domingo, 23 de julho de 2006

Representações do sagrado e conflito de liberdades - 3

Representações
do sagrado e liberdade
O sagrado enquanto tal não tem representação. Todas as formas ou fórmulas que procuram atestar o sagrado são da ordem das mediações, da linguagem. O sagrado apresenta-se à consciência humana como um processo dialogal, comunicacional, onde se instaura uma relação entre a experiência humana e a percepção de uma dimensão da realidade transcendente, não domável e não apropriável. A objectivação dessa realidade sempre foi constitutiva da ordenação da vida das comunidades e dos indivíduos, na medida em que permite o estabelecimento de fronteiras e de perímetros existenciais. Em muitos universos culturais e religiosos, o sagrado tende a circunscrever uma exterioridade só acessível a alguns, determinando simultaneamente a territorialidade do profano, próprio ao comum do humano. Nesta perspectiva, esta forma de ordenar a realidade fornece à hierarquização estabelecida uma legitimidade decorrente do sagrado, conduzindo à identificação dessa ordem com a representação do sagrado entre os humanos e nas sociedades. A ilustração desta ordem, por mais variada e diversificada que seja, corresponde a representações e imagens que transportam determinados códigos que permitem a cada homem e a cada comunidade um processo de identificação e de crença. Essa objectivação que vai de expressões miméticas do viver humano até a expressões de maior abstracção, como seja a lei, passando pela definição de espaços e de tempos carregados de sentido e de laços de pertença. Por isto mesmo, essas representações suscitam um envolvimento afectivo e, elas próprias, ilustram as mundividências que cada um possui, individualmente e em grupo. Todavia, por diversas vias, existe também uma outra percepção, fundamental para a condição humana, que tem a ver com o facto de se considerar que a representação por excelência do sagrado se encontra na conjugação com o profano que acontece na individualidade de cada um como pessoa. Contudo, para muitos, este modo de colocar as questões acarreta como que uma dessacralização. Mas tal nem é exacto, nem correcto. Não se trata da divinização do humano ou da redução do divino ao humano, bem pelo contrário. Trata-se do reconhecimento de que é no interior do humano que se inscreve uma realidade de transcendência onde se joga a abertura e a relação de cada um aos outros: a razão profunda da existência. Este modo de entender a representação do sagrado, se encontra certamente na antropologia cristã um dos seus principais fundamentos, manifesta-se em muitas outras tradições que colocam o homem não como centro de tudo, mas como sujeito relacional consigo, com os outros e com a natureza. Neste contexto, a experiência de liberdade é crucial neste processo de afirmação do sagrado. A liberdade não é ausência de laços e, consequentemente, de capacidade de escutar (obediência) e de responder (responsabilidade). A liberdade rompe com a escravidão e a dominação, na medida em que são estas as mais profundas e radicais atitudes de dessacralização. Não é o exercício da liberdade que rejeita o sagrado, bem pelo contrário, mas são os comportamentos ou as mediações de servitude que negam ao homem e à mulher a sua realização, retirando-lhes o protagonismo e a participação no caminhar e no crescimento de uma consciência pessoal onde a alteridade - a contemplação e a complementaridade do outro - não fenece em qualquer narcisismo, mais ou menos ferido, mas onde essa alteridade corresponde à complementaridade parceira de um percurso solidário. Sim, é a vida do outro enquanto pessoa, reconhecida e querida, que é a representação do sagrado. As representações do sagrado na sua conjugação com a liberdade não podem fechar o essencial que é a comunicação entre pessoas e comunidades diferentes e distintas. O sagrado em qualquer uma das suas representações não pode esmagar, mas instaurar a capacidade de comunicação assente no que o outro quer dizer, mesmo quando se exprime de forma radicalmente contraditória e antagónica. O sagrado não é incompatível com a liberdade, nem vice-versa, mas que para tal aconteça o que está em jogo é a alteração do desejo de subjugação e de domínio sempre presente como idolatria e como opressão nas pessoas e nos grupos. António Matos Ferreira Historiador, UCP
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In "Observarório da cultura"

Uma opção corajosa

Alberto Ramos
tem 72 anos,
uma filha
e tornou-se padre
aos 67 anos
A conversa veio interromper-lhe o estudo da Bíblia Sagrada. Alberto Ramos guarda os apontamentos, enfia a caneta Montblanc no bolso da camisa, recosta-se na cadeira e pede perguntas. Daí a pouco há-de realizar um funeral. Por agora, apressa-se a desfiar o longo novelo da sua vida. Tem quase 73 anos, é vigário paroquial de Belas e S. Brás, concelho de Sintra, mas já foi casado e tem uma filha.
O padre Alberto Ramos nasceu em Nogueira, Vouzela. Cumpriu o serviço militar na Marinha e, terminado o liceu, ingressou na PSP (Polícia de Segurança Pública), nos serviços administrativos. Foi funcionário civil da polícia. Primeiro em Aveiro, depois em Viseu. Quis melhorar a vida e estudou. "Licenciei-me em Ciências Sociais e Política Ultramarina. E o Ministério da Justiça ofereceu-me um lugar de administrador em Moçambique. Não hesitei." Por essa altura já era casado com Maria de Fátima Matos. Juntos, tiveram uma filha, Filomena. Em Moçambique, não quis parar de aprender e tirou o bacharelato em Jornalismo.
Depois do 25 de Abril, veio para Portugal, esteve preso 22 meses por ter sido um representante do Governo em Moçambique, a seguir trabalhou na Cruz Vermelha e no Instituto Nacional de Estatística.
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Um artigo de Sónia Morais Santos. Leia mais no DN

