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domingo, 1 de abril de 2018

FOI MORTO, MAS ESTÁ CADA VEZ MAIS VIVO!

Frei Bento Domingues 


"Repetem-se as denúncias 
de que estamos a globalizar 
a destruição do nosso planeta, 
quando temos todos os meios 
para fazer dele um paraíso."






1. Quando alguém diz "aquele não é bem acabado", está a falar de si próprio e dos outros, porque o ser humano nunca está bem acabado. Não sabemos quem somos, pois, o que seremos é-nos desconhecido. Não somos só o passado nem só o presente, mas o futuro e esse é filho da esperança. A esperança tem muitos nomes. São frequentes as sondagens de opinião que tentam conhecer os desejos, as espectativas e as esperanças de cada um. Não é novidade nenhuma saber que todos desejam ser felizes. Varia muito, no entanto, o que cada pessoa entende por felicidade. A expressão antiga diz bem a nossa condição animal: "haja saúde e coza o forno". É saudável que todos desejem melhorar as suas condições de vida, avançar na carreira como forma de auto-estima, para além do interesse monetário. Mesmo se o dinheiro não der felicidade, dá muito jeito. Muita gente espera a vida inteira o Euromilhões. O Papa Francisco contenta-se com pouco, mas deseja para todos os três T's, como forma mínima de dignidade: tecto, trabalho e terra. As pessoas gananciosas, para satisfazer os sonhos de riqueza, saltam por cima de tudo e de todos. A lista dos mais ricos de um país ou do mundo não é muito grande. Grande é a distância entre os poucos loucamente ricos e os muitos loucamente pobres e miseráveis. Mas não tem de ser assim.
Conta-se que, quando João XXIII chegou ao Vaticano, perguntaram-lhe: "quantas pessoas trabalham aqui?" "Mais ou menos metade"! A sua primeira medida foi a de aumentar os salários mais baixos, tendo em conta a situação familiar de cada um. Quando expôs esta medida ao gestor financeiro do Vaticano, este disse que era o caminho para a bancarrota. "Não me parece nada, porque desci todos os salários altos. As despesas são as mesmas" [1]. Tinha sido, aliás, a recomendação de S. Paulo. É tudo gente, como Jesus Cristo, que nada sabem de finanças, no dizer do nosso Fernando Pessoa.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

ESCUTAR JESUS, O FILHO AMADO DE DEUS

Reflexão de Georgino Rocha


Georgino Rocha

O grupo de Jesus vive uma crise profunda, depois do encontro de Cesareia de Filipe. Nem era para menos. Estava em jogo, após a avaliação da primeira fase da vida pública, o sonho de grandeza dos discípulos e o contraste que representa a resposta dada a Pedro, resposta contundente. “Fica longe de mim, satanás! Não pensas nas coisas de Deus, mas nas coisas dos homens”. E Pedro havia acertado em cheio: “Tu és o Messias”, exclama num misto de ousadia e assombro. Tinha razões para ficar satisfeito. A pergunta do Mestre: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” era bem respondida. Mas ouve o que não esperava: O anúncio surpreendente que deixa desconcertados os discípulos acompanhantes. A realização da missão vai passar por sofrer muito, ser rejeitado, morto em Jerusalém e ressuscitar. Pedro, porta-voz do grupo, é apanhado “em contra-mão” e reage de imediato. Chama Jesus à-parte e repreende-O. E este, atira-lhe a doer.

A crise estava instalada. O desencontro de perspectivas era notório, apesar de conviverem há tempos. Não estava em causa ser Messias, o Salvador, mas o modo de realizar a missão. Modo que ainda hoje se mantém. Em cada um de nós, na família, na Igreja, na sociedade. Como realizar a missão que Deus nos confia? Com que critérios?

domingo, 24 de dezembro de 2017

Georgino Rocha — EM JESUS, DEUS FAZ-SE HUMANO. ACREDITA!



«Fazer Natal é mergulhar nesta maravilha, deixar-se banhar pela sua originalidade, imbuir-se da sua “magia e encanto”, cuidar da criança que há em nós, cultivar o sorriso na vida e a simplicidade educada na relação, ser, dentro do possível, discípulo~missionário de Jesus. Fazer Natal é reconfigurar as arcaicas imagens de Deus que povoam o nosso imaginário e, ainda, muitas orações litúrgicas e devoções populares.»



Definitivamente 

EM JESUS, DEUS FAZ-SE HUMANO. ACREDITA!


O evangelho de João, antes de apresentar os relatos da vida de Jesus, abre com um solene Prólogo, levando-nos em visita ao princípio de tudo. Faz-nos lembrar o artista/escritor que só narra a beleza do rio e das suas margens, da água fluente e do seu percurso, depois de nos levar à fonte para, aí, contemplar e saborear as origens de tanta abundância e frescura. Bela opção, a augurar um significativo texto com episódios emblemáticos da missão de Jesus e do seu alcance universal.
A fonte de tudo é Deus. Ele está no princípio, quer ser o protagonista no meio, caminhando connosco e com toda a criação, e acolher-nos no fim. Paulo lembra aos atenienses que n’Ele vivemos, nos movemos e existimos; como alguns dos vossos poetas disseram: «Somos da raça de Deus» (Act 17, 28).
O manancial de Deus manifesta a sua vida íntima a jorrar na criação do mundo e da biodiversidade, por força da sua Palavra, o seu Verbo, na superação do caos pela harmonia, das trevas pela luz, da solidão pela comunhão. A Palavra divina, sábia e fecunda, ergue-se em som vibrante que se repercute ao longo da história: ”Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança” e toma o rosto do masculino e do feminino, em atração de reciprocidade complementar.
Quando chega o momento aprazado por Deus, Ele que tinha falado de muitos modos e vezes, sobretudo pelos profetas, envia o seu Filho nascido de Maria, a jovem de Nazaré, a quem é dado o nome de Jesus. Decisão admirável, apelativa e reconfortante. Decisão arriscada, pois o ser humano, ao abrigo da liberdade, é capaz do melhor e do pior, como a história documenta abundantemente.
Deus faz-se humano em Jesus, recém-nascido. O espaço de encontro fica devidamente assinalado pela estrela de Belém. As circunstâncias envolventes o configuram e caracterizam. E do silêncio eloquente da gruta ergue-se o apelo/convite: Vinde e reconhecei a grandeza da pequenez, a humanidade do divino, a divindade do humano. Só em Jesus, vemos e conhecemos a Deus. Só em Jesus, vemos e conhecemos o homem. Que maravilha e encanto! “Da sua plenitude todos nós recebemos graça sobre graça”, refere o autor da narração, que afirma ao concluir: “A Deus, nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer”.
Quem pode imaginar maravilha tão desconcertante!? Deus despojado de tudo aquilo com que adornaram a sua aparição na história, assumindo a fragilidade de uma criança como título de glória, dependendo de cuidados vitais de proximidade imediata, sem outra dignidade que a do ser humano e dos direitos inalienáveis que lhe são reconhecidos. Quem pode imaginar a novidade, agora exposta, do caminho de realização pessoal e relacional, de êxito na vida e de sucesso na missão?! Deus para humanizar a sociedade e o mundo opta pelos sem poder nem riqueza, sem prestígio nem influência. E aposta na convivência e na comunhão com todos, no humano que há em cada pessoa.
O que podemos conhecer de Deus é o que brilha “no menino envolto em panos e deitado na manjedoura”, adianta Lucas numa expressão cheia de poesia e ternura. A grandeza de Deus é a humanidade deste recém-nascido. Deus torna-se homem como nós, “um da mesma massa que nós” no dizer de Santo Hipólito de Roma.
Ao agir assim, deixa perceber o que pretende: Que o homem, seguindo as pisadas do Filho Jesus Cristo, encontre Deus em plenitude. “Eis a maravilhosa permuta celebrada no Natal. A encarnação narra que tudo o que é humano, da conceção à morte da pessoa, é objecto da solicitude e do interesse de Deus, está envolvido pelo amor de Deus”. (L. Manicardi, (2017), Comentário à Liturgia dominical e festiva, Ano B, Paulinas, p. 36. E este autor prossegue: “A encarnação diz-nos que a vida de Jesus, no seu desenrolar quotidiano e humaníssimo, feito de encontros e de amizades, de serviço e de amor, de dedicação radical aos irmãos e de obediência ao Pai, ensina-nos a viver segundo Deus”.
Perante esta realidade sublime, brota espontânea a exclamação de São Gregório de Nazianzo: “Ó admirável comércio!”; comércio/permuta de dons que explicita, dizendo: “Aquele que enriquece os outros torna-se pobre. Aceita a pobreza de minha condição humana para que eu possa receber os tesouros de sua divindade. Aquele que possui tudo em plenitude, aniquila-se a si mesmo; despoja-se de sua glória por algum tempo, para que eu participe de sua plenitude”.
Fazer Natal é mergulhar nesta maravilha, deixar-se banhar pela sua originalidade, imbuir-se da sua “magia e encanto”, cuidar da criança que há em nós, cultivar o sorriso na vida e a simplicidade educada na relação, ser, dentro do possível, discípulo~missionário de Jesus. Fazer Natal é reconfigurar as arcaicas imagens de Deus que povoam o nosso imaginário e, ainda, muitas orações litúrgicas e devoções populares.
Dom António Moiteiro, na sua mensagem de Natal, realça uma dimensão consequente ao afirmar: “O amor desceu à terra. A caridade chegara ao coração dos homens, vinda do coração de Deus, para fazer a sua morada definitiva entre nós… Só a partir da humildade, da pobreza interior, da simplicidade de coração, se poderá estar preparado para descobrir na humanidade a divindade de Deus, que quis enraizar-se na história dos homens. Esta humildade é inspiração para todos os fiéis”.
Definivamente, em Jesus Deus faz-se humano. Acredita, admira, celebra e testemunha. Boas Festas!

