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sábado, 30 de dezembro de 2017

Anselmo Borges - O tempo para o diálogo inter-religioso

1. Quando se olha para a situação do mundo, é o teólogo Hans Küng quem tem razão: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (atitude ética) global, um ethos mundial."

2. A religião tem na sua base a experiência do Sagrado. Crente é aquele que se entrega confiadamente ao Mistério, ao Sagrado, Deus, esperando dele sentido último, salvação. De facto, as religiões aparecem num momento segundo: são manifestações e encarnações, necessárias e inevitáveis, da relação das pessoas com Deus e de Deus com as pessoas. São mediações, construções humanas e, por isso, têm do melhor e do pior, entendendo-se, também a partir daqui, que o diálogo inter-religioso tem de assentar nalguns pilares fundamentais.
Todas as religiões, na medida em que não só não se oponham ao humano mas, pelo contrário, o dignifiquem e promovam, têm verdade. Outro pilar diz que todas são relativas, num duplo sentido: nasceram e situam-se num determinado contexto histórico e social e, por outro lado, estão relacionadas com o Sagrado, o Absoluto, Deus. Estão referidas ao Absoluto, Deus, mas nenhuma o possui, pois Deus enquanto Mistério último está sempre para lá do que possamos pensar ou dizer. Precisamente porque nenhuma possui Deus na sua plenitude, devem dialogar para, todas juntas, tentarem dizer menos mal o Mistério, Deus, que a todas convoca. Assim, por paradoxal que pareça, do diálogo fazem parte também os ateus e os agnósticos, porque estando de fora mais facilmente podem ajudar os crentes a ver a superstição e a inumanidade que tantas vezes envenenam as religiões.
Exigência intrínseca da religião na sua verdade é a ética e o compromisso com os direitos humanos e a realização plena de todas as pessoas. A violência em nome da religião contradiz a sua natureza, que é a salvação. Face a um Deus que mandasse matar em seu nome só haveria uma atitude digna: ser ateu.
Dois princípios irrenunciáveis: a leitura não literal mas histórico-crítica dos Livros Sagrados e a laicidade do Estado, que não deve ter nenhuma religião, para garantir a liberdade religiosa de todos. Evidentemente, a laicidade não se pode de modo nenhum confundir com o laicismo. De facto, a religião tem de ter lugar no espaço público, pois é uma dimensão do humano e faz parte da cultura.

Anselmo Borges no DN

domingo, 24 de dezembro de 2017

Bento Domingues — Natal: biologia ou cristologia?


«Jesus Cristo realiza, corrige e supera as esperanças não só de Israel, mas de toda a humanidade. O movimento cristão é um movimento de saída universalista. Está na sua lógica derrubar os muros criados entre povos e religiões. Jesus Cristo é, na sua própria pessoa, a reconciliação»

1. A Eucarística do passado Domingo começou com um manifesto poético e musical centrado na alegria do Evangelho. Esta flor da fé cristã é, muitas vezes, sufocada por regras, preceitos, proibições e rezas que a cobrem de tristeza. Quando um membro da assembleia celebrante lembrou que o Papa Francisco fazia anos, o canto e as palmas festejaram nele a esperança de um mundo outro e de uma Igreja outra, interpelada a destruir todos os muros.
Estaremos hoje a celebrar os anos do menino Jesus? Não são as incertezas históricas acerca do dia, do ano e do lugar de nascimento que impedem essa festa. O Natal é a evangelização inculturada de uma festa cósmica e política do império romano [1]. Não se manifesta como a primeira preocupação dos escritos cristãos.
S. Paulo não mostrou particular interesse pelo itinerário terrestre de Jesus de Nazaré. Era, como toda a gente, nascido de uma mulher. Neste caso sob a Lei judaica que ele julgava ultrapassada. Nada indica que o tivesse conhecido pessoalmente. A sua experiência é de ter sido sacudido até às raízes por Jesus ressuscitado. Viver com Ele era o que lhe interessava e convencer as outras pessoas de que a morte tinha sido vencida. Esta não era a última palavra sobre a existência humana [2]. A ressurreição realizava o eterno encontro com Jesus na glória do Deus vivo. Para S. Paulo, o mundo estava a chegar ao fim. Habitar com Ele para sempre era o seu grande desejo. A sua tarefa evangelizadora destinava-se a mostrar a todos que a última estação da viagem da vida não era a morte. Essa era só a penúltima. Insiste, na primeira Carta aos Tessalonicenses, o primeiro escrito do Novo Testamento (NT), que nem os que morreram há muito tempo nem os que morrem agora estão perdidos. O Senhor virá ao encontro de todos. Sente a urgência em dizer isto por causa da alegria que descobriu nessa esperança [3]. Em questão de prazos, S. Paulo tinha-se enganado. Na Segunda Carta tem de corrigir a sua precipitação, pois o resultado foi catastrófico: alguns dentre vós levam vida à toa, muito atarefados a não fazer nada. A ordem que vos deixei foi esta: quem não quer trabalhar que não coma [4] e acabam as vãs especulações.
S. Pedro, na Segunda Carta, resolve a questão do tempo de forma muito mais aleatória: um dia diante do Senhor é como mil anos e mil anos como um dia [5].

2. Como o fim nunca mais vinha, as comunidades cristãs não podiam viver só da pregação de que o crucificado era, agora, o ressuscitado para sempre [6]. Não tinham conhecido Jesus de Nazaré nem acompanhado o seu percurso. Era preciso quem contasse o que se tinha passado para quando já não houvesse ninguém para dizer: eu vi, eu sei como foi. Sem isso, como interpretar o sentido da revolução do Nazareno para os novos tempos?
Assim nasceram, no seio das comunidades cristãs, diversas pela geografia e pela cultura, diferentes narrativas. S. Lucas explica essa situação de forma muito clara: “Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos factos que se cumpriram entre nós — conforme no-los transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e servidores da Palavra —, a mim também me pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo, desde o princípio, escrever-te, de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste” [7].
Nasciam, assim, as Cristologias Narrativas. A primeira, a de S. Marcos, começa por apresentar Jesus a pregar o Evangelho de Deus. O tempo está pronto e o Reino de Deus está próximo. Mudai de mentalidade e acreditai no Evangelho.
Marcos começa pelo fundamental. Mas a curiosidade não está satisfeita. Este Jesus nasceu adulto? Mateus e Lucas escreveram aquilo a que se chama, impropriamente e de modo diverso, os Evangelhos da Infância. Apresentam a alegria do nascimento de Jesus e de João Baptista. Aí, começam as confusões.
Ao não se ter em conta que são admiráveis narrativas teológicas, desliza-se para uma biologia de conveniência que acaba por ocultar o essencial. Continua-se a discutir a forma como Jesus foi concebido e como nasceu. Não faltaram as declarações mais absurdas: Nossa Senhora, virgem antes, durante e depois do parto. Jesus passou por Maria como o sol pela vidraça.
Ao evitar a reflexão, sobre os textos, sobre o seu tecido simbólico e sobre os seus jogos de linguagem, recorre-se a algo muito certo — a Deus nada é impossível —, mas resvala-se para concepções pseudomilagrosas que deixam mal o Espírito Santo, Maria de Nazaré, Jesus e S. José. Perdeu-se a beleza e a verdade dessas espantosas narrativas. Quando se procede assim, pode-se perguntar: então por que é que não se ficou apenas com o Evangelho de S. Marcos?

3. Os textos do NT interpretam o sentido cristão do Antigo: Jesus Cristo realiza, corrige e supera as esperanças não só de Israel, mas de toda a humanidade. O movimento cristão é um movimento de saída universalista. Está na sua lógica derrubar os muros criados entre povos e religiões. Jesus Cristo é, na sua própria pessoa, a reconciliação. Como dirão os textos: Ele é a nossa paz [8]. Estas declarações interpretam o sentido da prática histórica de Jesus de Nazaré. Isto que se nota nas narrativas da sua vida adulta não é fruto do acaso. É fruto de um desígnio de Deus. O seu agir espantoso não era uma sucessão de milagres. Era Deus no tecido de uma vida humana, igual a nós excepto na maldade. Nasce humano e foi crescendo em idade, sabedoria e graça, perante o espanto de Maria [9]. O Emmanuel não é só Deus connosco, é um de nós.
Não nasce só de Israel e para Israel. Nasce de toda a humanidade e para toda a humanidade, como mostra a genealogia de Lucas: filho de Adão, filho de Deus [10].
As narrativas do NT nasceram para continuar a prática de Jesus na vida das pessoas e das comunidades. Isso aconteceu há dois mil anos. Às vezes caímos na tentação de pensar que basta uma nova linguagem da Fé para os dias de hoje. É um pensamento justo e curto. São indispensáveis narrativas que contem as histórias de vida do encontro do Evangelho da Alegria com as situações actuais da nossa humanidade. Se não exprimirem esse encontro real, só podem produzir reportagens de literatura barata.
O Papa Francisco sabe que a Igreja não tem de resolver os problemas de há dois mil anos. O que o preocupa é o casamento vital da Igreja com as situações que precisam de um hospital de campanha. O importante não são as festas do Natal, mas a transformação da vida numa festa para todos. Como ele diz: “A luz de Natal és tu quando com uma vida de bondade, paciência, alegria e generosidade consegues ser luz a iluminar o caminho dos outros.”

Boas Festas!

