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quinta-feira, 16 de julho de 2009

Ídolos, super-heróis e pessoas normais

Cristiano Reinaldo e Michael Jackson ocuparam páginas inteiras de jornais e tempos de antena sem conta, nas rádios e televisões. Foram ocasião de regozijo estrondoso e de lágrimas capazes de inundar um continente. Cansaram outros até à náusea. O primeiro, conhecido pela arte de jogar futebol e pelas loucuras amorosas, custou 94 milhões de euros ao clube de futebol ou alguém que espera lucros. O escândalo deste negócio continua nos jornais. Revistas de opinião teorizam e falam de imoralidade e de excesso que ofende. O clube que o comprou tem dívidas de 500 milhões! Mas Cristiano, ídolo de multidões, diz sem pejo dele próprio que vale mais do que o clube pagou… O segundo, um rei da música pop, uma história sinuosa e uma morte inesperada e envolta em mistério, astuciosamente aproveitada para pôr as vendas do seus discos no topo, perpetuar a sua memória e fazer contratos com a televisão de concertos já requentados, repetidos agora até à exaustão. Tão rico ele era, como se dizia, revelou-se agora que as suas dívidas são de centenas de milhões, e não falta quem pergunte, dada a situação da cidade de Los Angeles com um défice orçamental de 400 milhões de dólares, quem irá pagar as despesas de um funeral faraónico. As multidões entraram em histeria e os críticos não param de opinar, em todos os tons, sobre estes ídolos, tornados super-heróis, num mundo que perdeu o rumo do essencial. Décadas atrás, definia-se o homem como animal racional. Uma definição seca que dizia muito para o diferenciar dos outros animais, mas se ficava por implícitos que, em linguagem comum, o deixavam empobrecido de muitos aspectos essenciais para a sua compreensão. Davam-lhe a propriedade de raciocinar, que muitos já usam pouco.
Hoje, pelo menos, em definição mais realista e verdadeira, pode ir-se mais longe. O homem é um ser-com-os outros, um ser aberto ao transcendente, um ser que leva consigo apelos de liberdade interior, de modo a que, se ele quiser, nada o pode limitar interiormente. É cidadão de um mundo globalizado e sem fronteiras, protagonista da história, não da historieta, tão rico por sua natureza, que é um ser irrepetível e único.
Acompanha-o um mistério em que nem ele próprio penetra por completo, mas se vai desvendando, a pouco e pouco, ao longo dos caminhos, direitos ou tortuosos, da sua existência. Um mistério que o ultrapassa, para além da sua vontade e da qualidade e abundância dos seus sonhos e projectos. Capaz do melhor e do pior, de defender a sua liberdade até à morte ou de se deixar agrilhoar por coisas passageiras e efémeras. Capaz de ser águia altaneira que rompe os céus, ou vulgar ave de capoeira, de voos curtos e sem história, mesmo que dele se faça um ídolo ou o transformem em super-homem. Sempre que a pessoa, homem ou mulher, se esquece da sua verdadeira grandeza, escraviza-se a si mesmo, ou outros o fazem escravo, em proveito próprio. A grandeza está na normalidade do que se é, se assume e se vive, não num alarido alienante. A proposta educativa de modelos normais, tão normais que emergem da mediocridade, ajudou muita gente a ser gente. Hoje, o sonho de ser um cristiano ronaldo, para ganhar muito dinheiro, ou um michael jackson, para enlouquecer multidões, começa na escola e, por isso mesmo, a escola, para muitos os interessa cada vez menos, os enfastia e a vomitam. O dom de cada um cultiva-se. Não se vive de sonhos, de fantasias ou invejas. Ganhar muito e ser famoso, sem esforço e depressa, é ideal de muita gente nova. Mas não é este o projecto que lateja no mais íntimo de cada pessoa. E esse é o que conta. Estamos ante um problema cultural grave. Só a educação a sério o poderá ir resolvendo. Criticou-se António Guterres quando falou da “paixão pela educação”. Os profetas incomodam. Mas a vida dá-lhes sempre razão. Às vezes, tarde demais. António Marcelino

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Uma vida que deixou marcas e continua a ser sinal: João Maria Baptista Vianney

