sua missão salvadora. E nós a quem pertencemos? Pergunta crucial que reclama uma resposta pessoal e clara. Sempre!
“É preciso reconhecermos o mistério em que estamos envolvidos e pelo qual somos acolhidos; é preciso reconhecermos o mistério do outro; é preciso tornarmo-nos atentos à presença divina que nos visita através das presenças das criaturas. A pertença a Deus passa através de pertenças horizontais, familiares, comunitárias”. (Manicardi, p. 40). As relações com o outro e com a comunidade constituem um teste qualificado da nossa pertença a Deus e da nossa fé, que sai confirmada ou desmentida. Façamos a prova da autenticidade. Veremos que é desafiante.
O nome de Jesus significa “Deus salva”. A narrativa bíblica descreve os factos mais marcantes da história da salvação, que atinge a plenitude na vida e missão de Jesus de Nazaré, com os capítulos finais: o trágico pela morte que o elimina; e o da feliz ressurreição pela aceitação incondicional que Deus Pai lhe mostra na manhã da Páscoa gloriosa. “Se os pais exprimem o que desejam para os filhos, dando-lhes o nome, também Deus indica o seu desejo para toda a humanidade ao indicar a Maria o nome que havia escolhido para Jesus.
Deus salva entrando na condição de quem necessita de ser salvo e selando com ele uma relação de amizade envolvente. “Sem ti, Deus não te salvará”, afirma Santo Agostinho. De que precisamos de ser salvos? E o contexto em que vivemos, o nosso ambiente familiar e o mundo do entretenimento, de violências e guerras?
A paz emerge com toda a força como a maior necessidade de cada pessoa e de toda a humanidade. Maria, a Mãe de Jesus, o Príncipe da Paz, é invocada também como a Senhora da Paz.
Acompanhemos o Papa Francisco que envia à Igreja uma mensagem muito apelativa dedicada aos “Migrantes e refugiados: homens e mulheres em busca de paz”. Diz o Santo Padre: “Com espírito de misericórdia, abraçamos todos aqueles que fogem da guerra e da fome ou se veem constrangidos a deixar a própria terra por causa de discriminações, perseguições, pobreza e degradação ambiental.
Estamos cientes de que não basta abrir os nossos corações ao sofrimento dos outros. Há muito que fazer antes de os nossos irmãos e irmãs poderem voltar a viver em paz numa casa segura. Acolher o outro requer um compromisso concreto, uma corrente de apoios e beneficência, uma atenção vigilante e abrangente, a gestão responsável de novas situações complexas que às vezes se vêm juntar a outros problemas já existentes em grande número, bem como recursos que são sempre limitados. Praticando a virtude da prudência, os governantes saberão acolher, promover, proteger e integrar, estabelecendo medidas práticas, «nos limites consentidos pelo bem da própria comunidade retamente entendido, [para] lhes favorecer a integração».
O Papa Francisco e no seu seguimento muitos dos nossos Bispos insistem na necessidade de promovermos a cultura do encontro que tem o selo da fraternidade sem fronteiras e faz brilhar a chancela da dignidade inviolável da cada ser humano. E que Maria, a Senhora da Paz, nos dê a sua bênção de Mãe de Deus realizada em Jesus, o Salvador.

Georgino Rocha

sábado, 30 de dezembro de 2017

Anselmo Borges - O tempo para o diálogo inter-religioso

1. Quando se olha para a situação do mundo, é o teólogo Hans Küng quem tem razão: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (atitude ética) global, um ethos mundial."