sexta-feira, 21 de julho de 2006

Um artigo de D. António Marcelino

Destruição criminosa e falta de senso comum
Refiro-me à destruição da família. Feita de modo pro-gramada por uns, por inércia por outros, por pouco saber e fraco discernimento da realidade hu-mana e social por parte de políticos e outros responsáveis, pelos seus próprios membros, quando não se chegou a saborear a riqueza da experiência familiar ou depressa se perdeu esse sabor único, pelo ambiente desfavorável, cultural, ideológico e legislativo, que despreza os seus valores ou os passa a segundo plano. A família está, de facto, submetida a uma crise sem precedentes na história. Um dado evidente com fautores conhecidos.
A defesa da família é hoje a tarefa mais difícil e ingrata, mas também a mais urgente. Se ninguém pode viver sem amor, o espaço normal do amor e da felicidade é a família equilibrada e séria que, contra ventos e marés, se sente apoiada e não desiste de ser família. Por esta tem de lutar quem trabalha pelo bem comum e tem bom senso.
Quem vai construindo a sua vida, com determinação e sentido, tem por detrás uma família que apoio e é referência. Verificação diária, feita por todos quantos amam, estimam e defendem a sua própria família, qualquer que ela seja. Por outro lado, vidas socialmente destruídas, andam com frequência ligadas à ausência da família, porque se rejeitou ou porque se foi rejeitado por ela.
O Papa disse em Valência que ia ali “propor o papel que, para a Igreja e para a sociedade, tem a família fundada no matrimónio”. Esta proposta incomodou. Mas não pode a Igreja, em democracia, dar livremente razão da sua esperança e convicções? Ou terão mais auditório os que andam pelo país, naturalmente com subsídios do Estado, a dizer, em forma de comédia para rir, que “o matrimónio é como o submarino que pode flutuar, mas é feito para afundar”? Quem é que destes luta mais pelo bem da sociedade?
A família normal é a maior riqueza humana e social de um povo, a fonte e o suporte que permitem vencer problemas e desafios, curar feridas e recobrar energias. É espaço de encontro enriquecedor das diversas gerações, em cujas veias corre o mesmo sangue. Cada geração aprende da que a precede os valores que perduram, e encontra na que a prolonga, estímulos para a viver. Só uma escola, como a família normal, é capaz de transmitir e ensinar o que é indispensável à vida e que faz parte da bagagem de cada um.
Por tudo isto, não se pode considerar família uma qualquer ligação instável e a prazo. Muito menos, se já nasce sem consistência para enfrentar a vida como os seus espinhos e os contratempos do dia a dia. Família a sério é inseparável do projecto de perenidade, gera nós que não se desatam mais, os seus membros nunca são peças de vestir e despir.
Se a família não pode sozinha enfrentar as tarefas que tem de realizar, há que colaborar com ela e ajudá-la a abrir-se à colaboração de outros que a completam, sem que perca o seu protagonismo, nem se subalternizem os seus direitos e deveres.A Igreja acredita na família e nos seus valores, sem fechar os olhos aos problemas e às dificuldades, sem passar ao lado das crises. Sempre a defenderá, afirmando, convictamente, que só nela há energias inatas que lhe permitem, como a nenhuma outra instituição da sociedade, vencer as batalhas que enfrenta e recuperar, pela positiva, os estragos das derrotas, que também fazem parte da sua história.
O Estado não faz favores à família. Mas não tem outro modo de servir a comunidade com futuro, senão respeitar a família, defendê-la, protegê-la e apoiá-la, como valor primeiro. A ligação natural dos seus membros, a solidez das relações humanas e humanizantes que cria e garante, o ser a fonte geradora da vida e a garantia do amor que molda a sociedade, a escola normal do respeito pelo outro, pela mútua aceitação, o espaço dos valores naturais e universais, tudo justifica o dever dos que governam.
Menosprezar a família é falta de senso comum e crime maior contra a nação e os cidadãos. Os sintomas deste menosprezo estão à vista, mas a família vencerá.

Boa pergunta da VISÃO

Um artigo de Tiago Mendes, no Diário Económico

A incerteza de julgar
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O facto de observarmos um erro não implica que a decisão tomada não tenha sido acertada – ou, se quisermos, a melhor possível no contexto relevante
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Disparar, ou não, sobre um potencial bombista suicida? Condenar ou absolver um réu? Rejeitar, ou não, uma hipótese científica? Na actuação policial, como nos tribunais e na investigação académica, são inúmeras as situações em que a possibilidade de escolha é dual e onde existe incerteza relativamente à decisão acertada a tomar. Essa incerteza leva, inevitavelmente, à possibilidade de erro.
Pegando no exemplo judicial, erra-se quando se condena um inocente e quando se absolve um culpado. O primeiro erro, tido consensualmente como o mais grave, fundamenta a “presunção de inocência”. Não obstante ser altamente indesejável, ele ocorrerá – a menos que não se condene qualquer réu sempre que haja um mínimo de dúvida, algo de incomportável na nossa sociedade –, com probabilidade positiva. Portanto, numa população suficientemente numerosa existirão alguns inocentes condenados.
O facto de observarmos um erro não implica que a decisão tomada não tenha sido acertada – ou, se quisermos, a melhor possível no contexto relevante. Confundir isto é não perceber que a avaliação da justeza de uma decisão só pode ter em conta a informação conhecida no momento em que ela se dá. Uma pessoa pode ser presa preventivamente e mais tarde ver essa resolução alterada sem que haja qualquer incoerência. Basta que tenham surgido dados novos que, racionalmente, recomendem a sua revisão.
Um outro caso merece atenção. Há cerca de um ano, um cidadão suspeito de ser bombista suicida foi baleado pela polícia inglesa, dias depois dos atentados de 7 de Julho em Londres. À esquerda, tivemos o previsível: responsáveis políticos destacaram, na análise do que se passou, características como a nacionalidade, a profissão e o estatuto do cidadão morto (brasileiro, electricista, emigrante ilegal). Tudo, como é bom de ver, irrelevante para a deliberação de disparar ou não. Até porque – não devia isto ser óbvio? – nenhuma dessas características era “observável” no momento em que os disparos foram realizados. Mas a coisa não espanta: afinal, adeptos da “vitimização” não faltam por aí.
A posteriori, o que aconteceu foi um erro lamentável. Contudo, a decisão foi provavelmente a mais correcta, dadas as circunstâncias em que se deu. Bento Jesus Caraça dizia não recear o erro, por estar sempre disposto a corrigi-lo. A reparação de erros cometidos – irreversíveis ou não – é, inquestionavelmente, uma questão a que temos de responder. Sem, porém, esquecer duas coisas: primeiro, que uma decisão tomada em ambiente de incerteza acarreta sempre a possibilidade de erro; e, segundo, que ela só pode ser criticada com base na informação então disponível. Não entender isto implica desonestidade intelectual ou falta de lucidez – ou ambas as coisas. Em qualquer dos casos, o erro será mais que certo.

Imagens da Ria

Já imaginou um passeio pelas margens da Ria de Aveiro, só para apreciar as decorações dos Moliceiros? Se tiver uns dias de férias ou umas horas livres não deixe de seguir esta minha sugestão. Há-de ver que vale a pena.