Cura de Ars
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Os cristão devem ser mais fraternos
com os seus padres
Foi em 1957. Já lá vão muitos anos. Um tempo de trabalho pastoral, em França, durante o mês de Agosto, para que o pároco de uma pequena cidade pudesse ter uns dias de férias, deu-me ocasião para ir em peregrinação a Ars. Uma aldeia pequena e pobre, cuja história é de um pároco humilde e santo. Respirei ali a presença e a acção de um padre, simples e discreto, grande, como são sempre os santos. O seu rasto, que nunca se apagou, cento e cinquenta anos depois, ilumina agora mais. Entrou na história da Igreja como padroeiro dos párocos, título que não é de somenos. Agora, por decisão do Papa, o Ano Sacerdotal tem-no como grande referência a atender. Templo, casa paroquial, tudo tão pobre, tão pequeno e tão humilde! Dizem-me, e assim leio, que, hoje, Ars já não é a pequena aldeia escondida na montanha. Recebe muita gente que vai no encalço do seu famoso “cura”, e dispõe de meios adequados para a acolher e albergar. Posso testemunhar agora que então não era assim. Para um padre novo de vinte e sete anos, destinado a formar padres ao regressar a Portugal, foi muito importante palpar em Ars a pobreza de tudo, para perceber melhor a riqueza de uma vida que se gasta a servir os outros, por amor, para perceber que os obstáculos a andar para a frente estão dentro de nós. Não fora nem nos outros. Tinha lido, com entusiasmo incontido, a biografia de João Maria Baptista Vianney, assim se chamava o Cura de Ars. A visita à que fora a sua paróquia, teve, por isso, um sabor especial. Uma peregrinação discreta, que deixou marcas. Andei pelas mesmas ruas, rezei na igreja paroquial, onde ele rezou, celebrou e foi confessor, horas sem conta, entrei na casa, onde viveu, guardada como no seu tempo e embelezada apenas com a baixela da maior pobreza, ouvi gente que trazia no coração o padre que alimentou a fé de seus avós e trouxera a Ars gente de toda a França à procura de perdão e de paz. São assim os santos que nem sabem que o são, porque não perdem tempo a olhar para si. Todo o tempo é pouco para contemplar, serenamente, o rosto de Deus e para escutar, com o coração, apelos vindos de todo o lado. E, mais ainda, os apelos de muitos para quem o padre antes era indiferente, mas que, depois, já não dispensável, amigo e sábio conselheiro, com o seu irresistível fascínio e o seu jeito de acolher, compreender e amar. Volto de novo a ler e a saborear, com calma e tempo, “O Cura de Ars” de Francis Trochu, uma obra premiada pela Academia Francesa. Releio com novo gosto, ao mesmo tempo que recordo os párocos que foram passando na minha vida, ao longo dos anos, e foram deixando, também eles, sinais de zelo generoso e de santidade a toda a prova. Cabouqueiros silenciosos de muitas vidas cristãs, heróicas e consistentes, moldadas pelo Evangelho por eles testemunhado, e capacitadas, assim, para traduzirem a força e a riqueza da sua fé, muitas vezes no meio de dificuldades e incompreensões. No dia 4 de Agosto celebra-se a festa litúrgica do santo Cura de Ars. Jamais me esqueço nesse dia, e noutros se tal se proporciona, de indagar dos cristãos presentes, se alguma vez se lembraram de agradecer a Deus os padres que passaram e estão passando nas suas vidas e de lhes dar lugar na sua oração. Não faltam surpresas. E, caso mais raro, gestos de gratidão e fé, para recordar sempre, como o daquela velhinha que me dizia que rezava todos os dias pelos padres que, em nome de Deus, lhe absolveram os seus pecados durante a vida. O padre é, normalmente, mais criticado do que amado. Sobre ele recaem mais exigências que gratidão. O Ano Sacerdotal deve ajudar os cristãos a serem mais fraternos com os seus padres. O padre não existe para si. Guarda consciência que sempre cairão sobre ele olhos de exigência. Mas olhos que o estimulem. A sua vida e a sua história interfere na vida e na história de muitos jovens e adultos, que no padre amigo encontraram um rumo que os dignifica e os torna úteis aos outros.
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António Marcelino

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Uma tensão natural, mas superável

É essencial que ninguém se sinta a mais
na família, na sociedade e na Igreja
Sociedade complicada, esta em que nós vivemos. As relações pessoais são sempre o espaço em que as complicações mais se acentuam e as tensões ganham maior relevo. Não devia ser assim, quando se trata de pessoas adultas, embora com idades diferentes. A roda da vida, para todos inexorável, não deixa que os mais velhos esqueçam as atitudes de quando eram ainda pouco amadurecidos e reagiam a ordens e conselhos, e aos mais novos, não deve passar despercebido que a juventude é tempo que se escoa depressa. Rápida. A convivência de idades diferentes permite a todos uma permuta de dons e de experiências, que enriquece mutuamente, mostrando que valemos e podemos mais, quando juntos e unidos, abertos e aceitantes da complementaridade. O poder decisivo, hoje, está, na sociedade e, em muitos aspectos, também na Igreja, cada vez nas mãos dos mais novos. É verdade que, sobretudo nas empresas, ser mais velho para determinadas funções e tarefas, pode logo acontecer aos quarenta anos. Assim se atende mais a aspectos considerados de rendimento profissional, esquecendo-se que a rentabilidade não se traduz apenas em dinheiro. Há gente válida e capaz, aos milhares, desempregada por encerramento de empresas. Logo vê como se lhe torce o nariz ao procurar trabalho. Já tem cinquenta anos! Um país que quer continuar pobre. Diz-se que o poder corrompe, novos e menos novos. Assim, há chefes mais novos, bem vestidos e engravatados, orgulhosos com seus diplomas e títulos, com atitudes que magoam, empobrecem a relação e mostram que são fruto de uma suficiência tola que não quer conselhos e apoios de ninguém. Também não faltam chefes mais idosos com a presunção de que ninguém lhes ensina nada. O “cresce e aparece”, ou “o seu tempo passou” ainda são atitudes mais frequentes do que se julga. A Igreja, com a normal coexistência de gerações diversas na orientação das suas comunidades, procura acautelar as boas relações entre os padres, chamando a atenção para os valores de cada idade, esforço de compreensão, mútua aceitação, colaboração concreta, trabalho em equipa, comunhão de bens, deveres de hospitalidade, partilha de trabalhos, promoção de iniciativas que evitem o isolamento. Como procura que abram os olhos à participação dos leigos, com seu valor, experiência e trabalho realizado. O problema tende a agravar-se no clero, onde a pirâmide de idades se inverte com o aumento dos mais idosos. Se não se exprime, visivelmente, a comunhão entre todos, não se caminha na colaboração mútua. Há, em todo o país, padres muito novos e pouco experientes e padres muito idosos e cansados a presidir a grandes comunidades. Um título canónico não garante, automaticamente, capacidades de liderança e sabedoria de decisões. Na aceitação mútua, a colaboração exprime-se e enriquece. Este testemunho, tomado a sério, pode servir de estímulo para outros sectores da sociedade. O tempo não é de novos ou de velhos. É de todos. É preciso, na Igreja e na sociedade, estar atento para que ninguém presente, se torne invisível ou ausente. As prateleiras não são lugar para arrumar gente, nem se podem promover pessoas, marginalizando outras pessoas. Até no seio da família e das relações familiares, se o saber e a experiência, vivida e sofrida, dos mais velhos, não lhes dá direito a ter opinião e a encontrar corações abertos para a ouvir, a família acabou. E muitas vão acabando, apesar das casas a dar nas vistas. Estamos em tempo de acolhimento, não de desperdício, muito menos de pessoas. Não basta respeitar, quando se aparece. É preciso dar apreço sempre. Há causas que nunca deixam livres aqueles, hoje mais velhos, que por elas sofreram e lutaram. Não podem agora ser mendigos das migalhas que caem da mesa do poder. Elas continuam suas. É essencial que ninguém se sinta a mais na família, na sociedade e na Igreja. Todas são pátria comum, espaço de vida, lugares de permuta e colaboração. Em todas o amor é lei. António Marcelino

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Uma influência pequena e residual! É isso que o povo pensa?