Georgino Rocha

domingo, 17 de dezembro de 2017

Papa celebra o seu 81.º aniversário



O Papa Francisco completou hoje, 17 de dezembro, a bonita idade de 81 anos. Nesta hora, não posso deixar de admirar a sua paixão pela Trindade Divina, sendo responsável máximo pela Igreja que ama como provavelmente mais ninguém. 
Diariamente, sem cansaço nem tibiezas, sem medos nem hesitações, acorda o mundo para os frutos dos nossos comodismos e indiferenças, bem patentes nas injustiças dilacerantes que assolam milhões de seres humanos em todos os quadrantes da Terra. Sente-se envergonhado pelo mal que fazemos e pelo bem que não fazemos, pelos nossos orgulhos e preconceitos, mas também pelos nossos olhares de soslaio para quem tem fome e sede de justiça, pelas guerras que alimentamos e pela paz que nos recusamos a construir.
O Papa Francisco, que veio do outro lado do mundo para acordar uma Igreja adormecida, uma Igreja do luxo e de vaidades, não se cansa de bradar para que os católicos e demais homens de boa vontade saiam em força para as periferias, onde importa, quanto antes, levar Cristo aos deserdados, aos famintos de verdades salvíficas e do pão reconfortante, deixando os adros das igrejas à espera dos peregrinos que se perderam nos caminhos da vida por falta da Luz que ilumina valores de paz, alegria e fraternidade. O Papa quer uma Igreja pobre de bens e rica de amor para os feridos pela sociedade do descartável. Uma Igreja sem pompa imperial, mas aberta à partilha. 
Que Deus Todo Poderoso abençoe o Papa Francisco, são os meus votos.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Georgino Rocha — Valorizar os dons que Deus te confia



Jesus quer deixar claro quem é Deus. Está na parte final dos seus ensinamentos. Tem consigo os discípulos e, neles, todos os que virão a acreditar na sua palavra. Como nós, hoje. E recorre a três parábolas muito concretas: A da festa nupcial, narrada no domingo passado, a da avaliação final ou do juízo da humanidade e do universo, no próximo domingo que a Igreja celebra como a Festa de Cristo Rei, a de hoje dedicada aos talentos confiados aos servos por um homem rico que vai fazer uma viagem. Por indicação do Papa Francisco este domingo é consagrado especialmente aos Pobres, o que indica uma chave de leitura para o texto evangélico
Mateus elabora uma excelente catequese para os judeus convertidos, destinatários preferenciais do seu evangelho. E faz uma narração em que praticamente todos os elementos têm um especial significado. Vale a pena acompanhar o seu precioso relato.
Um homem parte de viagem. (Mt 25, 14-30). Certamente teria razões sérias: Gosto pela aventura, cansaço das rotinas da vida, tentativas de alcançar novos benefícios, ou o desejo de mostrar uma faceta do seu coração: a confiança nos empregados e no seu agir responsável? Tudo aponta para esta última hipótese. Os dons entregues gratuitamente têm apenas em conta as capacidades dos servos, nem sequer as necessidades ou outras circunstâncias. São à medida de cada um. Sem exigir nada que a ultrapasse. Não pretende sobrecarregar ninguém, nem provocar cansaços estéreis. Nada de “burnout”. Mas uma excelente oportunidade para que as capacidades possam desenvolver-se, afirmar-se, atingir a maturidade. Que propósito sublime e beleza confiante!
A viagem demora o tempo suficiente para que os servos possam realizar o trabalho encomendado. Certamente que, entretanto, vários sentimentos o assaltam, antes de vir encontrar-se com eles. Mas a confiança na sua atitude responsável prevalecia. E que grande alegria se apoderou do seu coração quando ouvia o relato do que havia acontecido aos dois primeiros. Tinham conseguido o pleno: Os cinco multiplicaram-se por outros cinco; o mesmo acontecendo aos dois que alcançaram outros dois. O dono tem uma reacção curiosa, cheia de mensagem: Não reclama nada, mas tudo entrega de novo: as mais-valias e os talentos confiados. Com provas tão positivas, os servos podem desempenhar serviços maiores e saborear a alegria exuberante do seu senhor. Que momento tão consolador! Que desfecho tão surpreendente! Que apreço pela confiança serena e activa!
O mesmo não acontece com o que havia recebido o talento proporcional às suas capacidades e actua de acordo com as regras que conhece: Sabia que és severo; tive medo e salvaguardei o teu talento; aqui o tens. Mateus ao destacar as razões invocadas deixa a claro a força paralisante do medo, a asfixia das capacidades que provoca, a esterilidade da vida respaldada na segurança e na acomodação. Razões que podem iluminar muitas atitudes e comportamentos actuais, e, à maneira de “chicotada psicológica”, abanar consciências adormecidas. E o dono complacente aceita a medida indicada pelo servo medroso. As razões que acompanham a sua declaração visualizam as trevas do seu coração, a solidão em que se colocou, o choro da lamentação consentida. “Tudo isto revela o que impediu o servo de entrar numa relação de confiança”, que é um dos objectivos da parábola. (Vers Dimanche, nº 469).
Deus oferece-nos a possibilidade de viver já a sua alegria. Espera que correspondamos à confiança que tem em nós e cuidemos dos seus dons que enriquecem a nossa humanidade: Os da criação e das criaturas, os da saúde integral e da educação libertadora, os da solidariedade operativa e da caridade a toda a prova, os da celebração dos sacramentos e da participação na missa dominical, os da graça divina como presença revigorante das nossas forças peregrinas.
O Papa Francisco envia-nos uma mensagem especial para o “Dia Mundial dos Pobres” que celebramos, hoje. Dela retiramos este parágrafo persuasivo: “Benditas as mãos que se abrem para acolher os pobres e socorrê-los: são mãos que levam esperança. Benditas as mãos que superam toda a barreira de cultura, religião e nacionalidade, derramando óleo de consolação nas chagas da humanidade. Benditas as mãos que se abrem sem pedir nada em troca, sem «se» nem «mas», nem «talvez»: são mãos que fazem descer sobre os irmãos a bênção de Deus. (da mensagem do Papa Francisco para o dia Mundial dos Pobres, nº 5). Os dons de Deus estão nas nossas mãos!
Georgino Rocha
 

domingo, 22 de outubro de 2017

Bento Domingues — Deus, nosso rival?



