domingo, 26 de abril de 2020

Conversão, Dia da Terra, 25 de Abril

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

Numa experiência diferente do tempo, um tempo parado, vazio, parece, por um lado, que nada acontece de especial, por outro, na medida em que se está atento, percebe-se que a vida está aí para ser vivida e em interrogação constante. O vírus invisível e global isso fez: obrigou a parar e a pôr as perguntas essenciais. O que aí fica são algumas notas sobre este tempo novo. 

1. São muitos os que se perguntam se vamos sair melhores, na convicção de que sim. Por mim, espero que sim, mas temo que, passada a catástrofe, tudo volte exactamente ao mesmo. Não esqueço aquelas palavras de Primo Levi que, ao sair de Auschwitz, constatou que “não saímos nem melhores nem mais sábios”. E viaja pelas redes sociais uma “graça”, talvez, infelizmente, verdadeira: “Vamos sair melhores?” – “Não. Porque isto é um vírus, não é um milagre”. 
No entanto, é de um milagre que precisamos, ao sair deste pesadelo: sair melhores e mais sábios. Para isso, não se trata de mudar apenas isto ou aquilo, é urgente mudar o modo de pensar. Precisamos de uma conversão, como manda o Evangelho. Frequentemente, traduz-se essa conversão por “fazei penitência”, mas o que lá está é o verbo grego: metanoiête, que quer dizer: mudai o vosso modo de pensar, mudai a vossa mentalidade, começai a pensar de modo outro e a agir em consequência. Qual é o propósito da vida, o seu sentido mais profundo? É enriquecer, produzir cada vez mais, consumir sempre mais? Ou o bem-estar, o viver bem, num mundo que é de todos, na entreajuda para maior alegria e mais felicidade no sentido autêntico? Queremos continuar na religião de um progresso sem limites, que aliás não é possível num mundo que é finito, limitado? Não queremos viver melhor, com moderação, sem explorar a Mãe Terra nem os outros nem a nós, dentro de um modelo de progresso que assenta num montão crescente de vítimas? Talvez o nosso engano seja este: em vez de vivermos aqui, agora, vivermos, alienados, numa concepção de tempo, que é o tempo que a modernidade inventou: o passado é apenas o ultrapassado e o presente apenas a rampa de lançamento para um futuro de progresso sem fim. Mas, assim, neste modelo, quando vivemos e somos verdadeiramente?

sábado, 25 de abril de 2020

AS PORTAS QUE ABRIL ABRIU


Celebra-se hoje o “25 de Abril”, a revolução dos cravos de 1974 que pôs fim a uma ditadura de quase meio século. Já não serão muitos os que viveram aquela data que tem marcado as mais recentes gerações em espírito democrático. Há eleições a nível nacional e local que todos conhecem, mas nem sempre agem com a participação cívica que a democracia merecia e merece. Se é verdade que uma elevada percentagem de portugueses vive indiferente às eleições, também é certo que o direito de escolha não está vedado a ninguém. Isso significa que muitos compatriotas precisam de ser esclarecidos a partir das famílias, dos bancos das escolas e por todas as formas de convencimento, até porque só terá o direito de contestar os serviços prestados pelos eleitos, nos diversos cargos autárquicos ou de âmbito nacional, quem vive com autenticidade a democracia. 
O 25 de Abril abriu portas outrora trancadas a muitos homens e mulheres: o direito à liberdade de opinião e de expressão, oral e escrita, à escolha democrática, à participação cívica, à livre associação, ao culto religioso, à frequência escolar de todos os níveis, ao sindicalismo, ao respeito pelas ideias próprias e dos outros; homens e mulheres passam a viver em pé de igualdade com direitos e deveres no campo da intervenção profissional, empresarial, social, desportivo, artístico, académico e familiar. Seria interminável a lista das portas que o 25 de Abril abriu. 
Em 2010, aquando da celebração dos 100 anos da nossa freguesia, escrevi um texto alusivo ao “25 de Abril” que pode ser lido aqui.