Representações do sagrado e conflito de liberdades - 2

O sagrado,
a liberdade
e a responsabilidade
O notório caso dos cartoons foi alvo de um sem-número de comentários. Quando a poeira começou a assentar, a conclusão mais comum consistiu em proclamar mais um capítulo daquilo que nas bocas dos sábios dos nossos tempos corre pelo nome de “choque de civilizações”. De um lado, o “Ocidente”, defensor inflexível da “liberdade de expressão”; do outro, o fanatismo religioso islâmico que coloca o sagrado como critério primordial do que é possível fazer (ou dizer), ou não, no domínio do profano. Parecia ser mais uma manifestação da célebre antinomia amigo/inimigo, da separação entre “Nós” e “Eles”, que, para mais, tinha o mérito de contribuir para a definição que cada uma das partes em conflito fazia de si mesma. É preciso notar, no entanto, que a violência que acompanhou a tomada de posição dos que, em certas regiões do mundo, se sentiram ofendidos com a publicação dos cartoons contribuiu decisivamente para a polarização em torno destas duas partes. Contudo, o grau que essa violência atingiu e as suas manifestações concretas também permitem concluir que este problema ultrapassou (e ultrapassa) em larga medida o domínio religioso. Concentrar-me-ei no exame de apenas uma das partes em conflito, a dita “ocidental”, a que se declarou, sem qualificações, pela liberdade de expressão. Todo o exercício da liberdade está sujeito a abusos (pelo menos potencialmente). Escutando as vozes dos partidários da liberdade de expressão, dir-se-ia que a publicação dos cartoons não foi encarada pelo mundo ocidental como uma manifestação dessa possibilidade. Muito simplesmente, não houve qualquer abuso da liberdade de expressão porque essa liberdade particular só muito raramente se presta a abusos. E como tantas vezes se insistiu, as referências religiosas não podem colocar limites ou entraves a essa liberdade; tal constituiria, isso sim, um terrível abuso. O que o discurso dos partidários da liberdade de expressão também revelou foi aquilo a que se poderia chamar (recorrendo à expressão de Marcel Gauchet, “a saída da religião” no mundo moderno ocidental) “a saída do sagrado”. A “saída da religião” ou, neste caso particular, a “saída do sagrado” ultrapassa no seu significado o fenómeno conhecido por “laicização” ou “secularização”. A “saída do sagrado” corresponde à reestruturação do mundo, e dos “imaginários sociais” que o configuram, segundo a neutralização mais extrema da presença do divino no mundo sublunar e a desvalorização mais radical das suas representações. Assim, o “sagrado” não pode impor limites à liberdade de expressão, ou, por outras palavras, a responsabilidade que deve acompanhar o exercício da liberdade de expressão não pode integrar as exigências da fé e das hierarquias religiosas, porque estas foram expulsas do espaço público, do lugar por excelência onde a sociedade se pensa a si mesma, ou mais rigorosamente, se interpreta a si mesma. A religião ou, para falar mais genericamente, o sentido do sagrado foi “secundarizado” e “privatizado”; tudo se resume a uma questão de escolha pessoal, privada e subjectiva. Enquanto tal, não pode reivindicar um lugar diferente de todas as outras escolhas privadas e subjectivas. Mais: em relação a outras escolhas, a fé e o sentido do sagrado adquirem nos nossos dias o estatuto duvidoso da mais “privada” e “subjectiva” das escolhas, o que contribui decididamente para interditá-las do espaço em que decorre a discussão pública. Durante estes últimos tempos, a defesa, sem qualificações, da liberdade de expressão assumiu-se como o derradeiro capítulo dessa longa narrativa a que Max Weber chamou “o desencantamento do mundo”. Parece, então, estar ausente do debate público uma terceira posição: uma que aceite a liberdade de expressão, e a liberdade da pessoa humana em geral, e, simultaneamente, a presença do sagrado no mundo. Ora, o Cristianismo contém, desde as suas origens, o princípio de separação entre Igreja e Estado; afirma a dignidade da pessoa humana e daí deduz o direito individual e grupal à(s) liberdade(s); mas não permite que, em nome da individualidade, se reduza a vida humana à soma de escolhas subjectivas, sem ordem, nem hierarquização. A liberdade tem limites, e não se considera um acto como autenticamente livre se não for acompanhado pelo princípio da responsabilidade. A acção livre ocorre sempre num contexto social e político; é por isso que o exercício dos direitos individuais e grupais se encontra limitado, não só pela existência dos direitos de outros indivíduos e de outros grupos sociais, mas também pelos imperativos da justiça e do bem comum. É precisamente essa a recomendação da Declaração do Concílio Vaticano II sobre a liberdade religiosa, Dignitatis Humanae (§7). Alguns apontaram que a literatura e a iconografia do escárnio fazem parte da nossa “civilização” ocidental. Sem dúvida. Mas recordar o princípio da responsabilidade que deve sempre acompanhar o exercício dos direitos e reavivar os deveres da caridade também não é sintoma de “tibieza”, “cobardia” ou “rendição”. É o seu contrário. Miguel Morgado Docente de Ciências Políticas, UCP
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In "Observatório da cultura"

quinta-feira, 20 de julho de 2006

Quadros da Ria de Aveiro

Zé Penicheiro, "O Sol da Tarde", acrílico sobre tela, 46x38

Os quadros da Ria de Aveiro que aqui deixo são um desafio aos meus leitores para que visitem a laguna aveirense. Mas também um apelo para que a apreciem com olhos de ver. Hoje ofereço o olhar e a arte muito própria do artista Zé Penicheiro.

Citação

À medida que tomamos consciência
do nosso lado divino
sabemos que o amor ilimitado
que nos habita
é o único alimento
verdadeiramente capaz
de nos curar
de eventuais doenças
ou inevitáveis
momentos de tristeza.
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In revista XIS