1. As narrativas dos Evangelhos já têm mais de dois mil anos, mas foram escritas para desassossegar as Igrejas de todos os tempos. Contam que Jesus de Nazaré não conseguia passar ao lado das vítimas de doenças físicas ou psíquicas, fruto de muitas outras misérias. Convivia e comia com as pessoas que a hipocrisia religiosa e moral classificava como pecadoras, sabendo que se expunha a ser considerado como uma delas. Por causa da sua teimosia em trabalhar na libertação das pessoas, mesmo no dia mais sagrado da sua religião, o sábado, era tido como um agente clandestino de Satanás. Mas, para ele, esse dia só podia ser reservado para Deus se fosse a festa da vida liberta.
Os evangelistas puseram na boca deste Nazareno um apelo comovente: vinde a mim todos os que andais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei. Os Actos dos Apóstolos resumiram todo o seu itinerário numa frase: passou a vida fazendo o bem.
Não suportava, porém, os espiões da sua ortodoxia religiosa ou política. Não tinha paciência para as astúcias dos príncipes dos sacerdotes, dos escribas e fariseus. Àqueles que o interrogavam de má-fé — só para ver se o apanhavam em falta — mandava-os bugiar. Jesus, mesmo em pleno tribunal, não reagiu como um vencido ou um cobarde. Passou ao ataque. A imagem que melhor o pode sugerir é a de um profeta bíblico, figura da lucidez perante as contradições da actualidade. Profeta e mais do que profeta, irmão universal.
No texto do Evangelho da Missa de hoje, ao desmascarar os fariseus que o queriam meter num beco sem saída, cunhou um aforismo que tem percorrido os séculos e desautorizado os que não se cansam de manipular a religião para fins políticos e a política para fins religiosos.
A questão dos impostos é sempre muito sensível, sobretudo em situações de luta anticolonial. Naquele caso, era especialmente grave. Jesus tinha de tomar posição e mostrar se estava com ou contra a dominação romana, se era um verdadeiro israelita ou um traidor. Resposta de Jesus: fostes vós que criastes esta situação política estampada na moeda que usais. Portanto: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”
Os aforismos não são demonstrações, mas podem traduzir e suscitar atitudes exemplares. As actuais e violentas manifestações de fundamentalismo religioso e político já deviam estar ultrapassadas pela resposta de Jesus. Não estão. A chamada “morte de Deus e do homem” — nem deísmo nem humanismo — conduziu ao puro niilismo. Quando vale tudo, nada vale a pena. De facto, estamos, de novo, na pior forma da perversão religiosa: matar em nome de Deus!

2. Sem tentar refazer essa história de rivalidades loucas, não posso esquecer o conhecido mito grego de Prometeu ou o drama da relação entre religião e cultura. Os deuses escondem aos seres humanos o segredo da vida feliz. Aquilo de que os seres humanos precisam para fazer a sua vida, por sua conta e risco, o fogo (isto é, as ciências e as técnicas), tem de ser arrancado aos deuses contra a sua vontade, como o fez Prometeu. Deuses e homens são rivais. A felicidade dos deuses é a desgraça dos humanos e a felicidade dos seres humanos é uma usurpação aos deuses. São irremediáveis concorrentes.
Essa mentalidade penetrou em certas formas de pensamento e comportamento no mundo cristão de diversas épocas, embora de forma indevida, perversa. Desenvolveu-se no âmbito de uma pseudo-espiritualidade de “desprezo do mundo”. Esta é uma expressão carregada de ambiguidades. O dito popular “Tudo o que sabe bem é pecado ou faz mal” teve e tem um sucesso anticristão. Por detrás dessa atitude está uma concepção do chamado “pecado original”, deveras muito original: sem saber como, nascemos não apenas com uma herança genética, sã ou doente, mas também com uma história de pecado em que fomos concebidos. Temos contas a ajustar com Deus, reparar o mal que lhe fizemos, antes mesmo de ter feito ou pensado seja o que for!
Mesmo quando somos conscientes do mal que fazemos, S. Tomás de Aquino lembrou que Deus não é ofendido por nós, a não ser na medida em que agimos contra o nosso próprio bem ou o dos nossos irmãos, filhos de Deus [1]. Nem Deus procura a sua glória por causa dele, mas por nós e para nós. Não é um carente afectivo [2]. A glória de Deus é a alegria dos seres humanos. Deus não é, não pode nem quer ser tudo. O mundo não é divino. Deus afirma-se fazendo ser o que Ele não é. Gera a diferença radical. A transcendente acção divina não entra em concorrência com a evolução cósmica ou com a liberdade humana.
A teologia negativa de Tomás de Aquino é anti-idolátrica, mas não é niilista. O prazer de Deus criador, o Poeta, não é a negação dos prazeres humanos.
Dizia o teólogo evocado que o prazer é o resultado do agir perfeito. O prazer dos sentidos testemunha a sua boa saúde e a sua integração harmoniosa no bem total da pessoa, guiada pela razão e pelos afectos. A construção humana é um processo de conjugação de relações interiores, consigo mesmo, com os outros e com o mundo. O mal surge quando, de modo responsável, nos privamos dessa virtuosa conjugação de relações limpas. Os apetites desgarrados introduzem uma desordem que nos destrói.

3. Durante vários anos ensinei a cadeira de Teologia das Realidades Terrestres. A sua temática tinha-se afirmado nos anos 40-50 do século passado e marcou a constituição conciliar, “a Igreja no mundo contemporâneo” (Gaudium et Spes). A questão que a desafiava era existencial: qual é a significação das actividades nas quais os seres humanos passam a maior parte do seu tempo — na família, na escola, na profissão, nos lazeres — para o acolhimento e realização do Reino de Deus, alegria do mundo? É uma descoberta nunca acabada.
Era e continua a ser importante acabar com a ideia de que um católico praticante é, apenas, o das práticas religiosas, prescritas ou devocionais. Quando os inconformados com as situações degradantes da sociedade se decidem a trabalhar na construção de um mundo mais humano é que se tornam, como diz S. Paulo (Rm 12), verdadeiramente praticantes do culto que agrada a Deus. Mesmo sem assinatura religiosa.
Neste momento, o culto que Deus nos pede, em Portugal, é a mobilização da Igreja e da sociedade pela nossa casa comum ameaçada, ano após ano, pela incúria de todos.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Contra Gentiles, III, c. 122
[2] Summa Theologiae, II-II, q. 132, a

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Georgino Rocha — Admirados com a resposta de Jesus. Aprecia!


A figura e a inscrição na moeda que os fariseus mostram a Jesus constituem o ponto de partida para o ensinamento que o Evangelho de hoje nos transmite. (Mt 22, 15-22). As autoridades queriam desforra pelos desafios que as atitudes de Jesus lhes lançavam. Haviam tentado apanhá-lo já em alguma questão acusatória. Agora colocam-lhe a pergunta envenenada: “É lícito pagar o imposto a César ou não?”. São seus porta-vozes alguns fariseus e outros partidários de Herodes, aliados de circunstância para a armadilha dar resultado.

E têm tudo bem pensado. Procuram captar a benevolência de Jesus, elogiando-o com menções honrosas verificáveis: Sabemos que és verdadeiro, ensinas o caminho de Deus, não fazes acepção de pessoas porque vais para além das aparências. Dir-se-ia que para começar não havia melhor entrada. Mas palavras são palavras que podem esconder a realidade. E esta era a intenção dos “inocentes louvaminhas”, intenção que Mateus, o narrador do relato, apresenta de modo claro: Os fariseus fizeram um plano para apanhar Jesus.

Plano bem urdido, temos de reconhecer. Logicamente qualquer resposta seria comprometedora. Se Jesus dissesse: Não se deve pagar o imposto, seria acusado de subversivo; pelo contrário; se concordasse com o pagamento, não sintonizava com os gemidos do povo subjugado pelas forças do Império Romano. De qualquer modo, ficava sempre mal visto e com provas condenatórias. Que momento delicado vive Jesus. E tem de tomar uma decisão urgente. Que terá sentido no seu coração apertado? Que critérios se podem descortinar na sua atitude? Ela vai ser desconcertante e os seus adversários ficam espantados. De admiradores “louvaminhas”, passam a cúmplices acusados, de homens verdadeiros a hipócritas denunciados, de tentadores disfarçados a gente desmascarada. E para cúmulo, diríamos com humor, a sua reacção a este “tratamento de excelência” é de admiração e não de confusão, como seria normal.

“Mostrai-me a moeda do imposto. De quem é a figuira e a inscrição?”. “De César”, dizem. E Jesus olhando a efigie do imperador, responde: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. E eles ficam admirados. E nem era para menos. Como podiam fazer-lhe qualquer acusação? A sabedoria triunfa sobre a artimanha e a verdade ilumina não apenas a relação entre o poder civil e a autoridade religiosa, como alguns chegam a pensar, mas o rosto de Deus que deixa a sua imagem e semelhança no ser humano, homem e mulher, o reflexo da sua beleza no santuário da consciência pessoal, os vestígios da sua impressão digital nas criaturas e na criação. O cunhar moeda, o pagar impostos, o regime fiscal e tudo o que se liga com esta rede deve estar em consonância com aquela verdade primeira, e, sendo justos, isto é servindo o bem comum ou, pelo menos da maioria necessitada, tornam-se obrigatórios moralmente, e os prevaricadores, incluindo a própria autoridade que os estabeleceu, são passíveis de penalização legal.