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] José Manuel Bernal, Para Viver o Ano Litúrgico, Gráfica de Coimbra, 2001
[2] Cf. 1Cor 15
[3] 1Ts 4, 13-18
[4] 2Ts 2 – 3
[5] 2Pd 3, 8-14
[6] 1Cor
[7] Lc 1, 1-4
[8] Ef 2, 14 ss
[9] Lc 2, 41-52
[10] Lc 3, 23-38; comparar com Mt 1, 1-17

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Anselmo Borges - O Menino Jesus de Fernando Pessoa


"O seu Menino Jesus representa a procura terna e eterna da paz e da reconciliação, na simplicidade daquele Menino eternamente criança e humano."

1 - Ainda era Outubro e já havia anúncios comerciais lembrando o Natal. Já se esqueceu que o Natal de Jesus é o Natal do Emanuel, o Deus connosco, e, consequentemente, o Natal da dignidade divina da pessoa humana, da liberdade, da fraternidade, dos direitos humanos, da igualdade radical de todas as pessoas. Isso foi lembrado pelos grandes: Hegel, Ernst Bloch, Jürgen Habermas, entre outros. Esquecendo o essencial, fica-se afundado na correria das compras e na concorrência opressiva das prendas, dentro da sofreguidão consumista insaciável, lembrando o velho mito do tonel das Danaides. E será o inessencial e o cansaço.

2 - Fernando Pessoa, o génio da melhor literatura mundial de sempre, também confessou o seu cansaço. Mas, ele, ele era por causa do mais profundo e essencial: o pensar: "O cansaço de pensar, indo até ao fundo de existir,/Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo." "O que há em mim é sobretudo cansaço/ (...)/ Um supremíssimo cansaço/íssimo, íssimo, íssimo,/Cansaço..." Por isso, suspirava por voltar à inocência dos tempos de criança. O Menino Jesus seria o reencontro da inocência perdida: "Num meio-dia de fim de Primavera/Tive um sonho como uma fotografia./Vi Jesus Cristo descer à terra./Veio pela encosta de um monte/Tornado outra vez menino,/A correr e a rolar-se pela erva/E a arrancar flores para as deitar fora/E a rir de modo a ouvir-se de longe./Tinha fugido do céu. Era nosso de mais para fingir/De segunda pessoa da Trindade./(...)/ No céu tinha de estar sempre sério/(...)./Um dia que Deus estava a dormir/E o Espírito Santo andava a voar,/Ele foi à caixa dos milagres e roubou três./Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido./Com o segundo criou--se eternamente humano e menino./Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz/E deixou-o pregado na cruz que há no céu/E serve de modelo às outras./Depois fugiu para o Sol/E desceu pelo primeiro raio que apanhou./Hoje vive na minha aldeia comigo/É uma criança bonita de riso e natural./(...)/A mim ensinou-me tudo./(...)/Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro./Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava./Ele é o humano que é natural,/Ele é o divino que sorri e que brinca./E por isso é que eu sei com toda a certeza/Que ele é o Menino Jesus verdadeiro./ (...)/A Criança Eterna acompanha-me sempre./A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando./O meu ouvido atento alegremente a todos os sons/São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas./Damo-nos tão bem um com o outro/Na companhia de tudo/Que nunca pensamos um no outro,/Mas vivemos juntos e dois/Com um acordo íntimo,/Como a mão direita e a esquerda./Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas/(...)/Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens/E ele sorri, porque tudo é incrível./Ri dos reis e dos que não são reis,/E tem pena de ouvir falar das guerras,/E dos comércios, e dos navios/Que ficam fumo no ar dos altos mares./Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade/Que uma flor tem ao florescer/E que anda com a luz do Sol/A variar os montes e os vales/E a fazer doer aos olhos os muros caiados./Depois ele adormece e eu deito-o./Levo-o ao colo para dentro de casa/E deito-o, despindo-o lentamente/E como seguindo um ritual muito limpo/E todo materno até ele estar nu./Ele dorme dentro da minha alma/E às vezes acorda de noite/E brinca com os meus sonhos./Vira uns de pernas para o ar,/Põe uns em cima dos outros/E bate as palmas sozinho/Sorrindo para o meu sono./... Quando eu morrer, filhinho,/Seja eu a criança, o mais pequeno./Pega-me tu ao colo/E leva-me para dentro da tua casa./Despe o meu ser cansado e humano/E deita-me na tua cama./E conta-me histórias, caso eu acorde,/Para eu tornar a adormecer./E dá-me sonhos teus para eu brincar/Até que nasça qualquer dia/Que tu sabes qual é./... Esta é a história do meu Menino Jesus./Por que razão que se perceba/Não há-de ser ela mais verdadeira/Que tudo quanto os filósofos pensam/E tudo quanto as religiões ensinam?"
Em apontamentos soltos, o próprio Fernando Pessoa reconheceu que escreveu "com sobressalto e repugnância o poema oitavo de O Guardador de Rebanhos com a sua blasfémia infantil e o seu antiespiritualismo absoluto", dizendo ao mesmo tempo: "Na minha pessoa própria, nem uso da blasfémia nem sou antiespiritualista." O seu Menino Jesus representa a procura terna e eterna da paz e da reconciliação, na simplicidade daquele Menino eternamente criança e humano.
Fernando Pessoa "ele mesmo" - ele era muitos, como cada um de nós é muitos; se assim não fosse, como poderíamos entender-nos uns aos outros e a nós próprios? - também escreveu: "Grande é a poesia, a bondade e as danças.../Mas o melhor do mundo são as crianças,/Flores, música, o luar e o sol, que peca/Só quando em vez de criar, seca./O mais que isto/É Jesus Cristo,/Que não sabia nada de finanças/Nem consta que tivesse biblioteca..." E assim chega mesmo a caminhar de mãos dadas com Deus: "Por isso, a cada passo/Que meu ser triste e lasso/Sente sair do bem/Que a alma, se é própria, tem,/Minha mão de criança/Sem medo nem esperança/Para aquele que sou/Dou na de Deus e vou."

3 - Fica aqui o meu mais vivo desejo de Boas Festas para todos, lembrando que o essencial do Natal é Jesus, como disse o Papa Francisco no passado dia 17, quando fez 81 anos: "Se retirarmos Jesus, o que é o Natal? Uma festa vazia."

Anselmo Borges no Diário de Notícias

domingo, 17 de dezembro de 2017

Bento Domingues — Jesus nasceu para descrucificar



“Jesus Cristo, com as palavras que lhe são atribuídas nos quatro evangelhos, é a figura que mais me interessa. Continuo a achar que, independentemente de ele ter dito aquelas palavras ou não, elas são as coisas mais extraordinárias que foram ditas à face da terra. Por exemplo, quando leio para mim o Novo Testamento estou num mundo maravilhoso que é só meu e me preenche muito, animicamente, espiritualmente. Apesar de ser um linguista crítico-histórico, não sou um ateu a traduzir a Bíblia. Serei sempre, até ao último segundo da minha vida, um apaixonado por esse judeu chamado Jesus de Nazaré.”

Frederico Lourenço


1. Estamos na quadra litúrgica do Advento, mas tudo parece encenado e polarizado apenas pela memória do nascimento de Jesus, alimentando um terno imaginário da infância, com alguma e passageira solidariedade, própria da estação, sem, no entanto, tocar nos alicerces da sociedade. É como se nada estivesse para acontecer.
Os textos das celebrações do Advento vão, pelo contrário, noutra direcção: é hoje que podemos acolher a graça da nossa transformação interior que nos associe, de forma activa, às mais diversas iniciativas sociais, culturais e políticas da construção de uma cultura da justiça e da paz, a nível local e global. O Espírito do Natal é Aquele que suscitou o canto subversivo de Maria de Nazaré.
As preocupações com as indispensáveis reformas das “cozinhas eclesiásticas” da Igreja, se não estiverem centradas no estilo da prática histórica de Jesus Cristo e nas urgências dos mais carenciados das nossas sociedades, acabam por nos fazer esquecer que somos nós, a Igreja, que precisamos de reforma permanente. 
Frederico Lourenço — a grande figura portuguesa da cultura bíblica fora das sacristias — recorda-nos que os Evangelhos têm, ainda hoje, em 2017, o potencial para mudar o mundo para radicalmente melhor. Sublinha comovido: “Jesus Cristo, com as palavras que lhe são atribuídas nos quatro evangelhos, é a figura que mais me interessa. Continuo a achar que, independentemente de ele ter dito aquelas palavras ou não, elas são as coisas mais extraordinárias que foram ditas à face da terra. Por exemplo, quando leio para mim o Novo Testamento estou num mundo maravilhoso que é só meu e me preenche muito, animicamente, espiritualmente. Apesar de ser um linguista crítico-histórico, não sou um ateu a traduzir a Bíblia. Serei sempre, até ao último segundo da minha vida, um apaixonado por esse judeu chamado Jesus de Nazaré.” [1]
Muitos anos antes, numa entrevista de 1978, Eduardo Lourenço mostrou a verdade da nossa condição, na própria referência cristã: “Cristo é o momento (sem limite de tempo) em que a humanidade tomou forma humana. [...] Foi crucificado, não por querer ser deus, mas por ensinar o que era ser homem. Dois mil anos passaram sem que esquecêssemos nem aprendêssemos a lição.” [2]
Num belo livro, traduzido por José Sousa Monteiro, deparo com a confissão do marxista Milan Machovec: “O coração duma freira desconhecida que se dedica a uma criança incurável, só poderia ser substituída por uma teoria da história, por um estúpido e um idiota [...]. Pessoalmente, não me traria grande desgosto o facto de a religião acabar. Mas se tivesse de viver num mundo no qual Jesus fosse inteiramente esquecido, então preferia não continuar a viver” [3].
Como escreveu o dominicano E. Schillebeeckx, para Jesus, a história dos seres humanos é a narrativa de Deus acolhido ou recusado [4].