Um artigo de Alexandre Cruz

A guerra,
porquê? 1. Eis a pergunta mais ingénua e mais séria de todas: “A guerra, porquê?” Que drama de morte e que fatalismo consagrado este em que a guerra acompanha-nos e com uma certeza cruel de que só terminará quando acabar a Humanidade. Quem dera que fosse diferente mas é mesmo assim… Se há zonas do mundo cujas páginas de história se confundem com o constante conflito armado e mortífero, o Médio Oriente é esse emblemático lado escuro da humanidade. Ali, na visão dos livros típicos de história Ocidental, tudo nasceu: o bem, a esperança, a história, a ideia do colectivo, a civilização…mas também o mal, o ódio, a intolerância, a injustiça e a guerra. É este o fascínio obsessivo que faz de cada palmo de terra uma luta, uma conquista, uma guerra! Será que o melhor que se consegue serão “alguns anos” de processo de paz para o Médio Oriente? Não chega a visão simplista da história do século XX, dos acordos conseguidos a meados do século, da “força de persuasão” angariada pelas armas; ler as causas e perspectivas na óptica do passado século XX é não compreender que naqueles lados “1000 anos são um dia” e que o desígnio colectivo, onde não há pessoas indiferentes nem individualismos de indiferença, cria imperativos de não abdicar da própria história que cada grupo, etnia, comunidade, movimento, país, escreveu o quer escrever. Ou seja: são outros os olhos (e tantas vezes para o mal de todos), que não os nossos ocidentais, que movem as energias e conquistas ao longo dos séculos e mesmo milénios. Sim, já são pelo menos quase quatro milénios de história registada, em que aquele “chão” recebe as dores e as lágrimas humanas… Drama este em que todo o potencial de conhecimento e tecnologia militar é colocada ao serviço da morte de irmãos humanos, tragédia deste triste mundo em que os fanatismos, quer dum lado quer de outro, não olha a meios (nem à racionalidade) para atingir os seus fins egoístas, deixando por terra, pelo caminho, uma legião de mortos e desalojados!... 2. Que guerra é esta? O que está por trás como motor de guerra nesta desproporção alarmante da resposta israelita em que, “ferido um dedo”, ataca-se para matar todo o corpo do adversário? Interessa (há sempre interessados em guerra, que não o pobre povo) a quem este conflito? E a vergonha impávida e serena dos “G8” (que se chamam a si mesmo de mais ricos do mundo, mas são alarmantemente pobres de “amor sério e generoso à humanidade”), que da rica Cimeira da Rússia observavam desportivamente os mísseis a cair no Líbano? Como é possível, senhores da importância mundial, não se sentirem livres (interiormente e exteriormente) para dizerem cabalmente que, neste contexto, Israel deu início a esta guerra vergonhosa? Que falta de autonomia esta em que todos ‘alinham’ com os EUA protectores de Israel e não da verdade objectiva em cada situação? Pensarão os senhores de mundo que naquele constante “baril de pólvora” a guerra é caminho para alguma coisa de bom? Pela cultura dos tais milénios, e impregnados infelizmente de espírito terrorista e suicida, pensarão os gestores do Ocidente que o “Hezbollah”, o “Hamas”, os radicais Xiitas,… acalmam com as bombas que lhes são ‘presenteadas’? Ou antes, pelo contrário, recebem as bombas que lhes agradam como argumento de vingança duradoura contra Israel? Quem certamente estará a aproveitar bem o tempo será o nuclear presidente do Irão; Israel está-lhe a dar toda a margem de manobra. Apesar das diferenças no âmbito de todas as mil ramificações islâmicas, e em que mesmo o “Hezbollah” para os árabes é inimigo perigoso, o certo é que havendo um terceiro alvo a abater, Israel, então a motivação congregadora islâmica sobe em flecha; e se juntarmos a todo este contexto as palavras do presidente do Irão de que “Israel terá de desaparecer do mapa” então Israel corre mesmo perigo, um perigo que também atiçou. Claro que as posições no campo de combate vão-se gerindo: se Israel é, por obrigação histórica e económica, protegida pelos EUA, com a (possível) entrada em cena do Irão teremos então na final deste triste campeonato uma luta de titãs: Irão contra os Estados Unidos. 3. Onde pára a comunidade internacional? Quem é e o que pode a Comunidade Internacional? Onde está a ONU? Quem é afinal a Organização das Nações Unidas, com membros no Conselho de Segurança que são os desportivos “G8” a ver o mundo a passar à espera do momento certo para obter mais hegemonia e (porventura) petróleo do Médio Oriente?! Nos bombardeamentos de Haifa, cidade de Israel da maior convivência saudável entre as diversas comunidades islâmicas e israelitas, vemos a “morte” do processo de Paz, o terminar de um tempo de tolerância, esperança, expectativa, unidade da diversidade. Sendo certo que muitas águas existem a separar, por exemplo entre o que são os estados islâmicos e a sua necessária autonomia em relação aos movimentos fanáticos (como no caso do Líbano em relação ao “Hezbollah”), a verdade é que faz sentido perguntarmos quantos anos, décadas, serão necessários para restituir a esperança de um processo de paz? Não demorará só o tempo da reconstrução das pontes, edifícios e aeroportos de Beirute. O “essencial” não está no betão, se assim fosse a paz seria bem mais fácil!...

Procriação Medicamente Assistida

Jaime Gama
aceita projecto-lei
O residente da Assembleia da República admitiu o projecto-lei de iniciativa popular para a realização de um referendo à Procriação Medicamente Assistida (PMA). Jaime Gama enviou já a proposta para a Comissão de Saúde, que vai agora olhar para o documento. No entanto, decisões concretas só em Setembro. Depois do chumbo do Parlamento, o presidente da Assembleia da Republica propôs ao Movimento Pró-Referendo a transformação da petição, com mais de 80 mil assinaturas, num projecto-lei de iniciativa popular. A ideia foi aceite pelos dirigentes do Movimento que exigem um referendo sobre a Procriação Medicamente Assistida.
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Fonte: RR

CARTA ÀS INSTITUIÇÕES DO PRESIDENTE DA CNIS

Esclarecimentos e orientações sobre ATL SENHOR (ª) PRESIDENTE
Pelo muito que fizeram ao longo do ano e para melhor perspectivarem umas mais do que merecidas férias, todos os dirigentes das IPSS’s bem mereciam um fim de ano lectivo tranquilo. Porém, alguns vivem momentos bem difíceis porque o futuro próximo está envolto em muitas nuvens de dúvidas. Entre esses, estão claramente bastantes dirigentes de IPSS’s com a valência de ATL… Para fazer dispersar algumas nuvens, sinto ser meu dever esclarecer o que pode ser esclarecido e apontar algumas orientações:
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Leia mais em SOLIDARIEDADE

quarta-feira, 19 de julho de 2006

Um artista ilhavense

Costa Nova, 2004, Acrílico sobre tela, 80x120 cm
Brincadeiras de Menino, 2006, Acrílico sobre tela, 90x80 cm
JÚLIO PIRES: Um pintor a visitar
Há dias encontrei-me com um artista que desconhecia. Num ambiente em que se sente bem e que o completa: uma galeria de arte, a OP ARTE, na Gafanha da Nazaré. É um pintor ilhavense, que reflecte, num rápido contacto, uma serenidade que impressiona. Senti que não gosta de falar da sua arte. Gosta, porém, que sejam os outros a falar dela. É o que faço aqui, neste meu espaço, sem preocupações críticas. Deixando, contudo, que a minha sensibilidade diga o quanto gostei de apreciar nas suas telas, carregadas de cor. Mais luz e sombras dos nossos ares, com a Ria e o Mar a deixarem marcas que artistas, como ele, perpetuam. Por isso, digo que o Júlio Pires merece uma visita, onde quer que se encontre: nas galerias onde expõe, nas telas que se vão espalhando por casas de gente de bom gosto, no seu ateliê, que fica na Avenida João Vaz e Silva, Lote 4, na Praia da Vagueira, e no seu “site”, que mora em www.juliopires.com Os quadros que apreciei projectam-me para cantos e recantos da sua e nossa terra, e para mais além, ora carregados de cores fortes, ora de silhuetas que fazem sonhar, mas sempre com traços firmes que denotam o domínio das técnicas que experimenta, ou não fosse o artista um autodidacta que tem, como deve ter, a ânsia da procura e o desejo de chegar mais longe na arte que nunca mais pode abandonar. De quando em vez mostra-nos rostos que nos são familiares, tais são o rigor das feições e a expressividade de certos olhares e posições, das nossas gentes e de gentes de outras bandas, que Júlio Pires fixou de diversos pintores e de várias culturas. Aqui chegando, permita-me o pintor ilhavense que lhe diga que a sua arte, para se impor, não precisa, assim tanto, de sair dos horizontes que lhe enchem a alma, embora tenha o direito, como outros, de se deixar impressionar por outras formas de ser e de estar na vida, neste Portugal de tantos contrastes. Júlio Pires é natural de Ílhavo, onde nasceu a 30 de Outubro de 1964. É um autodidacta, criando o seu próprio percurso no caminho das Artes Plásticas. Frequentou em 1987 um curso de desenho e pintura no Grupo A.C.V. na Fundação Calouste Gulbenkian, sob a direcção de Pedro Andrade. Profissionalmente, foi pintor na Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre. Porém, é nas telas que encontra a sua realização pessoal e a sua forma de expressão, que os ílhavos, e não só, têm a obrigação de muito mais valorizar. Júlio Pires já foi contemplado com vários prémios, fazendo parte a sua pintura do acervo de diversas colecções particulares. Está representado, também, em instituições portuguesas e estrangeiras, tendo participado em 34 exposições individuais e 24 colectivas. Fernando Martins