2. A religião tem na sua base a experiência do Sagrado. Crente é aquele que se entrega confiadamente ao Mistério, ao Sagrado, Deus, esperando dele sentido último, salvação. De facto, as religiões aparecem num momento segundo: são manifestações e encarnações, necessárias e inevitáveis, da relação das pessoas com Deus e de Deus com as pessoas. São mediações, construções humanas e, por isso, têm do melhor e do pior, entendendo-se, também a partir daqui, que o diálogo inter-religioso tem de assentar nalguns pilares fundamentais.
Todas as religiões, na medida em que não só não se oponham ao humano mas, pelo contrário, o dignifiquem e promovam, têm verdade. Outro pilar diz que todas são relativas, num duplo sentido: nasceram e situam-se num determinado contexto histórico e social e, por outro lado, estão relacionadas com o Sagrado, o Absoluto, Deus. Estão referidas ao Absoluto, Deus, mas nenhuma o possui, pois Deus enquanto Mistério último está sempre para lá do que possamos pensar ou dizer. Precisamente porque nenhuma possui Deus na sua plenitude, devem dialogar para, todas juntas, tentarem dizer menos mal o Mistério, Deus, que a todas convoca. Assim, por paradoxal que pareça, do diálogo fazem parte também os ateus e os agnósticos, porque estando de fora mais facilmente podem ajudar os crentes a ver a superstição e a inumanidade que tantas vezes envenenam as religiões.
Exigência intrínseca da religião na sua verdade é a ética e o compromisso com os direitos humanos e a realização plena de todas as pessoas. A violência em nome da religião contradiz a sua natureza, que é a salvação. Face a um Deus que mandasse matar em seu nome só haveria uma atitude digna: ser ateu.
Dois princípios irrenunciáveis: a leitura não literal mas histórico-crítica dos Livros Sagrados e a laicidade do Estado, que não deve ter nenhuma religião, para garantir a liberdade religiosa de todos. Evidentemente, a laicidade não se pode de modo nenhum confundir com o laicismo. De facto, a religião tem de ter lugar no espaço público, pois é uma dimensão do humano e faz parte da cultura.

Anselmo Borges no DN

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Alexandra Lucas Coelho - A voz de um outro futuro


«Na sua mensagem de 25 de Dezembro, o Papa Francisco começou por aqui: “Enquanto sopram no mundo ventos de guerra e um modelo de progresso já ultrapassado continua a produzir degradação humana, social e ambiental...” É difícil não querer citar o Papa Francisco quando o ouvimos ou lemos porque há no que ele diz, nas palavras escolhidas, uma qualidade rara da própria palavra, do verbo resgatado à usura, ao abuso. Quem já tenha estado no meio de uma multidão a escutar Francisco é testemunha de como este papa tem uma extraordinária capacidade empática, que vem da postura, da voz, da entoação, da proximidade, ou humanidade, que consegue pôr no que diz, sem nada soar a falso, ou a esforço. Mas, além disso, Francisco devolve às palavras uma força que só por si é acção. Quem diz estas palavras tem o que dizer, e di-lo porque tem de ser.»

NOTA: Texto  de Alexandra Lucas Coelho no Sapo. Uma leitura  para todos os meus amigos.

“ROSTOS DE MISERICÓRDIA - ESTILOS DE VIDA A IRRADIAR”