Só o facciosismo, a ignorância, a cegueira,
o fanatismo podem negar uma realidade,
que se mete pelos olhos dentro
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"A Igreja, pelos seus membros, tanto é pecadora como irmã universal que luta pelo bem, num mundo onde abundam os acomodados. Reconhece as suas limitações e falhas, mas, também, o seu caminho de conversão, os seus méritos passados e presentes, a sua vocação de serva das pessoas, homens e mulheres, de qualquer raça, religião, língua ou cor. Por isso não se acomoda e se, por vezes, o fez ou ainda o faz, é contra a sua razão de ser e missão permanente. Tudo isto o dizem as páginas da história, nas quais, uma multidão inumerável de procuradores dos pobres, ocupa lugar cimeiro, com destaque para gente da têmpera de Francisco de Assis, Vicente de Paulo, José Cotolengo, João de Deus, Frederico Ozanam, Américo de Aguiar, João XXIII, Teresa de Calcutá…
Alguns governos laicos põem entraves à sua acção, mas não podem negar o que é claro e que o povo agradece como o sempre beneficiado. Só o facciosismo, a ignorância, a cegueira, o fanatismo podem negar uma realidade, que se mete pelos olhos dentro."
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António Marcelino
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quarta-feira, 17 de junho de 2009

Uma leitura livre em clima democrático

OS PARTIDOS PASSAM, O POVO PERMANECE
Deixei o país na manhã do dia seguinte às eleições. Já levava comigo os jornais cheios de números e comentários, euforias e pesadelos, justificações e profecias. A meio do dia, em espaço alemão, pude folhear outros jornais da Europa, que comentavam o mesmo tema, no mesmo tom. Lá como cá, uns, sem olharem às contradições em que caíam, outros, justificam os resultados com a crise social geral, outros ainda, com opiniões fixadas no modo de agir dos partidos, que os eleitores acabavam de castigar. As leituras políticas são, por vezes, monocórdicas e superficiais, ditadas pelo imediato que exprime gosto ou desgosto. O exame das causas, porque exige ponderação, tempo e saber, raramente ultrapassa o trivial. Mesmo quando, de modo crítico, se tenta opinar sobre a crescente abstenção, o leque vai apenas da indiferença pelo acto eleitoral à opção mais agradável pela praia ou pelo passeio, do pouco conhecimento do que está em causa, à falta de confiança nos políticos profissionais. Porque tudo dito, nada muda. Quem vota é o cidadão do povo. Gente de diferente sensibilidade e cultura, com experiências e projectos diversos, com histórias e intuições não coincidentes. Alguns fazem das coisas políticas uma paixão, carregada de interesses e por isso não faltam. Outros, vão por seu pé, mantendo vivas as dificuldades e agressões que levam consigo e a que nem sempre estão alheios os que se sentam nas cadeiras do poder se acaso esquecem o bem comum e o povo concreto. Se muitas coisas, no dia-a-dia, já se vêem a olho nu, por altura das campanhas eleitorais e depois da contagem dos votos, o quadro torna-se mais ilustrativo, e emoldurado pelo muito que se diz ou se cala. A gente que decide votar ou anda alienada e ao sabor das opiniões dos seus, ou calada a aguardar atenta a hora de poder dizer, com o voto, a sua opinião determinante, sobre o que se passa no país e atinge a sua vida e a de muitos. As eleições não se ganham nem se perdem com comícios e cartazes, mas nas urnas. O que se grita nas campanhas, o que se diz e as pessoas que o dizem, apenas confirmam o que já se pensa e se sabe. Alguns eleitores, armadilhados contra os da outra cor, fecham os olhos e ouvidos e só dão razão aos seus. Então, as opiniões viram dogmas e as verdades do outro lado não passam de mentiras do seu. O povo sensato observa isto tudo e vai formando o seu juízo. Mas, já não falta quem, relativizando o alcance das decisões políticas, sabe bem o caminho por onde não se pode ir porque não leva sequer a um bem possível para todos. Como percebe também a linguagem que não respeita ninguém e menos ainda os que pensam de outro modo, a agressão programada a sentimentos comuns e a valores indiscutíveis, a teimosia em impor decisões alheias à verdade e à realidade, o malabarismo das palavras ardilosas que não convencem, a desonestidade política que põe os interesses dos partidos acima do interesse nacional, a pouca seriedade de quem faz da democracia uma palavra que enche a boca, mas que, na prática, frequentemente a denega. O povo tem intuições de horizontes largos que escapam aos políticos de vistas curtas e depressa esqueceram que “o povo é quem mais ordena”. Pelo menos nas urnas de voto não deixa que se mande nele, com a impunidade de décadas passadas e mesmo de tempos mais recentes. Ainda que abafado pelo poder que o não respeita, o povo já aprendeu a saborear a liberdade que ninguém lhe pode tirar. Assim, não lhe escapa a contra cultura que se lhe quer impor, o desrespeito pela família, seu maior bem, os ultrajes dos corruptos à sua honestidade, as mentiras com que o pretendem iludir, o orgulho de quem não o ouve, os problemas vitais sem solução, as portas do futuro fechadas aos jovens… Este povo também vota. Sabe pouco da Europa, mas sabe muito da vida. Conhece os políticos que ficam e aos que querem entrar. Sabe esperar e sabe dizer “basta!”. Os partidos passam, o povo permanece. Ele é riqueza sem dono. Quem não o escutar, nem respeitar, acaba sempre por ser julgado por ele. António Marcelino