Textos ensanguentados

TEXTOS ENSANGUENTADOS 



Textos
ensanguentados
como feridas

Gralhas
ensanguentadas

Textos
gelados
como árvores
no Inverno

Textos
como árvores
cortadas
aos bocados

Textos
como lenha

Textos
como linho

Textos
brancos
como a noite

Textos
brancos
como a neve

Textos
sagrados

Textos
bifurcados
como ramos

Textos
unos
como troncos

Adília Lopes 

In “Sur la croix”

Um artigo de Daniel Serrão

PMA: com ou sem lei?
É legítima a pergunta. De facto, o tratamento médico da infertilidade, como qualquer outro tratamento do âmbito dos cuidados de saúde, não justificaria, por si só, a intervenção do legislador, fosse ele o Governo ou a Assembleia da República. E outros processos de tratamento da infertilidade, que não a PMA, como é o caso da desobstrução cirúrgica das trompas, não são objecto de preocupação dos legisladores. Basta a regra básica da actividade médica que é a de o médico agir sempre segundo as regras da boa prática científica e técnica, as leges artis dos juristas. Assim sendo, algo deve acontecer na PMA que ultrapassa a intervenção médico-técnica e que impôs a intervenção do legislador. E acontece: a PMA é um acto médico que extravasa da simples intenção terapêutica de curar a infertilidade, para campos não médicos e claramente sociais. E é a repercussão na sociedade e suas estruturas básicas, como a família, que impôs, e bem, a intervenção da Assembleia da República. Se o fez da melhor maneira, isso é matéria controversa.
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Férias do Papa

Férias do Papa entre a leitura, a oração e a música
Bento XVI continua o seu período de repouso em Les Combes, nos Alpes italianos, preenchendo os seus dias com momentos de oração, leitura e música. Os tempos que o Papa passa ao piano, tocando Bach e Mozart, são audíveis nas casas vizinhas. O Centro Televisivo do Vaticano mostrou imagens inéditas de Bento XVI neste período de férias, que se prolongam até 28 de Julho. Além do piano, o CTV mostrou o Papa a caminhar pelos jardins que rodeiam o chalé que o aloja. Numa das poucas declarações que prestou aos jornalistas, nos últimos dias, Bento XVI explicou que “ver a montanha é como ver o criador”. Todos os responsáveis que são convidados a falar da estadia do Papa concordam com o clima de “tranquilidade” que se tem vivido, muito por força da personalidade reservada de Bento XVI e do seu amor pela natureza, que o leva a passear pelas montanhas circundantes. O descanso não impede, como já noticiado, que o Papa acompanhe a actualidade, através de contactos regulares com a Secretaria de Estado do Vaticano. O relativo sossego destes dias gera muita especulação em torno da actividade de Bento XVI e, tal como no ano passado, começa a falar-se com insistência da possibilidade de uma nova obra papal estar a ser redigida. Oficialmente, nenhuma indicação foi dada pelo Vaticano a esse respeito. Em declarações à Rádio Vaticano, o Bispo de Aosta, D. Giuseppe Anfossi, assegurou que “o Papa está tranquilo” e que “desfruta da liberdade de não estar submetido ao trabalho”.
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Fonte: Ecclesia

Um artigo de António Rego

Quando tudo
parece a arder
A humanidade vive de euforias e sobressaltos. Num misto de realidade e ficção, com alguns dados do passado e todas as dúvidas em relação ao futuro. Mais escancarado que nunca o buraco do ozono, com os raios ultravioleta quase a fecharem as pessoas em casa no braseiro do Verão, as temperaturas a roçarem os extremos suportáveis, os fogos a esgotarem os bombeiros e a inquietarem, com notícias, férias merecidas, os conflitos sem darem sinais de arrefecimento para os lados da Coreia do Norte, e agora em nova cena do Médio Oriente - para além de outros focos atenuados pela distância. Os preâmbulos da guerra parecem, agora, montados para um alastramento não apenas das escaramuças entre tanques e pedras, mas com dois exércitos frente a frente, incendiadas as fronteiras e enfurecidos os vizinhos e aliados. Em dado momento tudo parece conjugar-se para um fogo real ateado por um vulcão – o da violência - que sempre esteve em actividade na cratera da história, mas que varia de intensidade pelas formas de energia que utiliza. Entretanto, a justa exaltação de todo o progresso científico e tecnológico que permite o prolongamento da vida humana, as viagens planetárias, os meios de comunicação e informação com uma inteligência natural a artificial mais surpreendente que nunca. Mas tudo isso morre na praia, nas areias dos velhos absurdos da guerra e da violência. Assim é desde a noite dos tempos. E algum desalento se apodera dos profetas como que a confirmar que “ não há nada a fazer, o homem não tem remédio e a natureza parece que também não”. Restam apenas alguns pós de esperança para não alinharmos com os banais clamores dos fatalistas desiludidos? Talvez não. Não é negando a história e os factos que abrimos caminho para o futuro. Mas é precisamente no enquadramento e na medição exacta dos acontecimentos que ultrapassamos os aparentes bloqueios de cada momento. Se tudo parece a arder, será na frieza do nosso olhar que iremos descortinar a realidade que pertence a cada tempo. Não sabemos se daqui a duas semanas narramos os factos da mesma forma. Vamos descobrindo que a nossa emoção precipita juízos sobre acontecimentos incompletos e ajustáveis ao complexo cósmico e humano. Aqui, sim, vamos ter ao oceano de Deus que ultrapassa o nosso olhar, os nossos espaços, as nossas medidas e as nossas contas. Por isso a fé também se pode definir como o ângulo do olhar de Deus num sentir homogéneo sobre todos os tempos e todos os seres. Não passamos, afinal, duma ínfima – apesar de infinita - parcela desse todo. Nem por isso é menor a nossa responsabilidade ou maior a nossa desculpa.