O mais recente livro de Georgino Rocha




“ROSTOS DE MISERICÓRDIA - ESTILOS DE VIDA A IRRADIAR” é o mais recente livro de Georgino Rocha, presbítero da Igreja Aveirense, a ser lançado no próximo dia 17 de janeiro, no CUFC (Centro Universitário Fé e Cultura), pelas 21h15, contando com a apresentação do Prof. Carlos Borrego e o apoio das comissões diocesanas da Cultura e da Justiça e Paz, bem como da editora Tempo Novo. Trata-se de um trabalho com reflexões, relatos e testemunhos de pessoas que foram, e são, no mundo conturbado dos nossos dias, autênticos sinais visíveis da misericórdia de Deus.
D. António Marto, Bispo de Leiria-Fátima, que prefacia o livro, sublinha a importância da proclamação do Ano Santo da Misericórdia pelo Papa Francisco, que foi «um ato profético». Melhor que ninguém, o Santo Padre faz uma leitura em profundidade da época atual do mundo «dilacerado, ferido, cheio de feridas na vida pessoal, familiar e social», e, ao mesmo tempo, «cínico em virtude da globalização da indiferença, do individualismo mais exacerbado e da cultura do descartável». E, citando mais uma vez o Papa Francisco, diz: «Sem a misericórdia temos hoje poucas possibilidades de compreensão, de perdão, de amor. Por isso não me canso de chamar a Igreja à revolução da cultura.»
O Bispo de Leiria-Fátima salienta, noutro passo do "Prefácio", que o Padre Georgino procurou responder à «questão de Deus no nosso tempo», superando a «imagem de Deus justiceiro, tremendo e violento», pondo em evidência, contudo, «a face de amor misericordioso e de benevolência», graças a uma linguagem «mais propositiva, dialógica e existencial, própria do estilo de vida irradiante». 
D. António Marto afirma que autor nos apresenta o amor misericordioso que nos ajuda «a ler com mais profundidade e com maior verdade o mundo contemporâneo», não focando apenas os aspetos negativos, mas levando-nos a «descobrir os aspetos e os germes positivos que o fermentam, tais como os anseios de uma cultura de misericórdia, ou seja, a cultura do encontro e do diálogo face à cultura da indiferença e do descartável». 
Na “Chave de Entrada: A fragilidade humana e a misericórdia”, Georgino Rocha salienta que este é o tempo da misericórdia porque «Cada dia da nossa caminhada é marcado pela presença de Deus, que guia os nossos passos com a força da graça que o Espírito infunde no coração», mas também o é para que «os pobres sintam pousado, sobre si, o olhar respeitoso, mas atento, daqueles que, vencida a indiferença, descobrem o essencial da vida». Mas ainda é o tempo da misericórdia, para que cada pecador não se canse de pedir perdão e sinta a mão do Pai, que sempre acolhe e abraça».
O autor refere na “Apresentação”, com o subtítulo “Quero acordar a aurora”, que, tal como o salmista, «é seu propósito fazer ressoar, em todo o universo, que a fidelidade do Senhor é para sempre e o seu amor é maior do que tudo quanto existe». E defende que «a voz da consciência continua a fazer-se ouvir», sobretudo «em experiências que semeiam os germes do futuro e em pessoas que são amigas do humano integral, que há em todos, ainda que sofra mutilações graves». Por isso, Georgino Rocha afirma que é necessário «praticar o discernimento evangélico», base da interpretação dos «sinais messiânicos», procurando ser coerente. E nas opções, lembra que urge «praticar a pedagogia da liberdade». 
Frisa, depois, que os Rostos de Misericórdia são pessoas concretas com «Estilo de vida a irradiar», com nome registado «no livro da vida» e com «identificação assinalada em obras notáveis reconhecidas pelas sentinelas do bem comum e do bom senso, com memória perdurável inscrita no coração de milhões e milhões de pobres que são assistidos e libertos da opressão que vitimiza a sua dignidade humana».
Georgino Rocha dedica o trabalho — “ROSTOS DE MISERICÓRDIA - ESTILOS DE VIDA A IRRADIAR”— Ao Papa Francisco, incansável missionário da Misericórdia, da Paz e da Esperança; A Dom António Francisco dos Santos, o bispo da proximidade amiga e do sorriso e da bondade contagiantes; Às famílias cristãs, chamadas a ser oásis de misericórdia e escolas de acompanhamento, focos irradiantes da alegria do amor e da nova aurora que desponta para a humanidade e para a Igreja, apesar das fragilidades com que se debatem. 