Em comentário a este episódio, afirma Frei Raimundo de Oliveira, op: “O imposto era o sinal da dominação romana; os fariseus rejeitavam-na, mas os partidários de Herodes aceitavam-na. Se Jesus responde «sim», os fariseus desacreditá-Lo-iam diante do povo; se diz «não», os partidários de Herodes poderão acusá-lo de subversão. Mas Jesus não discute a questão do imposto. Ele só se preocupa com o povo: A moeda é «de César», mas o povo é «de Deus». O imposto só é justo quando reverte em benefício do bem comum. Jesus condena a transformação do povo em mercadoria que enriquece e fortalece tanto a dominação interna como a estrangeira”. (Bíblia Pastoral, Ed. São Paulo Lisboa 1993, p. 1380, em nota de roda-pé). 

“Dar a Deus o que é de Deus” é consigna para todo o sempre porque o homem realizar-se-á no seu melhor: ama sem acepção de pessoas nem fronteiras de tempo; vive e convive amigavelmente com todos os humanos e com respeito pela criação inteira; situa-se na história como agente responsável na escuta dos gemidos das criaturas oprimidas e na sua libertação integral; aspira a que os direitos básicos sejam assegurados a todos, designadamente o da dignidade, da alimentação, do vestuário, da saúde e de tantos outros. O contrário será o drama da humanidade, sempre possível!

“Dar a Deus o que é de Deus” é ver respeitada a liberdade de consciência e poder expressá-la pessoalmente e de forma associada, na rua e nos templos, dentro de um quadro legal que facilite a harmonia de cidadãos que vivem numa sociedade plural. É sentir-se reconhecido nesta relação com a fonte original de todos os bens e ver facilitada, mediante a criação de condições favoráveis, a transmissão dos valores correspondentes a educação nas famílias, nas escolas de serviço público, na comunicação social.

“Dar a Deus o que é de Deus” é dar largas ao coração que exulta de alegria e convida a terra inteira a associar-se a este louvor, é publicar entre as nações as suas maravilhas, é anunciar a todos os povos a novidade do amor revigorante que o Senhor nos tem. O salmista da liturgia de hoje convida-nos a alargar horizontes.

Hoje é o Dia Mundial das Missões. O Papa Francisco dirige-nos uma mensagem e um veemente apelo: “A missão da Igreja, destinada a todos os homens de boa vontade, funda-se sobre o poder transformador do Evangelho. Este é uma Boa Nova portadora duma alegria contagiante, porque contém e oferece uma vida nova: a vida de Cristo ressuscitado, o qual, comunicando o seu Espírito vivificador, torna-Se para nós Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14, 6)… Promovido pela Obra da Propagação da Fé, o Dia Mundial das Missões é a ocasião propícia para o coração missionário das comunidades cristãs participar, com a oração, com o testemunho da vida e com a comunhão dos bens, na resposta às graves e vastas necessidades da evangelização… Que a Virgem nos ajude a dizer o nosso «sim» à urgência de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus no nosso tempo; nos obtenha um novo ardor de ressuscitados para levar, a todos, o Evangelho da vida que vence a morte; interceda por nós, a fim de podermos ter uma santa ousadia de procurar novos caminhos para que chegue a todos o dom da salvação”.

domingo, 24 de setembro de 2017

Bento Domingues — Um Deus distraído?



1. Não têm conta as vezes que me fizeram, e fazem, a pergunta do título desta crónica. Sei que não tenho o exclusivo.
Não escondo que me divertem as pessoas religiosas e teólogas que dão a ideia — pelo que dizem e escrevem, pelo que aconselham ou mandam — que conhecem a vontade de Deus e os seus misteriosos caminhos. A tudo dizem: foi a vontade de Deus, mesmo quando essa expressão, pretensamente piedosa, é o pior insulto que Lhe podem fazer.
Por outro lado, são, por vezes, as mesmas pessoas que, pelas suas repetidas e abundantes orações, supõem que Deus ande mal-informado. As chamadas orações dos fiéis nas Celebrações Eucarísticas, mais ou menos gemidas, tentam lembrar a Jesus a sua responsabilidade pela péssima situação mundial.
Parece que todas as religiões, ou a maioria, têm fórmulas e livros de orações. Basta ir ao Google e, a partir da palavra oração, podemos ficar minimamente referenciados acerca desse mundo, ora sublime ora ridículo.
A nossa ligação fervorosa a Deus deveria estar atenta à nossa radical ignorância. Nunca me posso esquecer que S. Tomás de Aquino, depois de expor a sua epistemologia teológica e de apresentar as razões que tinha para afirmar que Deus existe, empenhou-se em mostrar, imediatamente, que não podemos saber como é Deus. A teologia dele é, sobretudo, uma luta contra as idolatrias que se insinuam em todas as atitudes e discursos religiosos.
Julgo que a religião — embora seja uma palavra de origem latina — nasce da consciência, mais ou menos explicita, do ser humano como realidade limitada. Precisa do outro para nascer, para crescer, para viver e para morrer. Não é auto-suficiente. É, por natureza, carente de cultura e de afectos. É uma realidade em permanente processo. Vai sendo através dos mil contactos cultivados ao longo da vida. É, estruturalmente, um ser aberto. Neste mundo multicultural e multirreligioso desenvolve-se bem ou mal, na recusa ou na aceitação. Quando se fecha aos outros, perde-se e afoga-se em si mesmo.
As boas relações humanas são as de acolhimento e cooperação. As más são as de dominação psicológica, económica, política e religiosa. Por isso, a pergunta mais sagrada, mais religiosa, em todas as situações, talvez seja esta: em que posso ajudar?
Não é por acaso que a primeira grande pergunta que Deus faz, logo no Génesis [1], seja esta: que fizeste ao teu irmão, e seja também a última que julgará a nossa história, segundo o Evangelho de S. Mateus [2].
Mas, então, devemos ou não rezar?

2. Não faltam, mesmo no Novo Testamento, recomendações de que devemos rezar sempre e em toda a parte. Não de qualquer maneira. Nem foi a primeira preocupação de Jesus. Consta, no Evangelho de S. Lucas, que os discípulos se sentiam um grupo um bocado abandonado, nesse aspecto. “Estando [Jesus] num certo lugar a rezar, ao terminar, um dos seus discípulos pediu-lhe: Senhor, ensina-nos a orar como João ensinou aos seus discípulos.” [3] Daí, resultou uma longa conversa e uma parábola que termina de forma paradoxal: a única coisa garantida é que o Pai dos Céus dará o seu Espírito aos que o pedirem. S. Mateus põe na boca de Jesus a recomendação: “Nas vossas orações não useis de vãs repetições, como fazem os gentios, porque entendem que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos. Não sejais como eles, porque o vosso Pai sabe do que tendes necessidade, antes de lho pedirdes.” De facto, deixou-nos apenas pistas muito gerais, no Pai-Nosso [4].
Estas indicações básicas atribuídas a Jesus deveriam merecer mais atenção. A Liturgia das Horas, rezadas em coro em muitas congregações religiosas, serve-se da recitação dos Salmos do Antigo Testamento. É precisa uma grande dose de paciência para aguentar a divisão entre o povo de Deus e os outros povos que não sabemos de quem são, geralmente inimigos. Esse Deus tem o encargo de defender e ajudar o seu povo e de atacar os outros povos. É um mundo pouco edificante de amigos e inimigos. É preciso, depois de Jesus Cristo, estar sempre a fazer descontos na oração.
Fazem parte de cenários em que se põe na boca do Senhor, Deus de Israel, uma narrativa na qual, depois de muitas bem-feitorias ao seu povo, que, finalmente, atravessou o Jordão e chegou a Jericó, faz esta declaração fantástica, coroa de muitas outras: “Combateram contra vós os que dominavam a cidade — os amorreus e os perezeus, os cananeus e os ititas, os girgasitas, os hevitas e os jebuseus — mas Eu entreguei-os nas vossas mãos. [...] Não foi com a vossa espada nem com o vosso arco que tudo isto foi feito. Dei-vos uma terra que não cultivastes, cidades que não construístes e onde agora habitais, vinhas e olivais que não plantastes e de que vos alimentais.” [5]
Pode um cristão rezar a um Deus destes?