terça-feira, 18 de julho de 2006

Um artigo de João Carlos Espada, no EXPRESSO

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Um pouco por toda a Europa e nos EUA assiste-se a tentativas legislativas de redesenhar a família heterossexual monogâmica
EM VALÊNCIA, assinalando a visita do Papa Bento XVI, um Fórum Mundial da Família reuniu esta semana mais de um milhar de associações familiares internacionais. Segundo os organizadores, o principal objectivo da iniciativa consiste em «defender e proteger o matrimónio como instituição específica entre um homem e uma mulher em todo o mundo». O tema tem particular actualidade em Espanha, onde legislação recente alargou o casamento a uniões homossexuais. Os termos «pai» e «mãe» foram substituídos por «progenitor A» e «progenitor B», numa demonstração de engenharia social sem precedentes. Mas a Espanha não é caso único. Um pouco por toda a Europa e nos EUA, assiste-se a tentativas legislativas de redesenhar a família heterossexual monogâmica. Numa aliança inesperada - mas não surpreendente - grupos islâmicos aproveitam a onda inovadora para introduzir na agenda a consagração da poligamia. Estes chamados «temas fracturantes» começaram por deixar os eleitorados indiferentes. Gradualmente, porém, geraram mal-estar e legítima reacção. Nos EUA, onze referendos estaduais recusaram por larga margem o «casamento homossexual». Sectores republicanos defendem a introdução de uma emenda constitucional definindo o casamento como a união entre um homem e uma mulher. Como vem sendo hábito, as «guerras culturais» começaram na América e chegam agora ao continente europeu. Na semana que agora termina, durante uma palestra que proferi em Madrid sobre Winston Churchill, a maior parte das perguntas foi sobre «temas fracturantes» e democracia. A ideologia fracturante anuncia-se como libertadora e igualitária. Quer libertar-nos da moral cristã, da vida familiar, e da hierarquia inerente à busca da excelência no domínio da educação. Tudo isto é apresentado em nome da liberdade e da democracia. Todos os que se opõem são apresentados como conservadores autoritários e antidemocratas. Nesta perspectiva, ser democrata significaria ser contra a religião - especialmente a judaico-cristã - e ser a favor do «casamento homossexual», do aborto gratuito a pedido, da pornografia na televisão à hora do jantar e, em geral, do relativismo moral. Ser democrata significaria ainda ser a favor de ensinar tudo isto aos filhos dos outros através de um sistema centralizado de escolas estatais, cuidadosamente protegidas da concorrência e da escolha livre das famílias. A verdade é que estamos perante uma ideologia autoritária, como, suspeito, Winston Churchill não deixaria de observar. A democracia deixa de ser vista como um sistema de regras para limitar o governo e torná-lo responsável perante os contribuintes. Passa a ser identificada com um projecto político-filosófico particular, de natureza sectária e adversarial contra modos de vida descentralizados e realmente existentes. Em vez de protecção desses modos de vida, a democracia passa a ser entendida como mandato para uma vanguarda redesenhar instituições descentralizadas - como a família ou a religião - que não tinham sido desenhadas por ninguém. Trata-se, numa palavra, do jacobinismo em versão pós-moderna. :: In "EXPRESSO" de 8 de Julho de 2006

Representações do sagrado e conflito de Liberdades - 1

Representações do sagrado

e liberdade de expressão

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A recente polémica em torno das caricaturas de Maomé voltou a colocar ao Ocidente uma dúvida sempre delicada: numa sociedade laica, como conciliar a total liberdade de expressão com o total respeito pelo sagrado? Ou de uma forma mais crua: em democracia, a religião pode impor limites à liberdade? A resposta da maioria dos dirigentes políticos e religiosos ocidentais, independentemente de crenças ou descrenças, foi apelar ao bom senso. Mas esta resposta a nada responde, porque o bom senso não se legisla nem se decreta. E a experiência demonstra que é suficientemente elástico para que alguns, em seu nome, concedam ao Islão uma reverência que nunca teriam pelo Cristianismo. Significa isto que o único direito verdadeiramente democrático seja (assim chegou a dizer-se entre nós) o “direito à blasfémia”? De modo nenhum. Em certo sentido, a blasfémia é também um atentado à liberdade dos crentes, como o é um insulto racista para as pessoas de cor ou uma piada anti-semita para os judeus. Nos três casos, ataca-se a legítima “exigência de reconhecimento” de uma comunidade, para usar o conceito do filósofo canadiano Charles Taylor que fundamenta a sua defesa do multiculturalismo. Será possível, então, arbitrar um tão radical conflito de direitos? Não. Como muitos outros conflitos de direitos, também este é irresolúvel. Onde há qualquer forma de representação do sagrado, e ao longo da história nenhuma cultura ignorou o fenómeno religioso, existe a possibilidade dialéctica de blasfemar. Uma cultura que jamais desrespeitasse os símbolos do sagrado, hipótese meramente académica, seria talvez uma cultura sem símbolos do sagrado. A blasfémia é a outra face do sagrado. E a outra face, diz o Evangelho, torna-se por vezes objecto de violência. Na verdade, quase podemos distinguir as sociedades pela forma - muito variável e sempre objecto de compromisso - como regulam essa violência. Mesmo na Europa medieval, onde o Cristianismo tinha um peso maioritário, a inquisição convivia com a mais desbragada sátira anticlerical. Será a apropriação dos tribunais de consciência pelos Estados (primeiro os católicos e depois os protestantes) a mudar as coisas. Colocando ao serviço da unidade religiosa os cada vez maiores recursos das burocracias nacionais, a modernidade vai tentar resolver definitivamente a tensão entre liberdade individual e fé colectiva. Em vão. Porque, ao mesmo tempo, o Ocidente seculariza-se profundamente, conhecendo aquilo a que Max Weber chamou “o desencantamento do mundo”. O que não ajuda a resolver o dilema, muito pelo contrário. A perda do sentido religioso na nossa civilização, em contraste com o mundo islâmico, leva a que o caso das caricaturas seja visto sob uma óptica muito diferente dos dois lados do Mediterrâneo. Para o Islão, que não permite a representação de Alá e Maomé excepto pela palavra, as caricaturas são uma ofensa gravíssima. Para o Ocidente, que há dois mil anos representa Deus sob os traços de um crucificado ou de uma criança, as caricaturas são um mal menor. Não quer dizer que nós tenhamos razão e eles não. Mas, se hoje os crentes são obrigados a tolerar um certo desrespeito pelos seus símbolos mais sagrados, isso deve-se a uma consciência em certos aspectos mais viva da liberdade por parte dos não crentes. Uma liberdade que os cristãos apenas têm de pedir também para si. Pedro Picoito Historiador, ISEC

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In "Observatório da cultura"