Fernando Martins

Georgino Rocha — Em família, Jesus cresce em sabedoria



Festa da Sagrada Família


Lucas, o narrador dos relatos da Infância de Jesus, traz-nos, hoje, o estilo de vida da família de Nazaré, após a apresentação do Menino no templo de Jerusalém. (Lc 2, 22 e 39-40). E a Igreja destaca este estilo de vida como característica peculiar da Sagrada Família, dedicando-lhe a festa que estamos a celebrar, e como foco inspirador de toda a família humana, especialmente a cristã.
De facto, é neste modelo ideal, que os textos evangélicos apresentam, que se vão “desenhando” os valores estruturantes de toda a convivência humana, relacional, conjugal, eclesial; de toda a família em que as relações interpessoais estão marcadas pela vida de “comunhão” no seio de uma comunidade que São João Crisóstomo qualifica de “igreja doméstica”. Feliz expressão que desvenda horizontes novos que mobilizam as melhores energias humanas. Feliz expressão que mostra a riqueza de uma realidade insubstituível, apesar da fragilidade que a constitui. Feliz expressão que alia a seiva que circula nas veias do corpo aos laços da fé, gerando uma harmonia digna do maior apreço.
Hoje, somos convidados a relançar o olhar atento e carinhoso à nossa família de sangue, a admirar o que lhe dá vigor e consistência e é fruto do nosso cuidado constante, a reconhecer que há sombras a iluminar e limites a superar. Numa atitude sadia, sem ingredientes de fantasia adolescente nem de desilusão acabada. O Natal ensina-nos a viver um realismo confiante.
Lucas condensa o que acontece a Jesus na família de Nazaré em duas simples frases: “ O Menino crescia, tornava-se robusto e enchia-se de sabedoria. E a graça de Deus estava com Ele”. Resumo denso e eloquente, onde brilha a luz que irradia para todo o mundo; onde, para evitar dispersões, se resume o núcleo da novidade cristã, que convém saborear e transmitir.
A família de Nazaré mostra-nos o valor do acolhimento que se abre à surpresa de Deus e, como humana que é, dá o seu consentimento livre após o diálogo de clarificação indispensável. O Evangelho de João faz-nos ver a origem da decisão de Deus quando o Seu Verbo de faz carne. Lucas e Mateus narram com delicados pormenores o que acontece a Maria e José. E, segundo eles, Jesus é o Mestre do acolhimento incondicional. Que oportunidade de mensagem quando tantas atitudes mostram fronteiras fechadas, casas trancadas, corações blindados. A par de tanta abertura e solidariedade, a sociedade e a Igreja, a família e as associações humanitárias ainda persistem na discriminação e na exclusão. Nem todas por igual, é certo. Mas com acentos bem notórios e indignos da nossa dignidade comum.
Maria e José acolhem-se mutuamente: como noivos que aguardam o tempo necessário para a vida em comum; como responsáveis pela vida nascente da parte de Deus em Maria; como fiéis cuidadores do Menino e de suas múltiplas necessidades. O relato deste cuidado traz-nos um fio de ouro a brilhar nas peripécias que vão ocorrendo e nas atitudes de paciência humilde e de coragem confiante que vão cultivando.
Da experiência inicial de acolhimento mútuo, abrem-se aos outros, a Isabel e a João Baptista, a Simeão, a Ana e a tantos nazarenos que lhe batem à porta ou encontram na rua. A vizinhança constitui um bom espaço para o exercício deste valor humano. E a família alargada, também, sobretudo os idosos que o Papa Francisco considera, por vezes, “exilados ocultos” nas suas casas ou na dos filhos, em lares e residências.
Do aconchego na gruta de Belém, apesar da pobreza inclemente, e silêncio contemplativo e da admiração suscitada pelo que se diz do seu Menino, são forçados a partir para o desterro, a enfrentar a intempérie do deserto, a abrigar-se em qualquer recanto do país de destino. São induzidos a regressar à terra natal, a estar em Jerusalém e satisfazer as prescrições legais, a debater-se com desencontros numa das idas ao Templo com o seu Menino, agora adolescente.
As fronteiras do seu coração iam alargando. E as margens do possível atingem uma medida única: a de ver o Filho deixar a casa familiar e começar a sua missão em público, como profeta itinerante nas terras da Galileia. Atitude quem nem os outros familiares compreendem. Só se aceita por amor confiante e dedicação exclusiva porque “a graça de Deus estava com Ele”, afirma Lucas na conclusão da leitura de hoje.
Maria, sua Mãe, deixa-nos um eco da sua estranheza: “Filho, porque procedeste assim connosco?” Pergunta a que Jesus responde com outra que desvenda a nova dimensão que já vive e que se propõe anunciar: “Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?”. O caminho para Jerusalém deixa-nos indicações preciosas e claras sobre este ponto.
Os conterrâneos de Nazaré fixam-se no tempo em que vive com eles, ia à sinagoga, trabalha e convive. “Nascido de Maria, Jesus de Nazaré andou pelos caminhos de terra da humanidade, afirma em síntese de retrato que alarga os tempos iniciais.
Sim é Ele, podemos dizer nós com fé de convicção. A sua Família ficará a ser para sempre o referencial para a nossa humanidade e os seus valores a iluminar os nossos esforços generosos em lhes darmos rosto irradiante de beleza, amor e paz. E a Igreja, como mãe solícita, sobretudo das pessoas mais necessitadas, recomenda o Papa Francisco: “deve pôr um cuidado especial em compreender, consolar e integrar”, evitando agravar a sua situação já tão sofrida. (AL 49).
A família de Nazaré ensina-nos a ser agradecidos. Tal como Jesus tem em José e Maria os seus referentes iniciais, assim todo o ser humano necessita absolutamente de os ter. Não pode haver orfãos biológicos, sociais, culturais ou religiosos. O sentimento de pertença está primeiro. O olhar sorridente da mãe e os braços robustos do pai ajudam a estrurar a personalidade de cada um/a.
Em família, Jesus crescia em humanidade, robustecia-se em sociabilidade e enchia-se de sabedoria. Oxalá se possa dizer o mesmo de todas as crianças do mundo porque beneficiam do suporte de um ambiente familiar tão consistente que os pais e avós lhes proporcionam.

Georgino Rocha