2. Para o imaginário do Evangelho de S. Lucas, a festa do nascimento de Jesus aconteceu num curral iluminado pela luz do céu, acompanhada pela música dos anjos e rodeado de pastores e estrangeiros. Tudo aconteceu à margem do Templo de Jerusalém e dos palácios imperiais. Aliás, Jesus com o comércio do Templo teve uma relação muito agreste e só conheceu os palácios quando estava a ser julgado e condenado à pena capital. A sua coroa foi de espinhos e o seu trono foi uma cruz.
Esta apresentação testemunha um profundo contraste, mas pode cair na perversão do próprio Evangelho de Cristo, sugerindo que Jesus veio sacrificar-se e semear mais sacrifícios no mundo. Porque será mantida a cruz como símbolo cristão, quando o que Jesus procurava era, precisamente, descrucificar?
A minha hipótese de interpretação é outra, bastante simples, mas que importa explicar. A cruz, a sentença de morte mais bárbara e cruel, fazia parte do mundo que Jesus queria mudar. Então, por que continua a funcionar como um símbolo cristão, quando ela é anti-humana, anticristã?
Ao contrário do que se repete há séculos, Jesus Cristo não desejou nem santificou a cruz. Alterou-lhe, porém, a significação de forma radical. Foi-lhe imposta, num julgamento iníquo, por ele recusar trair o seu projecto. Tornou-se, deste modo, o símbolo da fidelidade inquebrantável, o signo da extrema generosidade. A presença de sinais da cruz, desde o baptismo até à morte, diz que é preciso dizer não à crucifixão da vida e dizer sim à generosidade libertadora, no dia-a-dia.
Tudo isto vem confirmado no trecho do Evangelho escolhido para a celebração da Eucaristia, do passado dia 6: estava Jesus sentado junto ao mar da Galileia e uma grande multidão veio ter com ele e lançou-lhe, aos pés, coxos, aleijados, cegos, mudos e muitos outros [5].
Se o mestre fosse um pregador de sacrifícios dizia-lhes: estais mal? Ainda bem. Assim podeis santificar-vos e, um dia, sereis muito felizes no céu.

3. Jesus não acreditava nessa mística. Curou-os e organizou, com pouca coisa, um grande banquete popular. A multidão ficou admirada ao ver os mudos a falar, os aleijados a ficar sãos, os coxos a andar, os cegos a ver e todos a comer até sobrar.
Poder-se-á dizer: porque não deixou a fórmula? Seria uma alternativa muito barata dos serviços de saúde, públicos e privados. Mas ele não veio para nos substituir.
Já na apresentação do seu programa, em Nazaré, ficou claro que o mundo tinha de começar mesmo a mudar. Deus não podia ser o da ira de Iavé, mas o da pura graça do amor. Diz a narrativa evangélica que, nesse momento, os seus conterrâneos o julgaram um subversivo e, por isso, quiseram acabar logo com ele [6].
Os seus comportamentos eram, de facto, estranhos: andava em más companhias, com quem comia e bebia, a ponto de lhe chamarem “comilão e beberrão”; aceitou o convívio de mulheres que não eram todas exemplos de virtude; violava, sistematicamente, o Sábado — o dia mais sagrado da sua religião — com curas que bem podia fazer noutros dias [7].
Não deixou fórmulas ou receitas que pudessem ser transformadas em rituais. A sua prática é um desafio à imaginação de todos os homens e mulheres, de todos os tempos, a usarem os seus talentos, as suas capacidades, não para cavar distância entre ricos e pobres, mas para as eliminar, pois não suporta ver uns à porta e outros à mesa, uns em banquetes requintados e outros na miséria [8].

Frei Bento Domingues no PÚBLICO


[1] Frederico Lourenço, Entrevista, in Ler, Outubro 2017, n.º 147
[2] Eduardo Lourenço, in Opção, n.º 97, pp. 2-8, Março 1978
[3] Cf. VV. AA., Os marxistas e Jesus, Iniciativas Editoriais, Lisboa 1976, pp. 88 e 98
[4] Edward Schillebeeckx, L’histoire des hommes, récit de Dieu, Cerf, Paris 1992
[5] Mt 15, 29-37
[6] Lc 4, 16-30
[7] Lc 7; 8; 13, 10-17
[8] Lc 16, 19-31

domingo, 10 de dezembro de 2017

Bento Domingues — Quem desafia quem?



1. A guerra de insultos entre ciência e religião só pode ser alimentada e divulgada pelo persistente desconhecimento da natureza destas duas atitudes e práticas, igualmente humanas e diversas. Não são concorrentes, pois não brotam das mesmas perguntas, nem seguem os mesmos caminhos. Uns são os métodos da investigação científica, outros os percursos da experiência religiosa.
Certas formas de ateísmo contemporâneo, com ou sem invocações científicas, pretendem mostrar que a religião é um veneno. Para os adversários deste neoateísmo trata-se, apenas, “da última superstição”. São, de facto, duas apologéticas ideológicas. Deliciam-se a encontrar as formas mais sofisticadas ou mais grosseiras de se desqualificarem mutuamente. Distorcem um debate necessário, que não pode ser feito nesses termos, nem nesse clima crispado e de propaganda (1).
Muito diferente é o estilo de Francisco J. Ayala, um biólogo, membro da Academia Nacional das Ciências dos EUA, que também teve uma exímia preparação teológica. Ao terminar a sua obra sobre a evolução e a fé religiosa mostra que elas não são incompatíveis. Os crentes podem ver a presença de Deus no poder criativo do processo de selecção natural, descoberto por Darwin. Como este escreve no final da Origem das Espécies, “existe grandeza nesta concepção de que a vida, com as suas diferentes forças, foi alentada pelo Criador … e que, a partir de um princípio simples se desenvolveram uma infinidade de formas, as mais belas e poderosas” (2).
Hoje, existem bastantes pessoas com preparação científica e teológica para não se fazer de uma teoria científica e de uma convicção de fé religiosa um campo de batalha. Na religião não vale tudo. Jesus Cristo passou o tempo a denunciar a religião em que foi criado quando ela não servia a vida e alegria dos seres humanos.

2. O Papa Francisco (3), no passado dia 18 de Novembro, ao receber os Membros, Consultores e Colaboradores do Pontifício Conselho para a Cultura, assumiu, no seu discurso, uma posição descontraída, como se fosse absolutamente normal a Igreja ser desafiada e desafiar a questão das questões, a questão antropológica, e encontrar as linhas futuras de desenvolvimento da ciência e da técnica.
Bergoglio realçou que este Conselho para a Cultura tinha concentrado a sua atenção, de modo particular, em três tópicos.
O primeiro é sobre a medicina e a genética, que nos permitem olhar para dentro da estrutura mais íntima do ser humano e até intervir nela para a modificar. Tornam-nos capazes de debelar doenças que até há pouco tempo eram consideradas incuráveis; mas abrem, também, a possibilidade de determinar os seres humanos, “programando”, por assim dizer, algumas das suas qualidades.
Em segundo lugar, as neurociências que oferecem cada vez mais informações sobre o funcionamento do cérebro humano. Através delas, realidades fundamentais da antropologia cristã como a alma, a consciência de si e a liberdade aparecem, agora, sob uma luz inédita e até podem ser postas seriamente em discussão por parte de alguns.
Finalmente, os incríveis progressos das máquinas autónomas e pensantes, que em parte já se tornaram componentes da nossa vida quotidiana, que nos levam a meditar sobre aquilo que é especificamente humano e nos torna diferentes das máquinas.
Todos estes desenvolvimentos científicos e técnicos induzem algumas pessoas a pensar que nos encontramos num momento singular da história da humanidade, quase na alvorada de uma nova era e no surgimento de um novo ser humano, superior àquele que conhecemos até agora.
As interrogações e as questões que devemos enfrentar são graves. Por isso a Igreja, que acompanha, com atenção, as alegrias e as esperanças, as angústias e os medos do nosso tempo, deseja colocar a pessoa humana e as questões que lhe dizem respeito, no centro das suas próprias reflexões.
A antropologia é o horizonte de auto compreensão no qual todos nos movemos, diz o Papa, e determina a nossa noção do mundo e as escolhas existenciais e éticas. Hoje, apercebemo-nos de que os grandes princípios e os conceitos essenciais são constantemente postos em questão, inclusive com base num maior conhecimento da complexidade da condição humana. Exigem novos aprofundamentos. Por outro lado, as mudanças socioeconómicas, os deslocamentos de populações, os confrontos interculturais, a propagação de uma cultura global e, sobretudo, das incríveis descobertas da ciência e da técnica inscrevem-se num contexto mais fluido e mutável.