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Humoristas sem graça

Quem pode esquecer o Raul Solnado?
Humorismo em crise deixa país mais entristecido
Nos tempos de crise fazem falta bons humoristas que proporcionem a toda a gente, pela sua criatividade, momentos de alegria e de esperança, de bem-estar e de confiança. O que se vê é que há mais gente irritada e azeda a agredir e a encobrir o sol por tudo e por nada, que artistas do humor, sábios e serenos, a desmontar agressividades e a conciliar diferenças, com um dito apropriado ou uma rábula, rica de saber e de graça. O humorista, julgo eu, é uma pessoa inteligente e criativa, um artista. Caso contrário, refugia-se na graçola, banal e pestilenta, acabando a rir sozinho com os bacocos, sem convicção, nem consolo. Onde não há inteligência não há criatividade. Sem inteligência e estro artístico, o humor nasce tão doente, que logo morre à nascença. Criar humor é mais que contar anedotas ou entreter com cantigas picantes. Há páginas de antologia em alguns dos nossos humoristas. Quem pode esquecer o sentido acutilante, irónico e pedagógico da “guerra do Solnado”? Há no humorismo verdadeiras peças de arte que não envelhecem, nem se desfiguram. Ouvem-se hoje, como há dezenas de anos atrás. O mesmo gosto e prazer. A mensagem, que nunca é uma simples piada ou uma graçola insonsa, continua viva e actual. Coisa rara, hoje, na produção dos chamados humoristas. Nem inteligência, nem criatividade, nem graça, nem saber, nem verve. O pretenso humoris-mo de hoje, como a pobreza do tempo, tornou-se descartável como a moda: ver, ouvir, rir, deitar fora. Os canais de televisão e as estações de rádio conservam os seus humoristas, como a corte manteve o seu bobo. Alguns bem tristes, mesmo quando pretendem fazer graça. A gente da programação ou já não sabe o que é o verdadeiro humor, ou quer vender gato por lebre, ou, então, pensa que para um país desiludido e alienado, qualquer coisa serve para divertir e provocar gargalhadas. As anedotas são brejeiras, os trocadilhos sem gosto, os ditos não dizem nada. E, quando se trata de intelectuais recentes a querer fazer humor em grupo, a desgraça parece ainda maior. Com um ar superior, brincam com tudo e com todos, não respeitam nada nem ninguém, nivelam tudo com a mesma rasa. O objectivo será o prazer do grupo, inebriado com seus dizeres vazios, seu saber pretensioso e suas gargalhadas histéricas. Ouve-se, vê-se e tira-se logo a prova de “como vai mal o humor em Portugal”. O povo ri se as piadas cheiram a sexo, religião ou política. Mas humor não é isto, porque, mesmo quando faz rir, também faz pensar. Sempre que se deixa de pensar, as referências válidas para ajuizar e avaliar o que se ouve, se lê, se pensa e se vive, desaparecem. Assim, o humor é impossível. Impossível fechar a boca aos insensatos e abrir o coração aos incautos, se a cabeça está oca e vazia. O bom humor é tempero da vida diária. Mal vai a um povo quando o humor se serve estragado ou dele não se sente falta. Os latinos diziam que “rindo se castigam os costumes”. Um dito sábio a mostrar que se pode fazer mais com uma palavra breve de verdadeiro humor, que com um discurso longo de pretenso saber. Porém, os costumes vão hoje de tal ordem, que castigá-los se tornou tarefa difícil, senão impossível. Muitos políticos agridem-se e picam-se, por tudo e por nada; há governantes a prometer o impossível e não suportar críticas: muitos intelectuais viram narcisistas e olham a plebe por cima do ombro; até os jovens, agora mais suficientes e surdos, fazem caminho por conta própria; restam os excluídos sociais que carregam a sua dor, cada dia mais desiludidos. O ambiente está mais carregado. Ninguém espere que o sol da esperança e da alegria alimente tristezas e desilusões. Com o futebol no defeso as coisas vão piorar. Deixemos que os humoristas, poetas e outros artistas, dêem beleza à paisagem humana e digam a toda a gente que o tempo não é de parar, nem de chorar, porque cada dia o sol nasce. António Marcelino