3. Anda o Papa Francisco a dizer que não se pode matar em nome de Deus e, depois, louvá-Lo por ser um terrorista, porque eterno é o seu amor?
O diálogo inter-religioso, para não ser um teatro de mau-gosto, deve incluir a crítica das expressões religiosas que ofendem a Divindade maltratando os seres humanos.
Em Assis, já diversas vezes, os representantes de diferentes religiões foram rezar juntos. Nenhum tem o direito de criticar a forma de rezar dos outros, mas todos se deveriam sentir responsabilizados a contribuir, no âmbito da sua religião, para reverem as respectivas formas de rezar.
Por outro lado, se o ser humano é religioso pela interpretação que faz do seu limite, tem de cuidar de não transpor para Deus a sua responsabilidade. Quando se diz, de forma metafórica, que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança, isso significa que o ser humano, por ser livre, é responsável pelo seu mundo, pela casa comum.
O Papa Francisco não se cansa de repetir que já estamos, de modo fragmentado, na terceira guerra mundial. Existem sistemas económicos que devem fazer a guerra para sobreviver. Ao fabricar e vender armas sacrificam, nos balanços económicos, o ser humano no altar do deus dinheiro.
Gosto da sua forma de rezar: Queridas irmãs e irmãos, eleva-se de todos os lugares da terra, de cada povo, de cada coração e dos movimentos populares, o grito da paz: guerra, nunca mais! [6]
Não é a um Deus distraído que ele reza. Reza para diminuir o mundo dos distraídos.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Gn 4, 1-15
[2] Mt 25, 31-46
[3] Lc 11, 1-13
[4] Mt 6, 5-15
[5] Cf. Js 24, 1-13
[6] Politique et société, du Pape François (Rencontres avec Dominique Wolton), Editions de L’Observatoire/Humensis, 2017, p. 11.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Anselmo Borges — António Nobre e Francisco


António Nobre escreveu um poema. Dedicado ao Papa Leão XIII. É comovente e foi seleccionado por Eugénio de Andrade para a sua Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Diz assim:

"Ó Padre Santo! Meu Irmão! Ó meu amigo/Do velho mundo antigo/- Dá-me consolação, e prova-me que há Deus;/Resolve-me a equação estrelada dos céus;/Admite-me ao Conselho amigo dos Cardeais;/Deixa-me ler, também, na letra dos missais!/Muito que te contar! Não conheces o mundo?/Nunca desceste, Padre!, a esse poço profundo?/Metido nessa cela ideal do Vaticano,/Há quanto tempo tu não vês o Oceano?/Nunca viste um bordel! Sabes o que é a desgraça?/Ouviste acaso o "pschut"! delas, a quem passa?/Sabes que existem, dize, as casas de penhores?/No teu palácio, há, porventura, amores?/Viste passar, acaso, um bêbado na rua?/Já viste o efeito que na lama imprime a lua?/Ouve: tiveste já torturas de dinheiro?/Já viste um brigue no mar? Já viste um marinheiro?/Que ideia fazes das crenças dos rapazes?/Já viste alguém novo, Padre? Que ideia fazes,/Santo Leão, do Boulevard dos Italianos?/Recordas com saudade os teus vinte e três anos?/Ó Leão XIII! Ó Poeta, essa é a minha idade!,/Como tu vês, estou na flor da mocidade!,/Ainda não contei metade de cinquenta./Começa-me a nascer a barba, o mundo tenta/A minha alma: ah, como é lindo esse Demónio!/Nasci em Portugal, chamo-me António;/(...) Em pequenino, Padre, ajoelhado na cama,/A erguer as mãos a Deus, ensinou-me a minha ama:/Sabia de cor mil e trezentas orações,/Mas tudo esqueci no mundo aos trambolhões.../Nossa Senhora te dirá se isto é assim!/ - O que há-de ser de mim?"

Se fosse agora, com o Papa Francisco, António Nobre não se queixaria tanto. Porque Francisco não é o Papa da distância, mas da proximidade. Ele não é prisioneiro dentro do Vaticano: ele vai à rua, fala com os sem-abrigo, abraça os doentes e que "se não deve ter medo da ternura", ele sabe de bordéis e ainda recentemente visitou uma casa de antigas prostitutas, já viu bêbados e amparou-os, tem experiência do que é ter torturas de dinheiro e, por isso, ergue-se contra o cancro da corrupção e prega contra a injustiça e o ídolo do dinheiro, sabe das crenças dos rapazes e das raparigas e das suas lutas e demónios e tem e pede aos padres e bispos compreensão para eles e que a confissão não seja "uma câmara de tortura", vê oceanos nas suas viagens pelo mundo em busca do diálogo e da paz entre os povos...

Francisco também sabe das dificuldades da fé. Porque a Igreja anda, como dizia o cardeal Carlo Martini, com duzentos anos de atraso, e a teologia tem sido marginalizada, calada e perseguida. Ele conhece concretamente o que o seu companheiro jesuíta José María Castillo escreveu recentemente sobre o tema: de como as ciências e as tecnologias avançam com novos conhecimentos enquanto a teologia fica entregue ao desalento, tolhida, cada vez com menos interesse, incapaz de responder às novas perguntas, empenhada como está em manter, como intocáveis, alegadas "verdades" que não sabe como é possível continuar a defender. E dá exemplos: "Como podemos continuar a falar de Deus, com a segurança com que dizemos o que Ele pensa e quer, sabendo que Deus é o Transcendente, não estando portanto ao nosso alcance? Como é possível falar de Deus sem saber exactamente o que dizemos? Como se pode assegurar que "por um homem entrou o pecado no mundo"? Vamos continuar a apresentar como verdades centrais da nossa fé o que na realidade são mitos que têm mais de quatro mil anos? Com que argumentos se pode assegurar que o pecado de Adão e a redenção desse pecado são verdades centrais da nossa fé? Como é possível defender que a morte de Cristo foi um "sacrifício ritual" de que Deus precisou para nos perdoar as nossas faltas e salvar-nos? Como se pode dizer que o sofrimento, a desgraça, a dor e a morte são "bênçãos" que Deus nos manda? Porque continuamos a manter rituais litúrgicos que têm mais de 1500 anos e que ninguém entende nem sabe por que razão se continua a impor às pessoas? É mesmo verdade que acreditamos no que nos é dito em alguns sermões sobre a morte, o purgatório e o inferno?" E a lista de perguntas sobre doutrinas estranhas e contraditórias poderia continuar. E as igrejas esvaziam-se. E uma das razões é uma teologia paupérrima, tolhida pelo medo.

Aí está uma das razões por que Francisco tem tantos adversários e mesmo inimigos. E ele o que faz? Para abrir o caminho de uma teologia aberta, depôs o cardeal G. Müller de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e substituiu-o pelo jesuíta L. Ladaria. Continua a ir em frente, procurando pôr em marcha o Evangelho a favor da humanidade. E socorre-se também do bom humor, e todos os dias reza a oração do bom humor, oração de São Thomas More, o autor de A Utopia, que não se esqueceu de levar a gorjeta para o carrasco que ia decapitá-lo. Francisco recomendou-a também aos membros da Cúria Romana, sobretudo aos díscolos:

"Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para digerir./ Dá-me um corpo saudável e o bom humor necessário para mantê-lo./Dá-me uma alma simples que sabe valorizar tudo o que é bom/e que não se amedronta facilmente diante do mal,/mas, pelo contrário, encontra os meios para voltar a colocar as coisas no seu lugar./Concede-me, Senhor, uma alma/que não conhece o tédio, /os resmungos,/os suspiros/ e as lamentações,/nem o excesso de stress por causa desse estorvo chamado "Eu"./Dá-me, Senhor, o sentido do bom humor./Concede-me a graça de ser capaz de uma boa piada, uma boa piada para descobrir na vida um pouco de alegria /e poder partilhá-la com os outros./Ámen."

Anselmo Borges no Diário de Notícias de hoje 

Georgino Rocha — Jesus em oração: Eu Te bendigo, ó Pai


O texto de Mateus, hoje proclamado na liturgia, constitui um bom reflexo da sensibilidade de Jesus e dos horizontes em que se move; da sua vontade de instaurar os valores do Reino e da preferência por quem está aberto à boa nova que anuncia; da sintonia com o ritmo do coração humano nas suas aspirações mais genuínas e nos pequenos passos que vai dando. A felicidade surge como a atenção ao ser, relativizando o ter, tantas vezes expresso na saúde, dinheiro e amor. Sendo bens importantes, estes não são os primordiais. A felicidade está nos nossos genes. O Evangelho é o que melhor” encaixa” na nossa condição humana.