3. Bergoglio pergunta: Como reagir a estes desafios?
Antes de tudo, diz, devemos expressar a nossa gratidão aos homens e às mulheres de ciência pelos seus esforços e pelo seu compromisso a favor da humanidade.
Este apreço pelas ciências, que nem sempre soubemos manifestar, continua o Papa, encontra o seu fundamento último no desígnio de Deus, que nos escolheu antes da criação do mundo como seus filhos adoptivos (4), confiando-nos o cuidado da criação: cultivar e salvaguardar a terra (5).
Precisamente porque o ser humano é imagem e semelhança de um Deus que criou o mundo por amor, o cuidado de toda a criação deve seguir a lógica da gratuidade e do amor, do serviço e não do domínio nem da prepotência.
A ciência e a tecnologia ajudaram-nos a aprofundar os confins do conhecimento da natureza e, em particular, do ser humano. Elas sozinhas não são suficientes para todas as respostas. O ser humano tem outras dimensões. É necessário recorrer aos tesouros da sabedoria conservados nas tradições religiosas do saber popular, à literatura, às artes e a tudo o que toca o mistério da existência humana, sem esquecer a filosofia e a teologia.
Não estamos no pior nem no melhor dos mundos. Os progressos científicos e tecnológicos são incontestáveis, mas a quem aproveitam? Quem são os seus beneficiários? Servem para o bem da humanidade inteira ou criam novas desigualdades? As grandes decisões sobre a orientação da pesquisa científica e sobre os investimentos que exigem devem ser tomadas pelo conjunto da sociedade ou ditadas apenas pelas regras do mercado ou pelo interesse de poucos?
Com o Papa Francisco entramos numa Igreja que aceita ser desafiada, mas que desafia, não como quem manda, mas como quem serve a casa comum.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO


(1) Edward Feser, A última superstição. Uma refutação do neoateísmo, Ed. Cristo Rei, Belo Horizonte, 2017
(2) Cf. Darwin y el Diseño Intekigente. Creacionismo, Cristianismo Y Evolución, Alianza Editorial, Madrid, 2008, pp 206-207
(3) Discurso do Papa Francisco ao Pontifício Conselho para a Cultura
(4) Ef 1, 3-5
(5) Cf. Gn 2, 15

domingo, 3 de dezembro de 2017

Bento Domingues - Entre o fim e o começo



1. Foi há 60 anos que li, pela primeira vez, na Summa Theologiae, de S. Tomás de Aquino, uma advertência que não se destinava apenas a principiantes: em teologia, é preciso evitar argumentações pretensiosas, sem fundamento rigoroso. Quem as usa oferece aos infiéis matéria para se rirem da fé, pois ficarão com a ideia de que as afirmações dos crentes são todas igualmente estúpidas [1].
Existem instituições eclesiásticas que se tornaram um obstáculo evidente ao desenvolvimento da vida cristã da Igreja e à realização da sua missão essencial na sociedade. Seria normal que fossem submetidas a uma avaliação rigorosa e se procedesse à sua reorientação e reconfiguração. Não é assim que acontece. Não é pelos frutos que se conhece a árvore? Insiste-se, pelo contrário, na sua sacralização para não se poder mexer nelas e arranjam-se razões que servem apenas para afastar os crentes e fazer rir os agnósticos e ateus.
O regime actual dos ministérios ordenados está a secar as comunidades católicas e a privá-las da Eucaristia a que todos os baptizados têm direito. E. Schillebeeckx mostrou que era possível encontrar respostas criativas que não precisavam de passar pelos seminários. O Cardeal Ratzinger bem se esforçou, mas não encontrou razões para invalidar as propostas finais do teólogo dominicano. Yves Congar, a figura maior da eclesiologia católica no séc. XX, declarou que as assinava, sem reticências. Nada feito. A situação continua a agravar-se. O caso tão badalado do “padre da Madeira” encontrou na hierarquia declarações que não deixam ninguém indiferente: uns sofrem com elas e outros riem-se. A retórica eclesiástica, mal argumentada, acaba por deixar mal as crianças, a família, os padres e o celibato. S. Tomás de Aquino tinha razão [2]. 

2. O Papa, neste caso e semelhantes, não pode fazer nada? Não se esqueça que o Papa é bispo de Roma, não é bispo da Madeira ou de Lisboa. Terá um dia de alterar o modelo de escolha e nomeação dos bispos. Mas a nível central, não lhe tem faltado trabalho com a reforma da Cúria. Foi João XXIII, nos tempos modernos, o primeiro a defender que seria um bem geral “sacudir a poeira imperial, que foi caindo, desde Constantino, sobre o trono de Pedro”. O Papa Francisco continua às voltas com essa herança pesada e paralisante [3].
Bergoglio tem um programa envolvente de que não abdica, apesar de todas as resistências. Propõe: “Em vez de ser apenas uma Igreja que acolhe e recebe, tendo as portas abertas, procuramos mesmo ser uma Igreja que encontra novos caminhos, que é capaz de sair de si mesma e ir ao encontro de quem a não frequenta, de quem a abandonou ou lhe é indiferente. Quem a abandonou fê-lo, por vezes, por razões que, se forem bem compreendidas e avaliadas, podem levar a um regresso. Mas é necessário audácia, coragem.” [4]
As dificuldades de Jesus Cristo, ao propor uma mudança de mentalidade aos seus contemporâneos e aos membros do povo a que pertencia, encontrou uma grande adesão no mundo dos excluídos, mulheres e homens, e uma resistência implacável entre os privilegiados e, sobretudo, entre os fariseus, os que não entravam no novo projecto de vida nem deixavam entrar. O Papa Francisco não hesita em lembrar estas passagens dos Evangelhos para comparar com o que está a acontecer com as reformas que propõe. Certos cardeais, bispos, padres, seminaristas — e outros grupos organizados — são os que mais resistem às reformas que ele propôs e que são inadiáveis. As resistências, activas e passivas, são cada vez mais declaradas e ridículas. Assim como aconteceu com Cristo, nenhuma ameaça o tem paralisado.

3. Muito se discutiu se a História tem ou não sentido. Não vou reabrir esse dossier [5], mas fiquei, mais uma vez, fascinado com o desenlace do Capítulo 25 do Evangelho de S. Mateus. É uma parábola. É a coroa de duas anteriores. Parece ser o julgamento final.
Como parábola está sujeita a várias interpretações. É muito estranha. A divindade não está separada do devir do mundo. Mais ainda, está identificada com todas as pessoas, que não têm todas o mesmo comportamento. O que as divide? O modo como olham para o vizinho, para o socorrer ou para o ignorar. É um golpe fatal na religião que está apenas preocupada com Deus. Quem se preocupa só com Deus, nem com Deus se preocupa.
Cristo não surgiu com uma nova organização religiosa concorrente no mundo das religiões. O seu embate constante foi com as instituições do Povo de Deus, que esqueciam e maltratavam quem mais precisava de acolhimento e ajuda. O culto religioso tornara-se o adversário da alegria humana. Isto era absolutamente inaceitável para Jesus. O aforismo “o sábado é para o ser humano e não o ser humano para o sábado” é o símbolo da alteração mais radical no campo religioso, seja qual for a época.
O que, de facto, festejámos no Domingo passado foi, por um lado, a vitória contra a indiferença. Não podemos andar no mundo e dizer não vi, não sei, não é comigo. Por outro, o que faz a diferença e julga a vida de cada um é o estilo da sua própria vida. Quando o Senhor da história se identifica com os socorridos ou abandonados, não deixa nada para o fim. É hoje que cada um diz a última palavra.
Celebramos, neste Domingo, o começo do Advento. Que não estamos no melhor dos mundos possíveis, é evidente. Se julgamos que é impossível alterá-lo, somos suicidas, niilistas. Não seríamos verdadeiramente humanos e muito menos cristãos. Que fazer?


Frei Bento Domingues no PÚBLICO


[1] I q.46.a.2.
[2] Cf. Ricardo Araújo Pereira, Discriminar como Jesus discriminou, Visão, 23.11.2017; Teresa Martinho Toldy, A Igreja fechada no seu Olimpo, PÚBLICO, 25.11.2017
[3] Yves Congar, Igreja serva e pobre, Ed. Logos, Lisboa 1964, p152
[4] Entrevista do Papa Francisco, Sonho com uma Igreja Mãe e Pastora, Paulus, 2013, pp 36-37
[5] Francisco J. Ayala, Darwin Y el Diseño Inteligente. Creacionismo, Cristianismo Y Evolución, Aliança Editorial, Madrid, 2008

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Anselmo Borges - Progresso e esperança. 1


É um daqueles livros que nos obrigam a reflectir, porque andamos em lamúrias inconsequentes, não colocando os problemas onde devem ser colocados. Evidentemente, seria de lamentar se esse livro nos arrancasse à obrigação de continuar a pensar. De facto, os problemas estão aí, imensos, mas já diferentes do que normalmente julgamos. O livro teve, com mérito, enorme sucesso. O seu autor: Johan Norberg. O título: Progresso. O subtítulo: Dez razões para ter esperança no futuro. Razões fundamentadas.
O autor sabe dos problemas que nos afligem. "Terrorismo. Estado Islâmico. Guerra na Síria e na Ucrânia. Crime, homicídio, execuções em massa. Aquecimento global. Fomes, cheias, pandemias. Estagnação, pobreza, refugiados. "Destruição e desespero em toda a parte", como uma mulher declarou num inquérito de rua quando a rádio pública lhe pediu para descrever o estado do mundo. É isso que vemos nos noticiários e parece ser a história dos nossos dias. Cinquenta e oito por cento dos que votaram para a Grã-Bretanha sair da União Europeia no recente referendo levado a cabo no país dizem que a vida hoje é pior do que há trinta anos."
Há razão para todo este pessimismo? Ou o que se passa é que os meios de comunicação social só se interessam pelas más notícias, porque as boas não são notícia? "Os jornalistas estão sempre à espreita da história mais dramática na área geográfica por eles coberta". Mas o que é facto é que "o mais importante da nossa época é estarmos a assistir à maior melhoria dos padrões de vida globais jamais registada. Pobreza, malnutrição, analfabetismo, mão de obra e mortalidade infantis estão a descer mais depressa do que em qualquer outro período da história humana. Ao longo do último século, a esperança de vida aumentou mais de duas vezes o que aumentou nos duzentos mil anos anteriores. O risco de exposição de um indivíduo à guerra, à morte numa catástrofe natural ou à ditadura em nenhuma outra época foi mais pequeno. Uma criança que nasça hoje tem mais probabilidades de alcançar a idade da reforma do que os seus antecessores tinham de comemorar o quinto ano de vida". Evidentemente, não se pode ser ingénuo e ficar cego frente às guerras em curso, a crimes, às catástrofes, à pobreza e à miséria no mundo. Todos esses problemas são terrivelmente reais, tanto mais quanto os meios de comunicação social nos obrigam a tomar consciência deles. "A única diferença é que agora encontram-se em rápido declínio. O que hoje vemos são excepções, ao passo que antes eram a regra."
Este progresso arrancou concretamente com o iluminismo intelectual dos séculos XVII e XVIII. Desde então continuamos a acumular conhecimentos, científicos e de outras ordens e "cada indivíduo pode basear o seu contributo nos das centenas de milhões de pessoas que o precederam, num círculo virtuoso". "Seria um erro terrível" ignorar os problemas, as ameaças constantes, os perigos, e tomar os progressos da humanidade como garantidos. Mas este livro é "sobre os triunfos da humanidade". E aí ficam as dez razões para ter esperança no futuro.