Fernando Martins

sexta-feira, 24 de abril de 2020

CORAÇÃO HUMANO AO RITMO DO RESSUSCITADO

Reflexão de Georgino Rocha 
para o Domingo III da Páscoa 

A distância geográfica de Jerusalém a Emaús é relativamente curta, mas simboliza um itinerário exemplar de iniciação que, normalmente, os candidatos à vida cristã e inserção eclesial estão chamados a percorrer. Outrora, os discípulos eram Cléofas (que significa celebração) e o seu inominado companheiro/a (talvez cada um/a de nós, ao longo dos tempos).
Regressam à aldeia, após o fracasso das suas expectativas provocado pelo desfecho trágico da vida do seu mestre, Jesus de Nazaré. Dão largas a este estado de espírito, lamentam o sucedido e “sonham” retomar um passado que não volta. Alimentam e ampliam a amargura da frustração, “curtida” em conversas e atitudes. Sem horizontes de futuro onde brilhe qualquer “semáforo” de esperança. Amarrados a um presente marcado pelas chagas ainda em ferida viva e sangrante, carregam as gratas recordações de um tempo feliz e vivem à procura de sentido para a etapa que se avizinha. Têm memória e, com tom de amargura, relatam os factos em pormenor! Lc 24, 13-35.
O diálogo com o desconhecido, que se faz companheiro, mostra a dolorosa situação em que se encontram e os rumores incríveis que começavam a surgir. Constitui uma excelente amostra do sentir de tantos contemporâneos nossos, uma boa referência para lançar pontes de contacto e iniciar uma viagem comum, com o ritmo cadenciado dos passos de cada um e com a franqueza do coração aberto de todos. Agora somos nós os peregrinos de Emaús. Que tempos felizes recordamos da nossa experiência de Jesus?

quinta-feira, 23 de abril de 2020

DIA MUNDIAL DO LIVRO

Singela homenagem ao grande Camilo
Dia Mundial do Livro celebra-se hoje, 23 de abril, com o objetivo de sublinhar a importância da leitura e de lembrar que os livros são fontes extraordinárias de formação, informação e cultura. 
Como leitor diário, não ficaria de bem com a minha consciência se não alertasse os meus amigos para a mais-valia que os livros representam na minha formação a diversos níveis. Ajudam-me a compreender o mundo, a aceitar o pensar e o agir das pessoas pela positiva, a valorizar a sensibilidade criativa dos poetas e romancistas, a descobrir o trabalho incansável dos historiadores, a perceber a oportunidade e cultura de cronistas, a aceitar a capacidade de síntese dos contistas, a saborear a espiritualidade dos místicos, contemplando-me com a arte, enfim, de todos os que, com paixão, me brindam com livros que ocupam cantinhos especiais das minhas estantes. 
Não seria preciso dizer que há livros que me marcaram para a vida, que outros mereceram o caixote do lixo, que vários me deram alegrias, que bastantes me comoveram, que outros me fizeram pensar imenso, que tantos me desiludiram, mas faço-o para mostrar a minha convicção. 
Os livros são, realmente, os nossos grandes amigos: São pacientes, disponíveis, silenciosos, fontes de saber, generosos, sempre jovens mesmo quando antigos, mas ainda são conselheiros prudentes e inspiradores. 