quinta-feira, 4 de junho de 2009

O obsceno e o sentimental invadem o nosso espaço público

Os ecologistas estão muito atentos ao gato morto que se abandona na rua ou ao lixo lançado fora dos contentores, mas passa-lhe ao lado a preocupação pelo ambiente humano deteriorado e cada dia mais inquinado pelo que se publica, se vê e ouve, até na rua, que, por enquanto, ainda é espaço de todos
Será que foi sempre mais ou menos assim ou estaremos perante um fenómeno novo a que a comunicação social se encarrega de dar permanente e vistosa publicidade? O inquinamento doentio da mente e do coração sempre pôde atingir a todos com gravidade. Em tempos foi-se muito longe, quando a manifestação pública deste inquinamento produziu vidas depravadas e chegou à exaltação, como se se tratasse de grandeza da raça ou de um melhor estatuto cívico. Ainda aí há sinais disso. Como quer que tenha sido antes, a verdade é que estamos hoje a viver ou a reviver uma época de pan-sexualismo, reduzido à manifestação de obscenidade que o ambiente farisaicamente favorece e dá dinheiro a quem o promove, acabando por manchar, socialmente, a maravilhosa dimensão da afectividade e da sexualidade humana. Como que a fazer eco do que se passou há poucos anos nos Estados Unidos da América, surge agora, como realidade ao longo de décadas, igual mazela na Irlanda. Acontecimentos que são, descontados embora os exageros de alguns relatos, a todos os títulos lamentáveis e condenáveis, mais ainda por estarem relacionados com instituições cristãs. Ninguém está imune do mal e de passos mal andados, devendo reconhecer-se, no entanto, que não é isso que se espera de pessoas e de obras sociais, que se propuseram ter a mensagem evangélica como instância educativa permanente. Quem folheia jornais e revistas de generalidades e pára na rua para observar os escaparates dos quiosques da imprensa ou passa pelos canais de televisão, de cá e de fora, se tem sentimentos de dignidade e preocupação por uma sociedade sadia e liberta, não pode deixar de ficar perplexo e preocupado ante o que lê e vê. A educação sexual, sempre e muito mais neste contexto, torna-se, de facto, necessária para os mais jovens, chamados a ser gente responsável, não por caminhos modernos tortuosos ou a agir sob sentimentos imediatos, mas pela transmissão lúcida de valores perenes que levem ao respeito por si e pelos outros. Muitos adultos necessitam, também, de um forte safanão que os acorde e os leve a quererem ser mulheres e homens, pessoal e socialmente dignos, e a trocar os atoleiros e o chafurdo por ambientes sadios, onde se viva de modo feliz e liberto. Do mesmo modo, haja quem atento tome conta do que se publica. Os ecologistas estão muito atentos ao gato morto que se abandona na rua ou ao lixo lançado fora dos contentores, mas passa-lhe ao lado a preocupação pelo ambiente humano deteriorado e cada dia mais inquinado pelo que se publica, se vê e ouve, até na rua, que, por enquanto, ainda é espaço de todos. Quando a vergonha e a responsabilidade pessoal não são censura válida, qualquer outra se torna odiosa. Quando o poder económico é rei e senhor, não faltam outros poderes a dobrar-se reverentes, ante os que mais têm e podem sempre ser úteis. Tem começado pela desagregação moral o declínio dos povos que se julgavam pioneiros de uma liberdade sem controlo. Por aí vamos, porque as crises económicas são antes morais e éticas. Comer, gozar e agradar não é modo de viajar rumo a bom porto. E a família? Muito se tem feito para a dignificar e capacitar para as suas tarefas. Mas muito se tem feito, também, para a destruir e anular na sua dignidade e nos seus direitos e deveres. A fonte que gera todas as crises humanas é sempre a mesma numa sociedade adormecida, manietada e desvirtuada nos seus objectivos normais. Se houver coragem para o reconhecer haverá também determinação para dar resposta. A intoxicação do obsceno e do sentimental debilitou os sentimentos mais nobres e os vínculos que unem as pessoas. O problema é cultural, com inevitáveis reflexos no humanismo reinante. As grandes vítimas estão aí à mostra: as crianças e os mais idosos. Ambos, pela sua natural dependência, se tornam manejáveis a interesses. Sem respeito e amor às crianças e gratidão aos idosos, para onde ruma e onde vai parar a sociedade?

António Marcelino

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Uma reflexão necessária, talvez incómoda

A celebração eucarística
é sempre uma riqueza a defender,
para bem do povo crente
"As celebrações prolongam-se demasiado, rompe-se o seu equilíbrio e unidade, atropelam-se momentos importantes, queima-se tempo necessário para o silêncio… Uma celebração eucarística não é um cabide onde cada um dependura coisas a seu gosto, nem uma assembleia com vários pelouros de gente independente. Tem presidência responsável, regras de culto público, ministérios ao serviço da assembleia. Não tem o rigor de uma cerimónia militar, mas não dispensa a ordenação correcta de um acontecimento respeitável. A Igreja quer que ela seja festiva, mas não a qualquer custo. Não é fácil extirpar abusos. Sei isso, por experiência. Quando me vi surpreendido, já no altar, por intervenções inesperadas e, na sacristia, chamei a atenção para isso, vi reacções de desagrado. Quando, terminada a celebração quis encontrar-me com o grupo coral para dizer o que, por dever, me competia, ouvi: “O senhor manda no altar, no coro mandamos nós”. Quando pedi a um coro que escolhesse cânticos que o povo cantasse, foi-me respondido: “Na igreja só tem direito a cantar quem faz parte do coro e vem aos ensaios”. São os tais pelouros que se foram constituindo por falta de formação e ganharam força ao verem e ouvirem o que se faz nas missas da televisão e da rádio, quando não mesmo por ali mais perto. A celebração eucarística é sempre uma riqueza a defender, para bem do povo crente." António Marcelino
Leia todo o texto aqui

quinta-feira, 21 de maio de 2009

ACONTECIMENTOS CLAROS E JUÍZOS COMPLEXOS

Há manifestações frequentes, pessoais e colectivas, que são de leitura difícil, se não mesmo impossível, quando faltam a quem julga, critérios adequados à sua total compreensão. São as assim as manifestações religiosas de fé, mormente quando envolvem multidões de crentes, por vezes gente humilde e simples, mas com convicções profundas e consequentes e coragem para as afirmar. Esta leitura, já de si complexa, aparece muitas vezes deformada pelos críticos e pela comunicação social que não vai além das aparências e se prende em aspectos limitados. Assim é com os peregrinos de Fátima, cumpridores ou não de promessas, chegados ao Santuário a pé ou de outro modo, vindos de norte e sul e dos quatro cantos do mundo. A expressão religiosa da fé traduz-se sempre de um modo cultural e, deste modo, é uma representação limitada, provisória e relativizada. Dela emergem, porém, sentimentos respeitáveis, capazes de convocar e unir pessoas, derrubar muros interiores, abrir horizontes novos, quebrar rotinas e acordar esperanças. Não é fácil a coragem de se afirmar hoje, publicamente, como cristão numa sociedade cada vez mais secularizada, religiosamente indiferente, que foi cortando as referências vitais com o transcendente. Pese, embora, o incómodo de alguns, a verdade é que não falta gente a afirmar a dimensão religiosa e evangélica da sua vida, e a dar razão da sua esperança com palavras convincentes, certas e sábias. E fá-lo de modo livre. Com o propósito de ver para além do que os olhos vêem, quando tal se proporciona, gosto de caminhar por entre estes cristãos corajosos, quedo-me a admirar e a perscrutar o seu mundo interior e a tentar adivinhar o que os leva a exprimir assim a sua fé. As peregrinações são ocasião privilegiada para tal propósito. Foi assim, há dias, com perto de vinte mil peregrinos emigrantes que trabalham em diversos países da Europa e se deslocaram a Mont-Roland, em França. De igual modo, dois dias depois, em Fátima, deixando-me envolver, silenciosamente, e contemplando a multidão que desafia, com um rosto sereno e confiante, o rigor do tempo, o cansaço da caminhada, o incómodo das cerimónias longas, a incompreensão dos críticos fáceis As expressões populares de fé não são apenas de pessoas simples e iletradas. Também as manifestam gente culta, que guarda a fé bebida com o leite da sua mãe ou fez alguma experiência de Deus, em momento tão decisivo da vida, que não mais pode esquecer. Dizem alguns, mesmo da Igreja, que muita gente generosa numa peregrinação, não exprime total coerência de fé na sua terra e no seu dia a dia. A coerência da fé adquire-se ao longo da vida, ante os desafios que a mesma vai pondo. A força unificadora do que se acredita e do que se vive não é obra de um momento, mas sim de uma decisão interior que se vai tornando vida no meio de incómodos e obstáculos. Neste esforço de procura de coerência e de unidade na vida, misturado de êxitos e de fracassos, vai a força que não deixa desistir, a gratidão pelo que já se conseguiu, a aceitação das contrariedades inevitáveis, o gesto discreto de solidariedade, as expressões de amor, os propósitos de bem fazer, a coragem para permanecer na comunhão eclesial. O maior desafio que hoje se põe aos cristãos e às comunidades é o da formação que enraíza e esclarece a fé e o do testemunho que dá sentido e abertura missionária às suas vidas. É esta uma responsabilidade permanente de quem serve. Servindo, se encontra maneira de interessar quem nisso precisa de ser servido e de que vai tendo consciência. No tempo do peregrinar na vida, Deus não é o juiz que contabiliza os resultados obtidos. É o Pai atento que incita a ir mais longe, dando a mão aos caídos, o colo aos cansados, a palavra estimulante aos que caminham sempre, levando uma cruz pesada. A gente, iletrada ou culta, com fé evangélica, desperta adormecidos e desatentos e denuncia teóricos, tardios em oferecer o seu ombro para ajudar os inúmeros feridos da vida. António Marcelino