1. A mais básica das necessidades humanas consiste em obter energia suficiente para que o corpo e a mente funcionem, o que ao longo da história as pessoas nem sempre conseguiram. É indescritível o que se passou no decorrer dos tempos, também na Europa, neste domínio. "Os franceses e os ingleses do século XVIII ingeriam muito menos calorias do que a média actual na África subsariana, a região mais atormentada pela subnutrição". No centro da França, em 1662, "houve quem comesse carne humana". No passado, trabalhava-se menos horas, e o motivo disso não deve causar inveja: as pessoas não tinham acesso às calorias necessárias para as crianças crescerem saudáveis e os adultos manterem funções corporais sadias. As novas tecnologias agrícolas, os fertilizantes artificiais, a Revolução Verde, o comércio internacional, entre outras, foram armas decisivas contra o flagelo da fome. A Suécia, país dos antepassados do autor, foi declarada livre da fome crónica no início do século XX. Também por isso, a população mundial passou de 1,6 mil milhões de pessoas em 1900 para os actuais mais de 7 mil milhões. Pela primeira vez na história da humanidade, o problema da comida começou a encontrar solução - nalguns casos até começou o problema contrário: o da obesidade - e de 1950 a meados dos anos 80, a população do mundo duplicou, passando de 2,5 mil milhões para 5 mil milhões. E, contra os pesadelos de Malthus, "conforme se tornaram mais ricas e aumentaram a educação, as pessoas começaram a ter menos filhos, e não mais, como se previa", o que, aliás, digo eu, por vezes, levanta problemas dramáticos, como é o caso de Portugal.

2. Saneamento. Para sustentar a vida, não basta a comida. É fundamental tratar resíduos e desperdícios. Sem isso, a água, essencial para a vida, fica contaminada e torna-se transmissora de calamidades, espalhando bactérias, vírus, parasitas, vermes. "Embora difícil de quantificar, parece que o principal problema de saúde ambiental do mundo continua a ser a contaminação da água para beber e para uso doméstico, combinada com a inexistência de um saneamento adequado para a eliminação de resíduos, fezes e urina." "Há relatos contemporâneos de aristocratas a defecar nos corredores de Versalhes e do Palais Royal. Na verdade, as sebes de Versalhes eram altas para servirem de divisórias entre os que aí se iam aliviar." Em 1980, "apenas 24 por cento da população mundial tinha acesso a saneamento decente. Em 2015, esse número subiu para 68 por cento". A maior percentagem de população sem água nem saneamento vive na África subsariana, mas, mesmo aí, houve "um aumento de 20 pontos percentuais no uso de água potável de fontes melhoradas de 1990 a 2015". Continuaremos. 
Anselmo Borges no Diário de Notícias 

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Anselmo Borges - Lutero: somos mendigos

1 Teria sido possível encontrar um acordo quanto às 95 teses de Lutero, mesmo quanto às que são mais claramente de crítica ao Papa: "Pregam doutrina humana os que dizem que a alma voa do purgatório para o céu, mal o dinheiro cai na caixa." "Porque é que o Papa não esvazia o purgatório, baseado num motivo correcto: um amor santíssimo e a extrema necessidade das almas, em vez de resgatar um número incontável de almas, baseado num motivo bem insignificante: o funesto dinheiro para a construção de uma igreja?" "Porque é que o Papa, que é hoje mais rico do que o mais rico Crasso, não prefere pelo menos construir a Basílica de São Pedro com o seu próprio dinheiro, em vez de fazê-lo com o dos fiéis pobres?" Aliás, ele mandara as teses ao bispo de Mainz e só porque não recebeu resposta é que as tornou públicas. Infelizmente, o próprio papa Leão X, que aos 13 anos já era cardeal e que estava mais preocupado com o poder e o fausto do que com o Evangelho e que não percebeu que se estava numa mudança de época, pensou que tudo se resolvia com a excomunhão do frade alemão. Não foi assim, e o que é facto é que, como escreveu Viriato Soromenho Marques, "em poucos anos, o que era um protesto aparentemente localizado e sectorial contra um cristianismo ocidental romano, já com frestas mas ainda unificado, transformou-se num poderoso e plural movimento que iria cindir, violenta e definitivamente, não só o cristianismo como a política, a sociedade e a cultura do Velho Continente".

2 As indulgências foram apenas a ocasião. O que acabou por romper a unidade e pôr em marcha consequências que o próprio Lutero não desejava foi a doutrina luterana dos "sós": sola fides - só a fé: a salvação dá-se exclusivamente pela fé, sem o contributo das obras; sola gratia - só a graça, sem méritos; sola Scriptura - só a Bíblia, a única autoridade na e para a fé. Esta concepção punha fim às mediações: dos sacramentos, só o baptismo e a eucaristia eram reconhecidos; o próprio Erasmo de Roterdão, humanista e crítico mordaz da Igreja, recordou a Lutero que, segundo a Bíblia, em ordem à salvação, há a colaboração da liberdade humana; a razão não pode ser excluída da fé; as Escrituras têm de ser lidas sem invalidar a tradição...
Neste quadro, o protestantismo contribuiu de modo decisivo para a secularização/secularismo. Sem mediações, entre um Deus radicalmente transcendente, totalmente Outro, e uma humanidade radicalmente pecadora, ficava um mundo totalmente profano, sem qualquer significado divino, que já não é veículo da graça. Com o tempo, uma vez que Deus está tão distante do ser humano, pode-se chegar ao seu esquecimento e, no longo prazo, à sua negação. Assim, a Reforma também está na origem das modernas concepções radicalmente imanentes. É a ironia da história das ideias: uma vez lançadas, podem provocar consequências que de modo nenhum estavam nas intenções dos seus autores e até lhes são totalmente opostas.
Neste contexto, Lutero defendeu a doutrina dos dois Reinos, distinguindo bem a esfera temporal e a esfera espiritual, o reino da política e o reino da salvação, de tal modo que a liberdade cristã fica separada da transformação social deste mundo. Assim, dizer que a liberdade trazida por Cristo é incompatível com a servidão, como afirmavam os camponeses rebeldes em Os Doze Artigos, "significa tornar a liberdade cristã uma liberdade completamente carnal". "O Evangelho não tolera nunca a rebelião." Subordinou a Igreja à autoridade do Estado, de tal modo que o príncipe ou o senhor pode ser "o funcionário da justiça de Deus e o servidor da sua ira." A liberdade e a igualdade cristãs não são para este mundo. Assim, Lutero, que, num primeiro momento, pedira aos príncipes "Por amor de Deus, cedei um pouco face ao furor dos camponeses", pouco tempo depois, com base na "matança de Weinsberg", pôs-se completamente do lado dos príncipes e "contra os camponeses, ladrões e assassinos; nisto, molho a minha pena em sangue: apelo aos príncipes que matem os ofensivos camponeses como cães raivosos, que os apunhalem, os estrangulem e destruam como melhor puderem... Não quero opor-me às autoridades que, podendo e querendo fazê-lo, reprimam com todo o vigor e castiguem esses assassinos sem oferta prévia de alcançar um acordo equitativo, mesmo quando essas autoridades não forem tolerantes em relação ao Evangelho".
Thomas Münzer, que fora discípulo de Lutero mas se distanciara dele por causa da opressão a que estavam sujeitos os camponeses, não se contentava com a libertação interior e queria estabelecer o Reino de Deus mediante uma ordem social justa. Na batalha de Frankenhausen, em 1525, foi feito prisioneiro, torturado e decapitado. Os conflitos causaram a morte a mais de cem mil camponeses.

3 São incontáveis na história os efeitos positivos de Lutero como testemunha de Cristo e do Evangelho: a leitura e a difusão da Bíblia, a tomada de consciência pelos cristãos do sacerdócio universal e da sua radical igualdade em Cristo, a reforma da(s) Igreja(s), a afirmação da subjectividade e da liberdade, a educação, a promoção da mulher, a força da música na liturgia, os seus catecismos... Mas há ainda outra dimensão marcante nas suas contradições: depois de ter defendido uma coabitação amigável com os judeus, fez um volte-face e pediu, em 1543, a sua expulsão, o confisco dos seus bens, o incêndio das sinagogas: "Primeiro, incendeie-se as suas sinagogas e cubra-se de terra e sepulte-se o que recusar arder, a fim de que ninguém possa ver o seu mínimo traço por toda a eternidade."
 