A reacção inicial à mensagem de Jesus manifesta várias atitudes: um povo infantil – como as crianças que se divertem na praça pública –, uns fariseus rígidos nas suas convicções e um “resto” fiel aberto à novidade de Deus e confiante na realização das promessas feitas. Perante esta diversidade, Jesus faz uma oração de bênção a Deus Pai, exclamando: “Eu Te bendigo, ó Pai…”, oração que apresenta uma leitura da situação e abre horizontes de esperança para o futuro enraizado no presente. Mt 11, 25-30.

“Eu Te bendigo, ó Pai” porque deste a conhecer o teu projecto de amor a todos e queres realizá-lo com a cooperação de cada um; confirmaste esta decisão de muitos modos ao longo da história, mas agora por meio da missão que me confiaste e, a partir de mim, por aqueles que escolhi – os meus discípulos e seus sucessores; abençoaste a minha preferência pelos pequeninos do reino, pelos mansos e humildes de coração.

“Eu Te bendigo, ó Pai” porque estás sempre comigo e por meio de mim desvendas o teu rosto bondoso e amigo, sorridente perante o agir dos seres humanos – homem e mulher - que acompanhas com solicitude confiante, pronto para o perdão das suas negligências e recusas, compassivo e misericordioso; por mim, queres realizar a maior prova de humanidade, mediante a minha entrega incondicional à defesa da dignidade humana e da verdade que liberta por amor. E fomos até à cruz do Calvário!

“Eu Te bendigo, ó Pai” porque compensas e alivias os cansados da vida – física, afectiva, intelectual, espiritual, moral, relacional – e os oprimidos pelo sem sentido do ram-ram da rotina, pelo peso das normas e leis desumanizantes, pelas burocracias administrativas, pelas tensões e conflitos desgastantes; ofereces-lhes um “espaço” novo – o meu coração – aberto a todos para que possam respirar o alívio suave da humildade e da mansidão e sintonizar com o seu ritmo de amor que se faz serviço ousado constante.

“Eu Te bendigo, ó Pai” porque queres dar-me a conhecer como sendo igual a Ti e mestre da humanidade, Teu Filho e tua palavra que é necessário escutar. Bendigo-te pelo esforço de tantos que estudam a nossa presença nos segredos da natureza para que sirvam melhor a humanidade; por tantos que nos descobrem e apreciam no santuário da consciência humana para que possam agir rectamente, recebendo o apoio da nossa luz e verdade; por tantos que nos encontram nas situações sofridas e injustamente impostas – os meios de comunicação trazem ao olhar, nem sempre ao coração, a “ponta” aterradora deste mundo infame – e conscientemente se dispõem a socorrer-nos, aliviando a miséria consentida; por tantos que saboreiam a suavidade da nossa companhia e a leveza do nosso amor, vivendo o seu dia-a-dia com o espírito que de nós procede e nos relaciona, reservando tempos de encontro na oração meditada, realinhando algum desvio moral na purificação da consciência, sendo membros responsáveis da sociedade e da comunidade cristã, dando testemunho de nós, “rumando” ao futuro definitivo onde todos conviveremos em família.

Escutemos o Papa Francisco no seu apelo à alegria e à paz, apelo que realça a simplicidade da vida que permite um novo sabor das pequenas coisas.

“A espiritualidade cristã propõe uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo. É importante adoptar um antigo ensinamento, presente em distintas tradições religiosas e também na Bíblia. Trata-se da convicção de que «quanto menos, tanto mais». Com efeito, a acumulação constante de possibilidades para consumir distrai o coração e impede de dar o devido apreço a cada coisa e a cada momento. Pelo contrário, tornar-se serenamente presente diante de cada realidade, por mais pequena que seja, abre-nos muitas mais possibilidades de compreensão e realização pessoal. A espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco. É um regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem entristecermos por aquilo que não possuímos. Isto exige evitar a dinâmica do domínio e da mera acumulação de prazeres”. Louvado Sejas, 222.

“Eu Te bendigo, ó Pai, porque assim foi do Teu agrado”. Não nos privemos da maravilha da oração de Jesus, saboreemos a sua mensagem e, confiadamente, deixemo-nos interpelar.

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Georgino Rocha — Ser ou não ser por Jesus


O discurso missionário de Jesus, apresentado por Mateus, atinge o seu ponto culminante com o desafio à liberdade dos discípulos a fim de se decidirem por Ele ou não, de serem ou não dignos d'Ele, de consagrarem a vida à Sua causa. (Mt 10, 37-42). O eco do desafio lançado, de forma tão desconcertante, faz estremecer certamente o coração dos apóstolos, pois o contraste é radical entre os pontos de referência aduzidos: o amor aos pais e aos filhos, a cruz e suas circunstâncias, o perder ou ganhar a própria vida. Jesus toca as fibras mais sensíveis do ser humano e quer uma atitude definitiva. Da parte de quem livremente deseja ser discípulo missionário, cristão autêntico e não apenas de nome, por ter sido baptizado ou fazer algumas práticas religiosas. “Nem os laços familiares, nem as ameaças à própria vida, nada pode impedir o discípulo de testemunhar a justiça do Reino”, escreve Frei Raimundo de Oliveira, em comentário a esta passagem do Evangelho.

A liberdade surge em todo o seu esplendor na atitude de quem se decide por seguir Jesus, ainda que venha a correr riscos, como bem ilustra a narrativa dos Evangelhos e a história da Igreja. A comunidade eclesial constitui o seu rosto irradiante e atraente. E a família cristã a sua realização doméstica, uma vez que assenta no amor conjugal heterossexual que os esposos livremente assumem e cultivam. E o cristão fiel a testemunha nas suas atitudes e intervenções de cidadania responsável. Quanto caminho andado no rumo indicado por Jesus! E quanto não falta ainda percorrer! “É melhor, dizem os antigos, um coxo andar devagar, mas pelo caminho certo do que um corredor olímpico por atalhos desviados. O coxo sempre avança em direcção à meta; o atleta quanto mais corre, mais se afasta”. Sábia sentença que nos estimula a avançar no apreço pela liberdade iluminada pelo Evangelho.

O amor aos pais e aos filhos não é negado, apenas re-situado. Supõe uma escala de prioridades. Fazer e viver de acordo com esta escala é exigente, mas dignificante. Amar Jesus para poder definir bem as prioridades, pois com ele se aprende a amar incondicionalmente, a viver um amor de doação total e definitiva. Até dar a vida pelo outro. Que bom seria que as nossas relações familiares estivessem sempre impregnadas deste amor.

Jesus conhece bem a Lei e os Profetas onde se repete o mandamento de honrar pai e mãe ( Éx 20, 12; Lev 19, 3; Deut 5, 16). A este mandamento está ligada uma promessa de longa vida; e também uma ameaça de condenação a quem amaldiçoar o pai ou a mãe ( Éx 21, 17; Lev 20, 9; Deut 27, 10). O livro do Eclesiástico convida a cuidar dos pais na sua velhice com desvelo admirável (Ecleo 3, 1-16). Todavia, quer que os discípulos dotem este amor com uma nova dimensão: a do amor incondicional semelhante ao seu. Nas alegrias e tristezas; nos momentos de provação e nas horas de felicidade. E em caso de oposição inconciliável, façam uma opção responsável, livre. Fruto da avaliação do que está em causa. 

Para isso, Jesus adianta a sua mais-valia com muita clareza: Atrai, mas sem forçar. Acompanha com delicadeza; nada do que é nosso Lhe é estranho. "Cuida de nós, vela por nós, protege, ampara, envia ajuda e socorro através da Igreja e dos outros. O modo de nos ajudar, de vir até nós nem sempre é aquele que desejávamos. Mas Ele com o seu Coração amigo e atento, sabe bem o que faz e como faz. É Amigo exigente – o amor quando é sincero é exigente; neste sentido Jesus não é um “amigo fácil”; segui-Lo é aprender a saber perder para ganhar, saber morrer para viver.” (Padre Joaquim Batalha aos paroquianos da Lourinhã).

A opção por Jesus vai acompanhada de uma promessa: a do acolhimento hospitaleiro, a da preferência pelos pequeninos, a da sintonia com Deus Pai que não regateia o seu amor misericordioso a ninguém. Acolhimento tão necessário, hoje. Preferência tão apelativa, nas circunstâncias actuais. Sintonia ritmada, sempre. Ser por Jesus faz-nos mais humanos. Experimenta!

sábado, 24 de junho de 2017

Pergunta Henrique Raposo: Como é que Deus permite isto?