quinta-feira, 14 de maio de 2009

CONFUSÕES GRAVES QUE PERSISTEM

A Igreja, o Papa e alguns bispos vêem-se, com crescente frequência, na praça pública, em virtude do que dizem e até do que não dizem. Tanto a palavra como o silêncio são ocasião de apreciação e de julgamento público, de acolhimento e de rejeição. Agora, foi-se mais longe. Na Bélgica e na Espanha, países de tradição cristã, mas de há muito sob a influência de um laicismo mortífero e arrasador, que não se priva de nada para destruir tudo e todos quantos, no mundo de hoje, falam de Deus ou apelam aos valores transcendentes da vida, foram os parlamentos, nacional e regional, que decidiram, por votação de maioria, fazer com que o Papa se retractasse e pedisse perdão ao mundo pelas intervenções dissonantes, de ordem ética e moral. Nada menos. A opinião pública é progressivamente manipuladora. As pessoas ouvem e repetem sem reflectir. Minimizam-se ou desconhecem-se as razões contrárias, mesmo se expressas por gente não afecta à Igreja, mas aberta ao bom senso e a exigências éticas normais. Neste contexto, a Igreja e os seus mais responsáveis são ditos a expressão pública do que é ser reaccionário e o obstáculo maior a que o mundo vá para a frente… Esta rejeição do cristianismo, e do que ele significa e ensina, não é novidade. Não acabará, e o clima social actual até a fará aumentar. Não se muda por via de decretos, cruzadas ou influências. Faz parte da mensagem cristã ser sinal de contradição, num mundo em que a verdade e os valores morais essenciais não favorecem os seus objectivos. Aumentam os intolerantes que exigem respeito, mas não sabem respeitar. A Igreja, servidores e comunidades, não pode alhear-se a esta realidade e terá de aprender a confrontar-se com as críticas e a saber discernir o seu significado e o apelo que comportam à sua purificação e acção, bem como à sua linguagem habitual. Para o crente não há muros a separar praticantes e não praticantes, amigos e inimigos. Há gente que Deus ama e quer salvar, fazendo da sua Igreja, tal como ela se entende a si própria, mediadora deste projecto. Em tudo, por isso mesmo, ela deve acolher e discernir os “sinais dos tempos”, que são o novo modo de Deus se revelar. Deve acordar e advertir, no complexo mundo actual, onde é enviada em missão, que é este o seu mundo, e não aquele já passado, que parece ainda encher cabeças paradas e corações nostálgicos. A história da Igreja, vivida, por séculos, em países e continentes, está repleta de acções permanentes e sérias, ao serviço das pessoas e da sociedade. Chamada a agir num mundo dominado por uma nova cultura, pelo diálogo necessário com uma sociedade marcada por vazio e ansiedades, a Igreja depara com sérias dificuldades, na sua comunicação e acção. Porém, não pode regredir em relação ao caminho traçado pelas suas raízes evangélicas, retomado, com nova sensibilidade e vigor, pelo Concílio Vaticano II. A exigência de caminhos novos num mundo plural, levam-na a assumir, sempre mais, a sua identidade de Povo de Deus, peregrino na sociedade e na história. Um Povo humilde de servidores, com todos os seus membros a gozar da mesma dignidade e a realizar uma missão comum: Um Povo que tem de mostrar vontade e coragem para não se identificar, nem aparecer como uma sociedade à maneira humana, desligando-se, por isso, de atitudes e roupagens históricas, que nunca foram fundamentais à sua vida e acção, e que constituem, hoje, um peso que prejudica e dificulta a sua imagem e missão. Caminho novo é desejar que o magistério do Papa, sem que perca a dimensão pessoal própria, se torne mais colegial; é contar, em questões importantes e decisivas para a missão, com os bispos, com o saber e experiência de quem conhece e sente os desafios que tocam a vida dos que lhes foram confiados; é dar mais valor às Conferências Episcopais de cada país, estruturas necessárias, mas pouco aproveitadas; é tentar que os seus servidores a tempo inteiro, clérigos e consagrados, se assumam como dom de Deus à Igreja e à sociedade, centrando a sua vida e acção no essencial, e investindo os seus talentos, pessoais e comunitários, na causa permanente da evangelização, e no que esta exige, em testemunho de vida, marcado pela unidade, comunhão e coerência; é dar aos leigos, que vivem a sua fé no meio das contradições e da dureza da vida, mais formação adequada, mais tempo para os escutar, mais respeito pelas suas opiniões, intervenções e autonomia no que lhes é próprio; é escutar os jovens, penetrar no seu coração, perscrutar-lhes os sonhos, adivinhar-lhes os seus desejos e projectos… Então, o rosto e a linguagem da Igreja irá mudando e o mundo que é chamada a amar começará a entendê-la e apreciá-la. A renovação ou vem de dentro ou nunca se dará. É preciso que quem se sente Igreja o entenda e o assuma. Não há outro caminho. António Marcelino