4 Lutero morreu na sua cidade natal, Eisleben, em 1546, invocando Jesus Cristo. Numa nota escrita na véspera da morte estão estas palavras: "Wir sind Bettler, das ist wahr" (somos mendigos, é verdade).
Anselmo Borges no DN

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Anselmo Borges — Lutero: a fé e as indulgências




1. Por causa de Lutero, pus-me a caminho de Worms, era eu ainda estudante na Alemanha. Foi uma senhora que amavelmente me disse: ali adiante, no jardim, junto à catedral, vai encontrar uma placa no chão alusiva à presença de Lutero. E lá encontrei a placa: "Hier Stand Vor Kaiser Und Reich Martin Luther, 1521" (aqui compareceu perante o império e o imperador Martinho Lutero, 1521). Foi ali, na Dieta de Worms, que Lutero fez o discurso que marcaria a ruptura com a Igreja de Roma, o discurso que termina com as famosas palavras sempre lembradas quando se trata de defender a objecção de consciência: "Se me não refutardes através do testemunho das Escrituras ou mediante argumentos evidentes - uma vez que não creio nem nos papas nem nos concílios, pois é evidente que já muitas vezes se equivocaram e se contradisseram -, estou encadeado aos textos da Escritura e a minha consciência cativa da Palavra de Deus. Não posso retractar-me nem me retractarei de nada, porque não é justo nem honesto agir contra a consciência. Que Deus me ajude! Amém."

Lutero já estava excomungado e podia ser preso. Por isso, Frederico III conseguira do imperador Carlos V um salvo-conduto para ele poder ir a Worms e regressar, sem ser detido. Depois da sua declaração, ficava proscrito, podendo o seu fim ser a fogueira, como acontecera a Jan Hus, que também queria a reforma da Igreja. Assim, o príncipe Frederico, astutamente, sequestrou-o, para protegê-lo no seu castelo de Wartburg, onde se dedicou à tradução do Novo Testamento, contribuindo decisivamente para a constituição do alemão moderno. Abandonou o hábito de frade em 1524 e casou-se com Catarina de Bora em 1525, tendo sido um bom marido e pai.

2. Lutero nasceu em Eisleben em 1483. Estudou Filosofia e Direito. A sua vida sofreu uma reviravolta quando no dia 2 de Julho de 1505, no meio de uma grande tempestade, um raio lhe caiu perto e, aterrado, prometeu: "Santa Ana, ajuda-me, far-me-ei monge." No dia 17 de Julho seguinte, contra a vontade do pai, cumpriu e deu entrada no Convento dos Agostinhos em Erfurt, em cuja universidade estudava. Foi ordenado em 1507, doutorando-se em Teologia em 1512, e exerceu como professor de Teologia Bíblica. Antes, enviado pelo superior, J. von Staupitz, passou por Roma, onde, constatando o fausto e a vida escandalosa do Papa e da Cúria, mais aprofundou a urgência da reforma da Igreja.
Foi um frade piedoso e cumpridor, na oração, no jejum, na penitência, confessava-se frequentemente. Sedento de Deus e de salvação, vivia em crise interior permanente, angustiado com os escrúpulos, torturado com o pecado e a ira de Deus e a sua justiça como castigo. Obcecava-o a pergunta: "Que devo fazer para obter a misericórdia de Deus?" Em 1545, recorda no prólogo à edição das suas Obras Completas em latim: "Embora a minha vida de frade fosse irrepreensível, sentia-me pecador diante de Deus, com a consciência perturbada. Indignava-me contra este Deus, alimentando em segredo, senão a blasfémia, pelo menos uma violenta murmuração... Sei de um homem que sofreu estas penas muitas vezes... com violência tão dura e infernal que nem a língua pode exprimir nem a pena escrever..."
Foi em 1514 que se deu a viragem total na sua vida, ao descobrir, através da Carta aos Romanos, de São Paulo, o Deus da misericórdia, cuja justiça não é de castigo mas de amor. "Pela fé recebemos um coração diferente, novo e puro. Deus quer ter-nos totalmente justificados por causa de Cristo, nosso mediador." Em terminologia simples, a questão que já São Paulo tinha é esta: o que vale a minha vida? Que valor tem ela e para quem? Quem me reconhece? Valho o quê para quem? E São Paulo e Lutero descobrem que valemos infinitamente para Deus. A fé é a entrega confiada a esse mistério do Deus misericordioso que, através de Cristo, reconhece o nosso valor para ele. Nisso consiste a salvação.

3. Resolvido este problema pessoal, no quadro da urgência da reforma da Igreja, no contexto da necessidade de uma piedade mais interior e pessoal, quando os príncipes exigiam autonomia face ao imperador Carlos V e a Roma e estavam em marcha transformações culturais, económicas e políticas, destronando o paradigma medieval, Lutero acabou por desencadear, nem sempre consciente disso e até contra a sua vontade, uma ruptura religiosa e um cataclismo civilizacional. Como escreveu Jaume Botey, "as consequências desse cataclismo puseram em evidência a existência na Europa de duas culturas, dois modelos de relações sociais, duas formas de entender a política e o poder, inclusive, dois modelos económicos que, de facto, ainda hoje continuam entre a Europa do Norte e a Europa mediterrânica".
A causa imediata foi a venda de indulgências. No dia 31 de Outubro de 1517, Lutero afixou nas portas da igreja do castelo de Wittemberg as célebres 95 teses, apenas com o propósito de um debate teológico académico. Algumas dessas teses: "Deve-se ensinar aos cristãos que age melhor quem dá esmola ao pobre do que quem compra indulgências." "Se o Papa soubesse dos métodos de extorsão usados pelos pregadores de indulgências, preferiria ver a Basílica de São Pedro a afundar-se em cinzas a edificá-la à custa da pele, da carne e dos ossos das suas ovelhas." "Deve ensinar-se aos cristãos que o Papa, como é seu dever, estaria, se fosse necessário, disposto a vender a Basílica de São Pedro para dar do seu próprio dinheiro a muitos a quem alguns pregadores o tiram."

4. Qual o cristão que não estará de acordo com a crítica da venda das indulgências?
Recentemente, o Papa Francisco, com a audácia que o Evangelho dá, "denunciou e condenou o "mercadejar" no que ao inferno, ao céu e ao purgatório se refere, como frequentemente se faz nas cúrias eclesiásticas e seus arredores". E convidou a todos a deixar-se "misericordiar" por Deus.

Anselmo Borges no DN

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

domingo, 29 de outubro de 2017

Bento Domingues — Descongelar, protestar, agir


1. Espero que as últimas notícias de Fátima não sejam a viagem a Roma do bispo António Marto para agradecer a visita do Papa Francisco e a celebração da chegada ao Santuário de uma relíquia de João Paulo II. É de supor que lhe tenha agradecido, sobretudo, as admiráveis homilias feitas na Cova da Iria e tenha apresentado as medidas que o Santuário tomou, se é que existem, para fazer desses textos instrumentos da evangelização de Fátima. Para quando o abandono de invocações e orações muito pouco cristãs?
A doutrina católica não se pode guardar sem a purificar. Tudo o que é verdadeiramente cristão cresce, progride, tende continuamente para a plenitude, como Bergoglio acaba de lembrar, a propósito do XXV aniversário do Catecismo da Igreja Católica. A Tradição é uma fonte de vitalidade quando não é confundida com as tradições da preguiça, do “sempre assim foi”.
Como diz o Papa, só uma visão parcial pode conceber o “depósito da fé” como algo estático. A Palavra de Deus não pode ser conservada em naftalina, como se fosse uma velha manta que é preciso proteger das traças. É uma realidade dinâmica que progride e cresce. Tende para a perfeição. Ao sublinhar que “se fortalece com o decorrer dos anos, cresce com o andar dos tempos, desenvolve-se através das idades”, Francisco entra pelas arrojadas expressões de São Vicente de Lérins (séc. V) [1].
Em conversa com os jesuítas colombianos, o Papa argentino, foi ainda mais incisivo: não se pode continuar a ser formado como eu fui, numa filosofia escolástica decadente, bastante ridícula e que, depois, se traduzia numa pastoral dominada pela casuística.
A seguir, aproveitou uma pergunta desse diálogo para enfrentar os adversários que o caluniam e destacar o que, a seu ver, «deve ser dito por justiça e também por caridade. De facto, ouço muitos comentários – respeitáveis, porque de filhos de Deus, mas errados – sobre a Exortação apostólica pós-sinodal. Para compreender a Amoris laetitia é preciso lê-la do começo até ao fim (…). Alguns afirmam que a Amoris laetitia não tem uma moral católica ou, pelo menos, uma moral segura. Sobre isto gostaria de reafirmar, com clareza, que a moral da Amoris laetitia é tomista, do grande Tomás. Podeis falar sobre isto com um grande teólogo, entre os melhores e mais maduros de hoje, o cardeal Schönborn. Desejo dizer isto para que ajudeis quantos crêem que a moral é mera casuística. Ajudai-os a darem-se conta de que o grande Tomás possui uma riqueza imensa, capaz de nos inspirar ainda hoje» [2].
O acolhimento das relíquias de João Paulo II, em Fátima – todos os santuários estão carregados de relíquias –, não pode fazer esquecer um fenómeno muito curioso. Jesus de Nazaré não nos deixou nenhum resto do seu corpo nem da sua veste. As únicas relíquias de Jesus Cristo são as comunidades cristãs de hoje, em comunhão com as do passado. Frei Francolino Gonçalves, que viveu na Escola Bíblica de Jerusalém mais de 40 anos, como investigador e professor, indignava-se ao ver tantos grupos católicos, acompanhados de padres e bispos, a olhar para um túmulo vazio, esquecidos de visitar as comunidades cristãs da chamada Terra Santa. Procuram relíquias que não existem e ignoram as comunidades do Ressuscitado!