«Como é que se articula a evidente imperfeição da cidade dos homens com a ideia de um Deus misericordioso? Ou seja, como é que Deus permite desgraças como a de Pedrógão Grande? Se Deus nos ama, porque é que permite que uma família de quatro morra sufocada e queimada num Renault ou num Opel numa estrada à vinda da praia? Como é que Deus permite uma aflição assim? Como é que Deus permite que um pai veja o seu bebé morrer queimado? Como é que Deus permite que o corpo de um bebé se funda com o alcatrão? Como? É o drama de Job e Eclesiastes, dois dos grandes romances da Bíblia.»

Para ler tudo aqui 

domingo, 21 de maio de 2017

Abertura a Deus




«A abertura a Deus dá credibilidade amor. Acolher, escutar, compreender, perdoar, eleger e viver inspirado no Evangelho. Não colocar limites à Misericórdia. Haverá sempre momentos difíceis, necessitamos sempre de purificação. No fundo, prestar ainda mais atenção ao ser Pessoa entre tempos e espaços divididos. Solidão e comunhão em todas as relações.»

Pedro José 

Li aqui 

domingo, 14 de maio de 2017

Fátima: que futuro?

Crónica de Frei Bento Domingues no PÚBLICO


O futuro de Fátima depende do seu empenhamento em desencadear uma verdadeira mobilização geral contra esta indiferença que nos gela o coração e agrava a miopia do olhar.

1. Nestas crónicas, recusei-me sempre a responder à pergunta: que vem o Papa fazer a Fátima? Que vinha canonizar os “beatos” Jacinta e Francisco estava assente. Para isso não precisava desta custosa deslocação. A declaração de reconhecimento da santidade destes pastorinhos podia ser feita em Roma. Por isso, julguei que era melhor esperar para ver. O Papa veio mas, antes, tinha realizado outra peregrinação bem mais arriscada e de alcance imediato: o encontro com cristãos e muçulmanos no Egipto.
Mário Bergoglio, antes de vir a Fátima, tinha publicado uma carta apostólica que transfere as competências sobre os Santuários para o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização. Vislumbrava nesse documento, inspirador e normativo, que viria realizar o que mais tem faltado em Fátima: tornar-se um centro propulsor de saída para o mundo e não apenas de um altar de incenso.
Como já referi, irritavam-me, entretanto, as notícias colhidas ou veiculadas pelo Santuário sobre os cuidados com a figura do Papa, a sua indumentária para celebrar, o cálice de ouro, a pala para o resguardar do sol e outras futilidades do género. Pareciam manifestar o propósito de neutralizar, na Cova da Iria, o que Bergoglio trouxe de novo à orientação da Igreja católica: uma Igreja de saída para todas as periferias, com gosto da alegria do Evangelho, de uma evangelização nova, libertadora, descrucificante.
Um grande desejo pode tornar-se numa grande decepção: ver o Papa chegar a Fátima e nem ele cumprir o que propôs para os santuários, seria o enterro da sua própria Carta Pastoral.
Entretanto, foi divulgada a oração que iria fazer no dia 12 de Maio, na Capelinha das Aparições. É uma celebração transfiguradora da Salve Rainha tão antiga e que, de repente, ficou uma nova respiração do céu e da terra. As invocações gastas encontraram a linguagem poética da fé incarnada na alegria do Evangelho. Atrevo-me a destacar: Ó doce virgem Maria, Rainha do Rosário de Fátima! Faz-nos seguir o exemplo dos Bem-aventurados Francisco e Jacinta e de todos os que se entregam à mensagem do Evangelho. Percorreremos, assim, todas as rotas, seremos peregrinos de todos os caminhos, derrubaremos todos os muros e venceremos todas as fronteiras, saindo em direcção a todas as periferias, revelando, aí, a justiça e a paz de Deus. Seremos, na alegria do Evangelho, a Igreja vestida de branco, da alvura branqueada no sangue do Cordeiro derramado ainda em todas as guerras que destroem o mundo em que vivemos. E assim seremos, como Tu, imagem da coluna luminosa que alumia os caminhos do mundo, a todos mostrando que Deus existe, que Deus está, que Deus habita no meio do seu povo, ontem, hoje e por toda a eternidade.
O horizonte do primeiro documento, verdadeiramente programático do Papa Francisco, (A Alegria do Evangelho), passou para a sua Salve Rainha, a oração feita missão para todas as periferias. Tinha de dizer: esta peregrinação é essencial. Como poderia Bergoglio esquecer o seu passado de transformação da religiosidade popular – puramente regional – perante um santuário que reúne multidões de muitos países?

2. O Papa veio, rezou na capela de Nossa Senhora do Ar. Repetirá, durante a sua peregrinação, que se reza em Fátima como em qualquer lugar. Seguiu para a Cova da Iria. A quem desejasse acompanhar a deslocação e a sua chegada ao santuário, os quatro canais de televisão exibiam uma verborreia contínua e irritante que não deixava espaço mental para mais nada. Não se prepararam para saber dosear o tempo da informação e do comentário com o silêncio indispensável. O silêncio imposto para a oração do Papa, na capelinha, mostrou que tudo podia ser diferente.
Um momento chave de todas as peregrinações de Fátima é o mar de luz expresso na procissão das velas. Desta vez, havia uma mensagem especial. O Papa enfrentou a sua tarefa de transformar as atitudes dos peregrinos: Peregrinos com Maria… Qual Maria? Uma «Mestra de vida espiritual», a primeira que seguiu Cristo pelo caminho «estreito» da cruz dando-nos o exemplo, ou então uma Senhora «inatingível» e, consequentemente, inimitável? A «Bendita por ter acreditado (b)» sempre e em todas as circunstâncias nas palavras divinas, ou então uma «Santinha» a quem se recorre para obter favores a baixo preço? A Virgem Maria do Evangelho venerada pela Igreja orante, ou uma esboçada por sensibilidades subjectivas que A vêem segurando o braço justiceiro de Deus pronto a castigar: uma Maria melhor do que Cristo, visto como Juiz impiedoso; mais misericordiosa que o Cordeiro imolado por nós?
Grande injustiça fazemos a Deus e à sua graça, quando se afirma em primeiro lugar que os pecados são punidos pelo seu julgamento, sem antepor – como mostra o Evangelho – que são perdoados pela sua misericórdia! (…) «Sempre que olhamos para Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da ternura e do carinho. Nela vemos que a humildade e a ternura não são virtudes dos fracos mas dos fortes, que não precisam de maltratar os outros para se sentirem importantes (…). Esta dinâmica de justiça e de ternura, de contemplação e de caminho ao encontro dos outros é aquilo que faz d’Ela um modelo eclesial para a evangelização» (b). Possamos, com Maria, ser sinal e sacramento da misericórdia de Deus que perdoa sempre, perdoa tudo.

3. Deus criou-nos como uma esperança para os outros, uma esperança real e realizável segundo o estado de vida de cada um, disse o Papa na homilia de Sábado.
Temos Mãe na Mãe de Jesus. Não veio aqui, para que A víssemos. Para isso teremos a eternidade inteira. Dos seus braços virá a esperança e a paz que necessitamos e as suplico para todos os meus irmãos no Baptismo e em humanidade, de modo especial, para os doentes e pessoas com deficiência, os presos e desempregados, os pobres e abandonados.
O futuro de Fátima depende do seu empenhamento em desencadear uma verdadeira mobilização geral contra esta indiferença que nos gela o coração e agrava a miopia do olhar. A vida só pode sobreviver graças à generosidade de outra vida. Sejamos, no mundo, sentinelas da madrugada que sabem contemplar o verdadeiro rosto de Jesus Salvador e descobrir novamente o rosto jovem e belo da Igreja, que brilha quando é missionária, acolhedora, livre, fiel, pobre de meios e rica no amor.
Bem-haja, Papa Francisco!

(a) cf. Lc 1, 42.45
(b) Exort. ap. Evangelii gaudium, 288

Nota: Este texto é quase todo composto com extractos das intervenções do Papa. A selecção e organização são minhas.

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Nota: Foto do Sapo 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Dinheiro ao serviço de quem Deus ama

Reflexão de Georgino Rocha



“Que o Senhor nos dê a graça da ‘santa vergonha’ 
diante da tentação da ambição que envolve todos, 
inclusive os bispos e as paróquias”

Papa Francisco 

Jesus quer que os discípulos tenham critérios firmes no desempenho da missão que lhes vai confiar. E ao longo da sua vida pública pronuncia sentenças de sabedoria, faz ensinamentos de ética relacional, abre horizontes à novidade do Reino de Deus já presente nas realidades humanas, embora ainda não em plenitude. Dá-lhes indicações sobre o comportamento de uns com os outros, a vida no seio da comunidade e a presença activa na sociedade/mundo. E deixa-os sempre com a liberdade de escolha, advertindo para as consequências da sua opção.