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Espaços de opinião livre na Igreja

"Na Igreja não deve haver temas tabus. Há problemas, por si não discutíveis dada a sua natureza. Não são muitos, mas, mesmo assim, podem-se reflectir, de modo aberto, para melhor se compreenderem e comunicarem. Muitos problemas da Igreja, trazem consigo uma carga histórica, que os foi sedimentando e, por vezes, os tornou dogmáticos e intocáveis. Precisam, agora, de ser abanados e confrontados com novas situações sociais e culturais, que lhes dêem vida e os tornem mais actuais, ricos e expressivos.
Nas últimas décadas, assistimos a mudanças na Igreja: reforma da Semana Santa, jejum eucarístico, missas vespertinas, ministérios laicais, relações ecuménicas, leigos na Cúria Romana e nas cúrias diocesanas… Coisas que pareciam intocáveis, mas não o eram.
João Paulo II mandou que fosse repensada a teologia e a história do primado, porque não queria que ele fosse obstáculo à unidade dos cristãos. Há hoje situações em retrocesso. Passam-se à margem do Vaticano II e de uma sã tradição, faltando coragem para reflectir em voz alta e em clima de comunhão."
António Marcelino
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quarta-feira, 29 de abril de 2009

Clube dos incorruptos, uma iniciativa com actualidade

O diário francês “Le Monde” de 22/23 de Março, dava conta de uma iniciativa original, a ganhar relevo nos tempos que correm, que, pelos seus objectivos, merece aplauso e, quiçá, seguidores onde vai grassando a peste tão nefasta da corrupção. A iniciativa deste Clube deve-se a Eva Joly, magistrada franco-norueguesa, que teve de instruir o famoso processo ELF. Um processo que envolvia pessoas do seu país e de África, ligadas, de um e de outro lado, ao poder político e ao poder económico. Os membros do “Clube dos Incorruptos” são magistrados que sentiram necessidade de pôr em comum as suas preocupações ante o dever grave, um verdadeiro desafio, de enfrentar e julgar casos de alta corrupção e de apreciar dossiers sobre o tema, que envolvem pessoas e entidades influentes, famosas e socialmente intocáveis. Reúnem-se com regularidade para confrontar métodos usados e resultados obtidos, e para se apoiarem, mutuamente, nesta tarefa, quase sempre ciclópica e difícil, que, muitas vezes, termina sem resultados positivos, mesmo quando tudo já aparecia mais ou menos claro. A corrupção, em alguns países de África, concluiu Eva Joly, quase sempre com raízes no Ocidente, tem posto em causa a democracia de muitos deles e até a sua sobrevivência como países. Manietado pela sofreguidão e cupidez de alguns poderosos locais, com apoios interessados, dentro e fora, e grande capacidade para mostrar inocência onde as culpas são evidentes e os resultados não escapam nem aos cegos, o papel da justiça é sempre difícil e muitas vezes inglório. Entre os membros do Clube fazem-se confissões, individuais e de grupo, que, pelo seu teor e gravidade, merecem uma especial atenção por parte de quem pode, a nível internacional, ter alguma interferência positiva, se acaso ainda existe alguém, pessoas ou instituições, com tal poder e influência. São as confissões dos magistrados, pelo menos, um alerta urgente para outros países e nações, onde iguais problemas se vão avolumando e não são menores as dificuldades encontradas para lhes fazer frente. O longo artigo do “Le Monde”, duas páginas recheadas, fala, por parte dos magistrados do Clube, de confissões dolorosas em virtude de combates perdidos, de ameaças e tentativas programadas de homicídio, de impossibilidade pessoal e de familiares de deslocação em privado, porque os conhecidos corruptos, quando sob investigação e juízo, lhes aparecem em qualquer canto, não pela preocupação de os saudarem ou de lhes proporcionarem auxílio. A corrupção, que sempre existiu em graus diferentes, muitas vezes encoberta e outras sem que seja possível ver todo o seu alcance, torna-se cada vez mais grave e cresce em espiral, quando os valores éticos se evaporam e à justiça faltam meios ou determinação para a enfrentar, anular os seus resultados ou minimizá-los, no possível. Ela cresce, também, por contágio. O fascínio do dinheiro e do poder, dois aliados habituais, é tentação que se espalha e em que se cai, a muitos níveis. Atenta a novas oportunidades, a grande corrupção ocupa o espaço da traficância, não apenas das drogas geradoras de toxicodependência, mas também de influências, espreita a permissividade do poder, pouco atento ou interessadamente desatento, goza dos favores de pessoas, locais e circunstâncias, tanto do poder absoluto, que também ele é, normalmente, corrupto, como das democracias, apáticas e sem espinha dorsal, embevecidas com a força dos resultados eleitorais, que depressa esquecem o que significa a promoção do bem comum, a justiça social e a defesa, corajosa e persistente, dos direitos individuais e colectivos. A corrupção não envolve só sofreguidão de dinheiro. Também se faz pela ânsia do poder. Mas a meada, por certo, tem duas pontas. António Marcelino