Barco Moliceiro candidato a Património da Humanidade

Em artigo publicado no "PÚBLICO" de hoje, o jornalista Rui Baptista anuncia a preparação da candidatura do barco Moliceiro a Património Imaterial da Humanidade, por iniciativa da Associação dos Amigos da Ria e do Barco Moliceiro, com o apoio da Região de Turismo da Rota da Luz. A distinção é atribuída de dois em dois anos pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura).
Em declarações àquele jornalista, o presidente da associação, Eduardo Costa, informa que vão ser desenvolvidas acções tendentes ao reconhecimento pela UNESCO da importância cultural e histórica do barco Moliceiro, que é o símbolo, como todos sabemos, da laguna aveirense.
Quando tantos auguravam o desaparecimento do Moliceiro, por força do abandono da apanha do moliço na Ria de Aveiro, eis que surge uma iniciativa a todos os títulos digna do apoio de todas as forças políticas, sociais e culturais ligadas à laguna, que ainda é o maior cartaz turístico da região.
F.M.

segunda-feira, 17 de julho de 2006

FAROL DA BARRA DE AVEIRO




Foco luminoso, eléctrico,  foi montado há 70 anos


O Farol da Barra de Aveiro, situado em pleno concelho de Ílhavo, na Gafanha da Nazaré, é um ex-líbris da região aveirense. Imponente, não há por aí quem o não conheça, como um dos mais altos de Portugal e até da Europa. Já centenário, faz parte do imaginário de quem visita a Praia da Barra. Quem chega, não pode deixar de ficar extasiado e com desejos, legítimos, de subir ao varandim do topo, para daí poder desfrutar de paisagens únicas, com mar sem fim, laguna, povoações à volta e ao longe, a dominar os horizontes, os contornos sombrios das serras de perto e mais distantes. À noite, o seu foco luminoso, rodopiante e cadenciado, atrai todos os olhares, mesmo os mais distraídos, tal a sua força. Mas são os navegantes, os que podem correr perigos ou desejam chegar à Barra de Aveiro em segurança, os que mais o apreciam, sem dúvida. Ora, esse foco, que começou por ser alimentado a petróleo, passou a beneficiar da energia eléctrica em 1936, completando, este ano, 70 anos de existência. 
Bonita idade para tal melhoramente merecer ser assinalado, embora de forma simples, com esta nota. Se tem lógica e algum merecimento a recordação dessa efeméride, não deixa de ser oportuno e justo lembrar que este ano também se podem celebrar os 150 anos da portaria do ministro das Obras Públicas, engenheiro António Maria de Fontes Pereira de Melo, assinado em 28 de Janeiro de 1856 e dirigida ao director das obras públicas do Distrito de Aveiro, engenheiro Silvério Pereira da Silva, que dá orientações para se avançar, rumo à futura construção do nosso Farol. Reza assim, na parte que nos diz respeito, como se lê na revista “Arquivo do Distrito de Aveiro”, em artigo assinado por Francisco Ferreira Neves: “Há por bem sua majestade el-rei [D. Pedro V] ordenar que o director das obras públicas do distrito de Aveiro, de combinação com o capitão daquele porto, e com o director-maquinista dos faróis do reino, trate de escolher o local nas proximidades da barra que for mais próprio para a construção de um farol, – devendo o mesmo director, apenas se ache determinado o dito ponto, proceder, de acordo com o referido maquinista, à confecção do projecto e orçamento da respectiva torre com a altura conveniente para que a luz seja vista a dezoito ou vinte milhas de distância. 
Sua majestade manda, por esta ocasião, prevenir o sobredito funcionário de que encomendará em França, para ser estabelecido no mencionado local, um farol lenticular de segunda ordem, do sistema de mr. Fresnel, e semelhante ao que se destina para o Cabo Mondego, cujo desenho se lhe envia, com a diferença, porém, de ser girante para o distinguir dos faróis que ficam ao norte e ao sul daquele porto”. 
A Barra de Aveiro tinha sido aberta em 1808 e eram conhecidos os riscos que ela oferecia à entrada das embarcações, “com prejuízos que podem resultar à humanidade e ao comércio”, como se sublinha na referida portaria. No mesmo artigo de Francisco Ferreira Neves, lembra-se que a comissão nomeada para a determinação do local em que deveria ser construído o farol deu o seu trabalho por concluído em 11 de Julho de 1858. Entretanto, os naufrágios sucediam-se entre o Cabo Mondego e a Foz do Douro, “por falta de sinalização luminosa nesta parte da costa marítima”. 
Os trabalhos não foram tão céleres quando seria de desejar, o que levou o ilustre parlamentar José Estêvão a pedir ao Governo, em 4 de Julho de 1862, na Câmara dos Deputados, a construção de um farol na nossa costa. No ano seguinte, em 15 de Setembro, a Câmara Municipal de Aveiro apresentou a el-rei D. Luís uma exposição, requerendo a edificação de um farol ao sul da barra. Para justificar a sua petição, a autarquia aveirense recorda que importa evitar “os naufrágios que tão frequentes se têm tornado nestes últimos tempos, no extenso litoral entre o Cabo Mondego e a Foz do Douro”. E acrescenta: “Ninguém pode duvidar, Senhor! que numa costa tão extensa como acidentada, em que as restingas ou cabedelos se formam por a violência das correntes, cuja direcção varia diariamente, um farol evita que os navios, se singram próximo da terra, se enganem no rumo, vencendo as dificuldades da navegação sem correrem o risco de naufragar nos bancos de areia, às vezes em noites bonançosas, como infelizmente tem sucedido entre nós.” 
A resposta do Governo não tardou. No dia 26 de Setembro de 1863, uma portaria governamental ordena que se fizesse o projecto e o orçamento. O projecto foi concluído em 5 de Abril de 1884 e os trabalhos da construção iniciaram-se em Março de 1885. A inauguração oficial do farol aconteceu em 31 de Agosto de 1893. 