Fernando Martins

quarta-feira, 22 de abril de 2020

DIA MUNDIAL DA TERRA - A TERRA PRECISA DE CARINHO

O planeta terra precisa do nosso carinho
O Dia Mundial da Terra celebra-se neste dia, 22 de Abril, tendo sido criado em 1970 para sensibilizar todo o mundo para a defesa de um planeta sem poluição, como garantia de um ambiente onde os seres vivos possam usufruir de melhores e mais dignas condições de felicidade. Importa, todavia, sublinhar que tudo seria mais fácil se a humanidade se envolvesse em pleno para levar por diante esse desiderato, mas há sempre quem ponha de lado tais propósitos, olhando apenas para o desenvolvimento económico a qualquer custo no imediato, sem pensar no dia de amanhã. A ganância economicista tudo amarfanha, sem olhar às consequências desregradas da produção industrial e do consumo egoísta e sem regras. 
Apesar de tudo isso, não têm faltado campanhas e alertas que envolvem milhões de pessoas de todos os continentes na ânsia de travar o caos no máximo a nível do ambiente e da qualidade de vida dos seres vivos sobre a Terra, mas não falta quem teime em ignorar todas as recomendações que saem periodicamente das assembleias organizadas para o efeito e subscritas em convenções pela maioria dos países do mundo. 
Instituições, escolas, igrejas, organizações de todo o tipo e famílias podiam e deviam pensar na defesa do ambiente durante todos os dias de todos os anos e não apenas no dia 22 de Abril... A Terra tem inúmeras capacidades, mas o desgaste é notório em vários quadrantes. A Terra precisa do nosso carinho.

F. M.

terça-feira, 21 de abril de 2020

FALAR COM AS FLORES

Flor do nosso jardim
Tenho para mim que as flores, de jardim ou silvestres, têm algo de divino. Quando passo por elas, não resisto à tentação de parar para as contemplar. E depois das formas, tonalidades e cheiros que inebriam, até sinto vontade de lhes falar. Bagão Félix, um profundo conhecer, mesmo apaixonado, de plantas, disse um dia, numa entrevista, que costuma falar com elas e acariciá-las. E ainda afirmou que pressente que as plantas o entendem. Não cheguei a esse ponto, mas que gosto de flores, lá isso gosto. 
Boa semana, de preferência a passear por um jardim, quando puder, e a tentar falar com as flores. 

F. M.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

IDOSOS: GENTE QUE AINDA QUER SER GENTE

A propósito do Covid-19


«O que não é normal é o discurso da clausura dos idosos por tempo indeterminado como se gente acima de certa idade, que vive em contextos muito diferenciados, não tivesse autonomia individual, autodeterminação, capacidade de tomar decisões, incluindo a capacidade de escolher quais os riscos de saúde que quer ou não assumir.
Não se pode esperar com enorme tranquilidade que homens e mulheres acima de 65 anos fiquem fechados em casa ou em lares por meses e meses, sem direito ao mundo exterior, sem direito ao afeto, sem direito a escolher. Quando estivermos em período de regresso à normalidade, as pessoas idosas não podem ser condenadas a morrer da precaução. Pelo contrário, temos de as respeitar enquanto cidadãos e cidadãs capazes de fazerem as suas escolhas, livres naquilo que não afete terceiros, gente que ainda quer ser gente.»

no EXPRESSO 

domingo, 19 de abril de 2020

GAFANHA DA NAZARÉ - CIDADE HÁ 19 ANOS

Recanto no Oudinot com navio-museu Santo André e Forte da Barra à vista 
A Gafanha da Nazaré celebra hoje, 19 de abril, o 19.º aniversário da sua elevação a cidade. Sendo certo que esta efeméride evoca um crescimento a vários níveis, não podemos ignorar que a valorização duma cidade segue um processo sem fim à vista... 