2. Nos dias 20-21, deste mês, realizou-se, na Universidade Fernando Pessoa, o Congresso (Re)Visões de Fátima. Como não pude estar em tudo, é impossível assinalar o alcance de todos os seus contributos no âmbito das ciências humanas, da teologia e da filosofia. A publicação das Actas marcará a novidade e a importância dessa multifacetada investigação fora do âmbito confessional.
Nos dias 21 e 22, participei no Encontro de formação do persistente Movimento «Fraternitas», uma associação privada de fiéis, constituída por Padres dispensados do exercício do ministério, casados ou não, e as suas esposas ou viúvas. Tem estatutos aprovados pela Conferência Episcopal Portuguesa. Goza de personalidade jurídica sem fins lucrativos.
Dito assim, continuamos na ignorância da significação da história da opção pelo casamento de muitos padres e dos seus heróicos esforços para continuarem membros activos, nas paróquias e nas dioceses, a partir da sua competência profissional e preparação pastoral. As resistências que encontraram e encontram em Portugal, e noutros países, fizeram de uma nova oportunidade evangelizadora, na linha do Vaticano II, uma perda irreparável [3].
O tema do Encontro de formação deste Outubro, realizado no Seminário Redentorista de V.N. de Gaia, vinha com este título: A “Igreja do Papa Francisco”- andamento, linhas, armadilhas…
Deixo aqui uma passagem do texto discutido por todos:
(…) Em contraste com o caloroso acolhimento que este Papa está a ter entre aqueles que se afastaram da Igreja ou de quem a Igreja se afastou, os participantes no encontro concluíram que, entre nós, está a verificar-se uma resistência passiva contra as suas orientações doutrinárias e pastorais. Mesmo que não se trate de resistência, é preocupante verificar como os documentos do Papa caem rapidamente no esquecimento ou não têm a repercussão que se esperaria. Por exemplo, a maioria das publicações da Igreja está a dar um lugar quase irrelevante às luminosas catequeses papais contidas nas suas múltiplas intervenções e nas homilias proferidas em Santa Marta.
Frente a movimentos organizados de resistência aos documentos programáticos do Papa, torna-se preocupante verificar que os órgãos hierárquicos da Igreja, designadamente a Conferência Episcopal, não tomem uma posição pública de defesa clara das orientações pastorais por ele protagonizadas. Numa altura em que se avolumam ataques tão ruidosos ao nosso Papa, este silêncio torna-se inaceitável, pois está a lançar uma grande perplexidade entre muitos sectores do Povo de Deus, que esperavam, dos seus pastores, sinais mais insofismáveis de comunhão com o Papa.

3. Por causa dessa resistência passiva, pouco se ligou à Carta Encíclica Laudato Si (2015) que podia ter sido um instrumento de mobilização dos católicos para cuidarem, nos seus locais de habitação e trabalho, de um bem que é de todos. Falamos de direitos, mas esquecemos os deveres [4] de cada pessoa, entregando tudo à responsabilidade do Estado.
Voltaremos a este tema.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Cf L’Osser. Romano, 19.10.2017, pp.11-12
[2] Ib., p. 12
[3] Cf. para a história, Alípio Martins Afonso, Cónego Filipe de Figueiredo, Homenagem vivencial da Fraternitas Movimento, Águeda, 2010; espiral boletim da Fraternitas Movimento.
[4] Declaração Universal dos Deveres Humanos, Proposta do InterAction Council, 1. Setembro. 1997. Edição Pro Dignitate, Fundação de Direitos Humanos.

domingo, 15 de outubro de 2017

Bento Domingues — Um livro indispensável



1. Que livro é esse que me leva a dizer que é mesmo indispensável? Se tenho de confessar que foi essa a convicção que a sua leitura me impôs, sei que o espaço desta crónica não é o mais adequado para a justificar. A verdade é esta: ajudou-me a diminuir ignorâncias que talvez não sejam só minhas; ofereceu-me o conhecimento de alguns percursos da Bioética que ajudam a vencer a ideia de que perante questões tão complexas, o mais razoável seria deixá-las no segredo dos especialistas. 
O título, que enche a capa dessa obra, revela, sem ambiguidades, o seu conteúdo: Eutanásia, Suicídio Ajudado, Barrigas de Aluguer. Destina-se a possibilitar um debate de cidadãos, esclarecido e fecundo.
O autor, Miguel Oliveira da Silva, é professor catedrático de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Foi, entre 2009 e 2015, o primeiro presidente eleito do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Integra, por eleição, o bureau da DH-Bioética do Conselho da Europa.
No passado dia 9, a obra foi apresentada, na Casa-Museu Fundação Medeiros e Almeida, por José Barata-Moura e Anselmo Borges. Ficou claro que as questões abordadas neste livro não deveriam deixar ninguém indiferente. Têm a ver com a dignidade humana de todos os cidadãos, do presente e do futuro. Vivemos num mundo global, mas que também parece cada vez mais fragmentado e não se prevê que se vá tornar mais estável.
Como reza um velho aforismo, o que a todos diz respeito deve ser tratado por todos. Segundo S. Tomás de Aquino, a virtude da prudência política — condição para intervir de forma esclarecida nas orientações e decisões da comunidade — não é uma exigência exclusiva de legisladores e governantes. É indispensável a todos os cidadãos. Se a cultura activa das virtudes torna bons os seus praticantes e boas as suas acções, sem ela até as leis mais justas perdem vigor e eficácia na sua aplicação.
Para serem virtuosas, as opções e decisões políticas não podem dispensar o recurso a estudos adequados. Segundo o citado autor, o estudo, além de todas as experiências e dados recebidos dos investigadores, professores e educadores, exige sempre uma veemente aplicação da mente. Sem esse esforço não se consegue verdadeira autonomia pessoal. 
Não se deve confundir ética e política. Não esqueço, porém, que a política é uma ciência prática cujo objecto é o agir, algo complexo e mutável. A decisão prudencial ganha em associar a ética da convicção e a da responsabilidade, isto é, tem de saber calcular os riscos e as consequências das opções. As melhores intenções, sem políticas bem preparadas e executadas, alimentam as piores asneiras.
Tornou-se um hábito dizer mal da política e dos políticos, sobretudo dos que não são da nossa cor. Mas esquecer que nos pertence alterar rumos e métodos da prática política é uma forma de masoquismo. Um dos frequentes incitamentos do Papa Francisco aos cristãos incide, precisamente, sobre a importância da cura da intervenção política para que esta não seja guiada pelos interesses do dinheiro que geram a economia que mata crianças e adultos e provoca os criminosos negócios das guerras, desgraça dos povos.

2. Na contracapa desde livro de Miguel Oliveira da Silva está escrita a sua motivação. Perante o alargamento de direitos individuais nos extremos da vida humana, somos responsáveis pelo modo como o Estado assegura ou não a protecção dos mais vulneráveis: os jovens produtos de tecnologias genéticas e reprodutivas e as pessoas humanas em sofrimento intolerável que reclamam querer morrer.
Como ser equitativo no acesso a estas tecnologias e qual é, aqui, a relação entre o Serviço Nacional de Saúde e o sector privado? Quando e como têm os pais a obrigação de assegurar que os seus filhos possam conhecer a verdade sobre a sua história biológica: quem lhes deu o esperma ou o óvulo, qual a mulher que os gerou e pariu, quantos meios-irmãos poderá ter?
O parecer dos peritos deve servir para pôr as pessoas a pensar, debater, informar, cogitar para não ser uma perfeita trivialidade.
Um debate sobre uma questão ética nunca está completamente encerrado. Por vezes, e ainda que de outro modo, há que retomar, periódica e recorrentemente, as mesmas interrogações e dúvidas. As leis bioéticas não podem prever todos os casos, todas as situações concretas, sobretudo quando se trata de novas tecnologias reprodutivas e genéticas que podem obrigar a uma reapreciação e eventual mudança legislativa [1].

3. É absolutamente impossível tentar resumir o conteúdo dos diferentes capítulos ou temas desta obra, embora fosse a melhor maneira de apresentar as razões que me levam a chamar-lhe um livro indispensável. Indispensável não é o livro. Indispensável é conhecer a história e os debates da bioética, em Portugal e nos outros países, para que seja possível uma participação democrática em assuntos que a todos dizem respeito.
Como já escreveu Anselmo Borges, o achismo é o inimigo do conhecimento e do debate entre cidadãos. Para encher os meios de comunicação — rádios, televisões, jornais, redes sociais — não é preciso conhecimento argumentado. Basta dar a ilusão que a verdade não tem interesse, tanto mais que a época da pós-verdade é o seu reino. Silêncio imposto sobre determinados temas já o conhecemos e ainda existe em muitos países. Mas agora, procura-se o mesmo resultado falando muito. Poucos dias depois de ter chegado a Nampula (Moçambique), e não sabendo nada de macua, passei por um grupo que falava e gesticulava alegremente. Perguntei a um rapaz macua, que sabia português, o que estava aquela gente a dizer com tanto entusiasmo. Resposta rápida: não estão a dizer nada, é só falar. Hoje em dia, e entre nós, em relação a muitos programas que pretendem ser de informação e debate, tenho a impressão de que também não dizem nada. É só falar. Seriam bem dispensáveis.
O que não se pode dispensar é o conhecimento da história da bioética que — ao contrário da clássica Ética Médica até aos anos 70 do século XX — tem um outro horizonte temporal e outro alcance filosófico: a equação moral que não se esgota na imediatidade ou proximidade da relação quase sempre privada e individual médico-doente. Há um outro tempo, uma esfera pública e comum, transgeracional que pode mesmo afectar o futuro do planeta [2].