Mateus, o evangelista do Sermão da Montanha, acentua a dimensão de serviço que é inerente a toda a pessoa e está presente nas decisões e no agir. Querendo visualizar a mensagem recorre à imagem de “dois senhores”, extraída da experiência humana e acessível aos ouvintes/leitores. Nela representa Deus e o dinheiro. E como ninguém consegue servir a ambos ao mesmo tempo e com a mesma dedicação, também quem quiser segui-lo tem de fazer escolhas, dar o valor adequado a cada um deles, ter prioridades, centrar o coração, ser coerente.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Jesus e a revolução judeo-cristã

Crónica de Anselmo Borges 

Deus encarnou em Jesus Cristo

1 As sabedorias filosóficas antigas, orientais e da Grécia, elaboraram "espiritualidades" em ordem a uma vida boa, sem passar nem por Deus nem pela fé. Foi frente a essas sabedorias que o cristianismo, a partir da sua herança judaica, ergueu uma orientação nova, religiosa, de salvação, enraizada na fé num Deus pessoal, transcendente e criador. Essa nova representação foi "tão atraente e prometedora" que triunfou durante séculos sobretudo na Europa. Esta é a tese desenvolvida pelo filósofo não crente Luc Ferry, antigo ministro da Educação em França. O que é facto é que, "entre o século V e o século XVII, o Ocidente foi essencialmente cristão, cultural e filosoficamente cristão, de tal modo que a filosofia moderna, a partir do século XVII, mesmo quando foi crítica em relação às religiões, até resolutamente ateia, não deixou de ser marcada de modo decisivo por esta herança religiosa". O fundo de cultura judeo-cristã é omnipresente e por isso "é indispensável" que mesmo os não crentes se interessem e captem os traços fundamentais dessa cultura, para "se compreenderem a si mesmos e compreenderem o mundo dentro do qual vivemos", escreve Luc Ferry. A pergunta é: "Que havia de tão profundo, de tão sedutor, atraente e fascinante na mensagem de Jesus (e concretamente no que se refere à morte que injecta sempre a angústia no coração dos homens), para ter-se arrogado com tanta força o monopólio da definição legítima da salvação e da vida boa, em detrimento das espiritualidades filosóficas que formavam o essencial das sabedorias antigas?"

sábado, 7 de janeiro de 2017

A humanidade de Deus

Crónica de Anselmo Borges 
no DN



Francisco enraizou o seu discurso
precisamente na festa do Natal, 
que é "a festa da humildade amante de Deus"


1 Jesus é "a humanidade de Deus", Deus humanizou-se em Jesus, nele manifestou-se como homem. Por isso, o teólogo José M. Castillo insiste em que a "religiosidade" tem de ser entendida e vivida como Jesus a entendeu e viveu. Dá que pensar: Jesus "manteve uma relação de intimidade constante e familiar com Deus-Pai, mas manteve igualmente uma relação mortalmente conflituosa com o Templo e os Sacerdotes". O Deus da fé cristã é "verdadeiro Deus" e também "verdadeiro homem". O que se passa é que parece mais fácil crer no divino do que crer no humano. Ora, "o cristão não pode crer no divino, se não crê no humano", isto é, "não pode respeitar o divino, se não respeitar igualmente o humano". Quem ofende, humilha, mata, o ser humano, realmente não acredita em Deus. O problema é: "na Igreja há mais religião do que Evangelho." "Jesus deu-se conta de que a religião, tal como funciona, entra em conflito com a felicidade do ser humano, e as religiões proíbem amar certas pessoas, e são exigentes com as coisas mais íntimas das pessoas, mas mostram-se tolerantes com o dinheiro. Não toleram a igualdade: as religiões dão-se mal com a igualdade e têm de estabelecer diferenças: eu posso mais do que tu, e proíbo-te que penses ou digas isso." Por isso, "na Igreja, há tantas coisas que nos indignam e que não podemos aceitar. Porque é que se respeita mais o templo do que a rua? Porque é que se respeita mais certos homens do que certas mulheres? Porque é que o direito canónico concede aos clérigos direitos e privilégios que os leigos não podem ter?" Afinal, "a grande preocupação de Jesus não era se as pessoas pecavam mais ou menos, mas se tinham fome ou se estavam doentes". E Castillo observa, indignado: "Sabem quando é que a Igreja condenou a escravatura? Com Gregório XVI, em meados do século XIX. Porque é que o Vaticano ainda não subscreveu os acordos internacionais para a aplicação dos direitos humanos? Procurem a palavra "mulher" no Código de Direito Canónico. Não a encontrarão." No entanto, sublinha, nos Evangelhos encontramos a profunda humanidade de Jesus, que se manifesta nas suas três grandes preocupações: a saúde, a alimentação e as relações humanas; por isso, aparece a curar doentes, a partilhar as refeições, acolhendo toda a gente, falando com todos, sem excluir ninguém. Aí está: a fé no "divino" e no "humano" não pode valer "só enquanto se refere à "outra vida", pois tem de valer e viver-se também em tudo quanto afecta "esta vida"". E Castillo afirma, com razão, que Francisco coincidirá em muitas coisas com ele, ainda que não em tudo.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Não temas, Jesus é o Deus connosco

Reflexão de Georgino Rocha



O Filho de Maria de Nazaré tem dois nomes por sugestão do anjo que Mateus regista no seu Evangelho (Mt 1, 18-24): Jesus, o Salvador; e Emanuel, Deus connosco. Designam a mesma pessoa realçando a sua entrada na história humana e a sua função messiânica. De facto, só Jesus salva como já se indicia a partir do seu nascimento. E José, o justo, surge como o homem providencial a quem é confiado o encargo de lhe dar o nome, inserindo-o na linhagem de David e assumindo a paternidade segundo a lei judaica. Protagoniza assim um dos momentos mais marcantes da vida de Jesus, que fica a ser conhecido por filho de José, o artesão de Nazaré.
Os nomes indicados deixam em aberto a possibilidade de outros surgirem ao longo da história, não para anular o seu alcance, mas para os configurar em situações especiais. Será o caso de uma relação existencial específica ou de outra circunstância peculiar. Assim, o nome de Jesus pode ser o misericordioso, o paciente, o manso e humilde, o homem das dores, o “meu Senhor e meu Deus”, a verdade e a vida, o que vai á-frente, o pastor solícito que pôe aos ombros a ovelha perdida, o garante da vida para além da morte. E muitos outros. Os discípulos estão chamados a dar-lhe um nome vinculativo da sua relação com Ele. Qual será o que melhor expressa a tua?

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Feliz de quem não se escandaliza comigo

Reflexão de Georgino Rocha

A revolução da  ternura

Estranha afirmação de Jesus que faz parte da resposta dada aos enviados de João preocupados em saber se Ele era o Messias. Escandalizar-se com as suas atitudes e palavras, os seus gestos de cura e ensinamentos de libertação, atingia não apenas os dirigentes religiosos, mas o próprio João Baptista, o precursor. O escândalo seria fruto de algo surpreendente que contrastaria com tradições fundadas e expectativas criadas, com a mentalidade predominante alimentada em rituais de sinagoga e comentários de rua. De facto, segundo Mateus, o evangelista narrador, a surpresa é tão grande que provoca um diálogo clarificador e assertivo entre os enviados de João e o próprio Jesus. Mt 11, 2-11.
“És tu Aquele que há-de vir ou devemos esperar outro? é pergunta síntese do que se ouvia falar a respeito do comportamento de Jesus e de que os discípulos de João se fazem porta-vozes, pergunta suscitada pelas dúvidas e incertezas, pergunta que admite a correcção de desvios e comporta o desejo de alcançar a verdade. O contraste é interpelante: A misericórdia compassiva para com os infelizes da vida substitui a justiça “férrea” de João, o anúncio da boa nova da salvação ocupa o lugar do discurso “musculado” e ameaçador do precursor, a proximidade e o envolvimento na missão são como que o contraponto do refúgio no deserto e do isolamento na prisão. À imagem do Deus justiceiro sobrevém o rosto do Deus misericordioso. Contudo, Jesus reconhece a grandeza de João e faz um rasgado elogio.