Recordemos um pouco de história

Criada freguesia em 23 de Junho de 1910 e paróquia em 31 de Agosto do mesmo ano, a Gafanha da Nazaré é elevada a vila em 1969. A cidade veio em 2001 por mérito próprio. O seu desenvolvimento demográfico, económico, cultural e social bem justifica as promoções que recebeu do poder constituído no século XX, a seu tempo reclamadas pelo povo.
A Gafanha da Nazaré é obra assinalável de todos os gafanhões, sejam eles filhos da terra ou adoptados. De todos os pontos do País, das grandes cidades e dos mais pequenos recantos, muitos chegaram e se fixaram, porque não lhes faltaram boas condições de vida.
A Gafanha da Nazaré é, hoje, uma mescla de muitas e variadas gentes, que, com os seus usos e costumes e muito trabalho, enriqueceram, sobremaneira, este rincão que a ria e o mar abraçam e beijam com ternura.
O Decreto-lei n.º 32/2001, publicado no Diário da República de 12 de Julho do mesmo ano, foi aprovado pela Assembleia da República em 19 de Abril de 2001, registando em 7 de Junho desse ano a assinatura do Presidente da República, Jorge Sampaio.
O povo comemorou a elevação a cidade com muita alegria, precisamente no dia da aprovação, pelo Parlamento, do desejo das autoridades e de quantos sentem esta terra como sua. A legitimidade popular consagrou essa data, 19 de Abril, como data de festa, sobrepondo-se à assinatura do Presidente da República. 
O título de cidade colocou a nossa terra com mais propriedade nos mapas e roteiros. Mas se é verdade que o hábito não faz o monge, temos de reconhecer que pode dar uma ajuda. Como cidade, passou a reivindicar infraestruturas mais consentâneas com esse título, podendo os gafanhões assumir este acontecimento como marco histórico da sua identidade, como cidadãos de pleno direito.

Do livro "Gafanha da Nazaré - 100 anos de vida"

A VIDA TEM DE VOLTAR À NORMALIDADE


Habituados que estamos ao confinamento, nem sei como vai ser quando retomarmos a normalidade, isto é, quando pudermos fazer uma vida com liberdade, dentro dos parâmetros estabelecidos há tantas décadas, como é o meu caso. A ideia que já expressei de que tudo será diferente depois do Covid-19 não me sai da cabeça e tenho dificuldades em compreender como é possível aceitar uma vida sem liberdade plena de sair de casa, de passar por um café, entrar num restaurante, assistir a um espetáculo, visitar amigos ou participar numa cerimónia religiosa... 
Diz-se que a máscara passa a ser peça obrigatória do nosso dia a dia, que evita males maiores, que é fundamental para impedir contágios ou para os provocar... Também se diz que é complicado visitar ou receber amigos porque desconhecemos quem é portador de vírus ou de doenças facilmente transmissíveis. 
Realmente, o futuro é uma incógnita, mas a inteligência humana, que tem resolvido obstáculos aparentemente intransponíveis, saberá dar a volta por cima... E a vida tem de voltar à normalidade. Temos mesmo de acreditar e lutar por isso. 
Bom domingo. 

F. M.

ANTROPOLOGIA DA ESPERANÇA ACTIVA

Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO

Frei Bento Domingues
«O ser humano é estruturalmente desejo. A antropologia, antes de o tentar explicar, deve saber reconhecê-lo.»

1. De uma descendência de animais, hoje desaparecidos, na qual se incluíam geleias marinhas, vermes rastejantes, peixes viscosos, mamíferos peludos, este neto de peixe, este sobrinho-neto de lesma, tem direito a um certo orgulho de alguém bem sucedido. De uma certa descendência animal, que em nada parecia votada a um tal destino, saiu o animal extravagante que viria a inventar o cálculo integral e a sonhar com a justiça [1].
A este delicioso texto do biólogo Jean Rostand (1877-1977) junto outro mais recente – situado em plena crise provocada pela covid-19 – e um pouco menos eufórico de Arlindo Oliveira, professor do IST:
“A espécie humana tem, do seu lado, uma capacidade única para perceber os mecanismos usados pelas outras espécies. É essa capacidade, a inteligência, que nos distingue dos outros animais e dos outros organismos. É essa capacidade que nos permitirá ultrapassar, sem danos significativos para a civilização, mais esta batalha pela sobrevivência. Que não será a última, nem a mais severa. Outros vírus, outras bactérias e outras doenças, potencialmente mais letais, continuarão a ameaçar a nossa sobrevivência como indivíduos e, no caso mais dramático, como espécie. Mas a inteligência humana coloca do nosso lado um arsenal de capacidade inigualável, que permitirá combater qualquer ameaça desta natureza.