Frei Bento Domingues, no PÚBLICO

[1] Cf. Miguel Oliveira da Silva, Eutanásia, Suicídio Ajudado, Barrigas de Aluguer, Caminho, Lisboa, pp 80-87; 114-124
[2] Cf. Obra citada, pp 63-68

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Anselmo Borges — Francisco sobre: 3. a Igreja e a alegria



Continuo com os diálogos do Papa Francisco e de Dominique Wolton: Politique et société. Quando se fala da Igreja, pensa-se logo na instituição e nos dirigentes: papa, bispos, padres... Ora, acentua Francisco, "a Igreja somos nós todos." "Há os pecados dos dirigentes da Igreja, com falta de inteligência ou que se deixam manipular. Mas a Igreja não são os bispos, os papas e os padres. A Igreja é o povo. O Vaticano II disse: "O povo de Deus, no seu conjunto, não se engana." Se quiser conhecer a Igreja, vá a uma aldeia onde se vive a vida da Igreja. Vá a um hospital onde há tantos cristãos que vêm ajudar, leigos, irmãs... Vá a África, onde se encontram tantos missionários. Não para converter - era noutros tempos que se falava de conversão -, mas para servir."

O que é que mais o toca? "Há tanta santidade. É uma palavra que quero utilizar na Igreja hoje, mas no sentido da santidade quotidiana, nas famílias... Quando falo desta santidade ordinária, que já designei como a "classe média" da santidade..., sabe qual é a imagem que me vem ao espírito? O Angelus, de Millet. A simplicidade desses dois camponeses que rezam. Um povo que reza, um povo que peca e depois se arrepende dos seus pecados. Há uma forma de santidade oculta na Igreja. Há heróis que partem em missão. Alguns sacrificaram a sua vida. É isso que me toca mais na Igreja: a sua santidade fecunda, ordinária. Essa capacidade de tornar-se santo sem se fazer notar."

Por isso, Francisco tem medo da rigidez. "Por detrás de cada rigidez há uma incapacidade de comunicar. Pense nesses padres rígidos que têm medo da comunicação, pense nos políticos rígidos... É uma forma de fundamentalismo. Quando me aparece uma pessoa rígida, e sobretudo um jovem, digo imediatamente a mim próprio que está doente. O perigo é que procuram a segurança... Não sabem, sentem-no. Vão, portanto, procurar estruturas fortes que os defendam na vida." Temos então o tradicionalismo, o medo da novidade, do diálogo. Ignoram que a tradição, para ser viva, tem de estar em movimento. "Como cresce a tradição? Cresce como uma pessoa: pelo diálogo, que é como a amamentação para a criança. O diálogo com o mundo que nos rodeia. Se não se dialoga, não se pode crescer, fica-se fechado, pequeno, um anão. Não posso contentar-me com caminhar com palas, devo olhar e dialogar. Dialogando e escutando outra opinião, posso, como no caso da pena de morte, da tortura, da escravatura, mudar o meu ponto de vista. Sem mudar a doutrina. A doutrina cresceu com a compreensão. Isso é a base da tradição. Ao contrário, a ideologia tradicionalista tem uma fé como isto [faz o gesto das palas]: na missa, a bênção deve dar-se desta maneira, os dedos devem colocar-se deste modo, como se fazia antes... O que o Vaticano II fez com a liturgia foi algo enormíssimo. Porque abriu o culto de Deus ao povo. Agora, o povo participa." Aqui, digo eu: o cardeal Robert Sarah que não pense que vai pôr outra vez a missa em latim, com o padre de costas para o povo...

Neste contexto, põe-se a pergunta: os divorciados recasados podem comungar? "Há o que eu fiz, depois de dois sínodos: a exortação "A Alegria do Amor"... É algo claro e positivo, que alguns com tendências ultratradicionalistas combatem, dizendo que não é a verdadeira doutrina. Quanto às famílias feridas, eu digo lá que há quatro critérios: acolher, acompanhar, discernir as situações e integrar. Abre-se um caminho de comunicação. Perguntam-me: "Mas pode dar-se a comunhão aos divorciados?" Respondo: "Falai com o divorciado, falai com a divorciada, acolhei, acompanhai, integrai, discerni!" Infelizmente, nós os padres estamos habituados a normas congeladas, fixas. E ouve-se dizer: "Não podem receber a comunhão." Que não, não e não. Este tipo de proibições é o que encontramos no drama de Jesus com os fariseus. A mesma coisa!"

Neste enquadramento, porque "a misericórdia é um dos nomes de Deus - se eu não aceito que Deus é misericordioso não sou crente" -, todos os padres, incluindo os lefebvrianos, podem agora absolver o pecado do aborto. "Atenção! Isto não significa banalizar o aborto. O aborto é grave, um pecado grave. É o assassínio de um inocente. Mas se há pecado é necessário facilitar o perdão."

O cristianismo "não é uma ciência, uma moral, uma ideologia, uma ONG: o cristianismo é um encontro com uma pessoa. É a experiência da estupefacção, da maravilha espantosa de ter encontrado Deus, Jesus Cristo, é isso que me deixa estupefacto". Por isso, "não se pode ensinar a moral com preceitos como: "Não podes fazer isto, deves fazer isto, tu deves, tu não deves, tu podes, tu não podes." A moral é uma consequência do encontro com Jesus Cristo, uma consequência da fé, para nós os católicos. E para os outros a moral é uma consequência do encontro com um ideal, ou com Deus, ou consigo mesmo, mas com a melhor parte de si mesmo. A moral é sempre uma consequência". Assim, é inconcebível uma Igreja afastada das pessoas. "A Igreja de Jesus Cristo tem de estar ligada ao povo. O contrário seria fazer como alguns políticos que se interessam pelas pessoas durante as campanhas eleitorais e depois as esquecem. Para mim, a proximidade, mesmo na vida pastoral, é a chave da evangelização... Quando quero transmitir algo a alguém, devo esforçar-me por pensar que estou diante do mistério de uma outra pessoa."

Wolton: "Que palavras do seu pontificado quereria ver retidas?" Francisco: "A palavra que mais utilizo é a "alegria". Uso muitas vezes a "ternura", a "proximidade". Aos padres digo: "Por favor, sede próximos das pessoas." Aos bispos digo: "Não sejais príncipes, senhores, sede próximos das pessoas, dos padres." Também a "oração", rezar no sentido de estar diante de Deus" e fazer silêncio e meditar, no meio de uma sociedade do ruído, do "rapidão".

Anselmo Borges, no Diário de Notícias 


domingo, 1 de outubro de 2017

Tranquilizar ou desassossegar Fátima?



1. Fátima nunca mais é o título de um livro militante do padre Mário de Oliveira. Fátima cada vez mais, passados 100 anos, goste-se ou não, é o panorama do que está acontecer. Porque será
Conheço Fátima desde 1947, onde também vivi, em épocas bastante diferentes. Contactei, muitas vezes, com os familiares dos pastorinhos, a começar pelos pais da Jacinta. Ao longo do tempo, fui lendo o que se escrevia sobre o fenómeno. Já apresentei, até por escrito, as minhas impressões que não foram sempre as mesmas.
O primeiro sentimento foi de algo banal e triste, estranho e inverosímil. Como era possível que Nossa Senhora viesse pedir mais sacrifícios a uns pobres e inocentes pastorinhos, para reparar um Deus ofendido por pecados que não eram deles? Por que não foi ela ter com esses que cometiam pecados tão grandes que deixavam o coração de Deus em sangue? Um colega mais velho respondeu-me: na religião isto é tudo ao contrário. Talvez, mas não é justo!
Tentando, depois, entender o que tudo aquilo tinha, e tem, de assustador e cordial, nos limites das catequeses primárias e dos crescentes movimentos devocionais da época, as perplexidades aumentaram.
Dizer que se trata de um dos fenómenos religiosos mais relevantes do seculo XX, nascido no seio do catolicismo popular português, enquadrado pela hierarquia eclesiástica, desenvolvido no quadro de uma luta católica pela liberdade da Igreja e num quadro mundial de guerras, a abordagem de Fátima dispõe, hoje, além da documentação de propaganda, apologética e contestatária, de documentação crítica e de obras de interpretação, de diversa índole, e fácil acesso. Desse conjunto, saliento: A nível da História, destaco Fátima, do bispo Carlos Azevedo [1]. Com a Senhora de Maio [2], António Marujo e Rui Paulo da Cruz conseguiram uma Fátima, a muitas vozes, dissonantes. O pequeno dicionário de Helder Guégués [3] revela-se muito útil. Ana André e Sara Capelo registaram as vozes dos que percorrem quilómetros e quilómetros, a pé, até ao Santuário [4]. Fátima é diferente para todos.

sábado, 30 de setembro de 2017

MaDonA — Dia Internacional do Coelho - 30 de setembro


Está no imaginário infantil, a história do coelhinho branco que nos encantava, bem como o cartoon do Bugs Bunny, o Pernalonga que mantinha a miudagem grudada à televisão. O coelho visto como uma bolinha de pelo, sempre despertou nas crianças e até nos adultos uma grande ternura, sendo-lhe atribuído vários significados. Tem um dia no calendário, sendo celebrado todos os anos, no último sábado de setembro. 
O seu objetivo é promover a proteção dos coelhos selvagens e domésticos do mundo. São cobaias do homem, na realização de testes para a indústria cosmética e farmacêutica. A sua pele é usada no vestuário, mas nunca vesti um casaco de pele de coelho, nem de raposa, nem de vison, nem de antílope. Sou contra o abate destes animais.