Fernando Martins

Um artigo de António Rego

Nos cinquenta anos da morte do Padre Américo
HERÓIS
DO SILÊNCIO
Nos cinquenta anos da morte do Padre Américo vêm ao de cima algumas análises sobre diferentes correntes de educação que podem inspirar a sociedade de hoje na “recriação” possível do ambiente familiar inexistente ou destruído. E, desde logo, surgem teorias que acentuam aspectos mais coincidentes com atitudes não apenas pedagógicas mas também decorrentes de valores – os novos valores do nosso tempo. Por vezes, em contraposição com qualidades cultivadas não apenas num passado recente mas inscritas desde sempre no coração da humanidade e progressivamente reveladas através das gerações inspiradas no cristianismo. Chegamos assim, inevitavelmente, aos conceitos de autoridade, liberdade e responsabilidade na família, educação através de auto-disciplina, respeito por valores considerados fundamentais em todos os ciclos da história da humanidade. Sem deixar de considerar como positiva a evolução pedagógica que se alcançou com novas aquisições na bio-psicologia, percepção do eu, afirmação das diferenças de personalidade e de caminhos, vamos de novo ter à senda das referências essenciais que são, em qualquer circunstância, capazes de conduzir o homem ao desenvolvimento harmónico da sua personalidade e à maturidade do seu ser. Olhando a percepção intuitiva e a entrega pessoal do Padre Américo à causa dos pobres – os rapazes vindos da rua, os idosos marginalizados e os desprovidos de todos os bens - percebemos que um contexto social lhe despertou a veia profética do Evangelho e conduziu apaixonadamente toda a sua vida. Perdido isto, deita-se fora um património, o essencial dum espírito e o carisma dum homem inteligente, santo e corajoso que dedicou toda a sua vida, com exemplar radicalismo, à causa do Evangelho nos pobres. A Obra da Rua, na travessia das diferentes correntes do tempo, sempre teve este fio condutor como a primeira das entregas. Ao celebrar-se os cinquenta anos da morte do Padre Américo ninguém pode, honestamente, esquecer os discípulos mais próximos – os Padres da Rua - que o seguiram e seguem, como heróis do silêncio que dão a vida pela inspiração continuada do Pai Américo. Se é verdade que são as contas de Deus que contam, não podemos esbanjar as palavras e os gestos dos profetas – que não são menores por serem da nossa terra.

domingo, 16 de julho de 2006

Pelo sonho

O MAR A PUXAR-ME
Nasci à beira-mar, com a Ria a abraçar-me com ternura. Silenciosamente, serenamente, a desafiar-me para viagens com horizontes marinhos. Nunca, porém, consegui chegar a esse desígnio. Limito-me a sonhar.
Uma marina, onde quer que a encontre, é sempre um desafio para que o sonho de viajar de barco me leve a outras paragens, a outras terras e a outras gentes. E foi o que me aconteceu, há dias, com a imaginação a vogar para além da tranquilidade do dia-a-dia. Dentro de um barquinho destes. Não com tempestades, mas com a bonança com que sempre alimento o meu espírito.
O mar continua a puxar-me e a atrair-me, desde a infância que já está longe. E se não posso responder a esse chamamento, ao menos deixem-me alimentar o sonho de um dia partir de uma qualquer marina para ir ao encontro de outros.
Fernando Martins

Um artigo de Anselmo Borges, no DN

Religião e religiões:
para onde vamos?
Agora, quando for a Madrid, já não vou ter a alegria de beber um copo com o meu amigo José María Mardones. Foi-se embora deste mundo no final de Junho. De repente. Sem tempo para uma palavra de despedida. Aos 63 anos.
A última vez que nos encontrámos foi em Setembro, aqui em Portugal, aonde veio para participar, como especialista em filosofia e sociologia da religião, no Congresso sobre "Deus no século XXI e o futuro do cristianismo". A sua comunicação teve como tema: "Religião e religiões: donde vimos, onde estamos, para onde vamos?" Fica aqui, como homenagem, uma síntese pobre da sua análise.
Donde vimos?
Vimos de um cristianismo de cristandade, com pretensões hegemónicas sobre a cultura, a sociedade e a política, que se julgou detentor exclusivo da revelação de Deus e com o monopólio da salvação: "fora da Igreja não há salvação". Nesse cristianismo, aninhava-se uma concepção objectivista da verdade, que implicava a intolerância frente ao erro e a perseguição e liquidação das pessoas sob o pretexto de erradicar doutrinas falsas. Era um cristianismo de coloração fundamentalista e integrista.
Onde estamos?
Estamos a assistir ao "desmoronamento" do cristianismo de cristandade. A descristianização é um dado, a prática cristã é minoritária, a religião perdeu a sua evidência social para passar a ser um assunto pessoal e privado. Assistimos ao mesmo tempo ao "aparecimento de formas de integrismo religioso" no Islão e fora dele. Frente ao relativismo cultural, compreende-se a atracção exercida por "religiões fortes".
Ao mesmo tempo que perde o monopólio religioso - "a religiosidade deambula fora das Igrejas" -, a instituição eclesial cristã está a tornar-se verdadeiramente universal: nos princípios do século XX, mais de 70% dos cristãos encontravam-se no Norte desenvolvido; no início do século XXI, 70% estão no Sul. O que representará para o futuro do cristianismo o facto de a maioria dos seus membros serem africanos, latino-americanos e asiáticos?
Deparamos hoje com uma enorme sede de Mistério. O cristianismo de cristandade, ao colocar no centro o institucional, o jurídico, o doutrinal e dogmático, marginalizou o primado do experiencial, pessoal e místico. Por isso, a crítica à Igreja é acompanhada por apelos constantes a "penetrar dentro da experiência religiosa" e da vivência do Mistério do divino.
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Pagar impostos

Não pode haver portugueses
de primeira e de segunda
Penso que todos os portugueses reconhecem a importância social e económica do Futebol, como dos demais desportos. Com a participação da selecção portuguesa no último Mundial de Futebol o País vibrou e o nome de Portugal foi badalado pelo planeta, graças ao jogo mais atractivo que praticou. Todos estamos gratos aos dirigentes, técnicos e jogadores, mas não podemos endeusá-los. Vem isto a propósito de a Federação Portuguesa de Futebol patrocinar a isenção fiscal para os jogadores que envergaram a camisola das quinas. Cada um, segundo revela a comunicação social, vai auferir, pela sua participação, a bonita verba de 50 mil euros, como prémio. Antes de mais, mesmo que a lei consagre isenções (e consagra-as para os prémios atribuídos pelo Governo), seria uma injustiça, neste caso, por se pretender beneficiar quem ganha, mensalmente, tanto dinheiro. Será que os nossos jogadores precisarão de tais regalias, não lhes bastando a honra e a fama de representar Portugal? Será que o facto de jogarem na selecção não é, para cada um deles ou para a maioria, uma mais-valia que se reflecte nos seus contratos? Passada a euforia da participação portuguesa no Mundial de Futebol, bem alimentada pelos bons resultados alcançados, os portugueses não perdoariam ao Governo que isentasse os jogadores do pagamento de impostos sobre os prémios ou vencimentos auferidos. Os portugueses estão fartos, pelo que ouço e vejo, de haver compatriotas de primeira e de segunda. Quem vive ou sobrevive com ordenados e reformas de miséria, contando os euros no dia-a-dia para não entrar em défice ao fim do mês, não admite nem tolera que os jogadores internacionais de futebol pudessem beneficiar de isenções fiscais.
Claro que a lei as contempla, quando os prémios vêm do Estado (o que não é caso), mas repugna-me a ideia de alguém se lembrar de pedir mais umas benesses para os jogadores de futebol. Em matéria de impostos, como noutras, não pode haver portugueses de primeira e de segunda. Todos têm a obrigação de pagar o que é devido ao fisco. Querer fugir a isso, é crime.
Privilégios, benesses, isenções, regalias, honras especiais e quejandos, que tanto se vêem e reclamam, não são próprios de uma democracia adulta e solidária. Fernando Martins