quinta-feira, 23 de abril de 2009

A Festa da Páscoa e as festas religiosas populares

Vão celebrar-se, nos próximos meses e em todos cantos e recantos onde haja igreja ou capela, as festas religiosas tradicionais. Não há santo que não tenha a sua festa, mesmo que a devoção por ele não seja tanta que a justifique. A tradição pesa muito na história de um povo, mesmo quando a vida dispersou a sua gente por outras terras. Se a tradição se vem da lonjura do tempo, de avós e bisavós, o respeito e a fidelidade em a cumprir não se discutem. Nada conta mais. Nem leis dos bispos, imposições dos padres, crises sociais, morte de vizinhos. É festa, é festa. O bairrismo dos lugares, a emulação dos mordomos, o que se viu noutros lados, o que a televisão mostra servem de inspiração ao programa da festividade, publicitado em cartazes de gosto duvidoso, onde se misturam santos com cantores e conjuntos musicais, missas e procissões com arraiais e tômbolas. O povo precisa da festa porque é dura a vida de todos os dias. Mas as festas, por aí fora, são cada vez menos festas do povo que as criou. Os olhos são postos agora nos forasteiros, na gente que vai de fora e se dispõe a pagar, não para honrar o santo, que muitos nem sabem quem é ele, mas para ver o artista conhecido, ouvir o conjunto de renome, encontrar clima propício a um maior gozo nem sempre honesto. Muitas festas tradicionais já pouco mais têm de religioso que o nome do santo, que ainda ali aparece como motivo para as ofertas da gente mais velha lá da terra, que é a que ainda conserva alguma devoção e faz promessas. Muita outra gente da comissão, anda mais preocupada em que não falte tempo para o leilão e para a música, porque as despesas são muitas. Até já pede que as coisas da igreja se reduzam à missa e à procissão, uma vez que esta não pode deixar de ser. Assim, não se demore muito com coisas só de alguns e, ao fazer das contas, não haja prejuízos por causa da religião… Uma ocasião de encontro de familiares e de amigos, que fazia vir à terra desde longe os que por lá andavam, foi-se tornando num momento de discutíveis misturas e barulho, que faz sair alguns dos que lá vivem à procura de terras mais sossegadas, impedindo até que venham à festa os que nunca faltavam. Afinal, deixou de ser a festa da terra com a sua mística e originalidade, para ser uma igual a todas as outras. Importa-se tudo: ornamentações, conjuntos, pessoas. O de fora é que dá lustro à festa. Porque se chegou aqui? Não faltam razões: o empobrecimento do sentido religioso nas pessoas, nas famílias e na comunidade, a invasão do profano, sempre passageiro e efémero, a publicidade aguerrida e teimosa de muitos intermediários do espectáculo… Tudo foi descentrando as pessoas do essencial da festa e debilitando os laços que, em momentos privilegiados como este, as uniam e tornavam solidárias. Qualquer festa, com sentido cristão, não pode deixar de se reportar à Festa, a Páscoa de Cristo. Dela flui, de modo natural, verdadeira alegria, abertura fraterna, partilha espontânea, vontade de prosseguir, valorização do sagrado, expressões de gratidão e confiança. Sem descobrir e viver a Páscoa, qualquer festa religiosa perde o sentido. A festa cristã repete-se em cada Domingo, dia pascal por excelência; nas celebrações sacramentais, acontecimentos pascais, por isso mesmo de Vida que nasce e cresce, se alimenta e recupera, se comunica e se compromete; na acção apostólica, gratuita e generosa; na solidariedade para com os mais pobres de todas as formas de pobreza. A ausência de sentido cristão de festas que por aí se fazem é denunciada pela sua insensibilidade às crises sociais, ao sofrimento e até ao luto que emerge em dia de festa do lugar, ao desgoverno das despesas que esquecem as necessidades do dia-a-dia da paróquia ou do lugar. Festas que atordoam e esqueceu as que pacificavam e uniam. Simples leis não invertem o processo. Quantas vezes, para não criar mais problemas, até a Igreja passa ao lado e faz o seu caminho. A festa é útil e necessária, mas não assim.
António Marcelino

sexta-feira, 10 de abril de 2009

ESPERANÇA QUE ORIENTA E ESTIMULA A VIDA

Há anos, Vítor Cunha Rego, com a profundidade que sabia dar aos seus escritos, escreveu no DN, de que foi director, um comentário curioso sobre os feriados da Páscoa que, para muita gente, são apenas a ponte alargada que permite saídas mais longas. Ansioso, interrogava-se, procurando com sinceridade, o essencial que pudesse dar sentido à sua vida. E perguntava, então, qual a razão dessa tão desejada ponte que surgia, cada ano, a contento de toda a gente, crente ou não crente. Não deixou de lamentar, por fim, que tantos se aproveitassem dela sem irem até ao acontecimento, maravilhoso e único, da Páscoa de Cristo, que a todos a permitia gozar. Na Páscoa evoca-se e celebra-se o mistério da morte e ressurreição de Jesus Cristo, Filho de Deus, com todo o seu significado, pessoal e social. Acontecimento único, com sentido definitivo para a história de cada cristão convicto e da própria humanidade. Há vidas serenas, mesmo em momentos de tempestade, dor e incompreensão. Outras são vidas tumultuosas, sem razões válidas para tanta perturbação e instabilidade. Todos os dias o vemos em graus diferentes e em gente concreta e com a sua história. Porque acontece assim? Causas profundas e subtis comandam a vida e suas reacções e escapam, frequentemente, ao olhar de quem vê de fora e, às vezes, até ao próprio. Há na vida de cada um de nós coisas que nos condicionam. Fáceis de verificar se são exteriores e se tornam objecto das nossas críticas, louvores ou desculpas. Outras há que nos determinam, têm dentro de nós as suas raízes, cultivadas ainda que escondidas. Tudo isto se vai tornando claro, de harmonia com a atenção e o sentido que damos à vida, e o cuidado que prestamos às nossas acções e comportamentos. Quem vive de exterioridades ou de emoções passageiras não percebe ou não dá atenção ao que se passa em si próprio ou à sua volta. Sabe da ponte para a aproveitar, mas não se debruça para lhe alcançar as margens, a força que nelas existe e o estímulo que pode vazar dentro de nós, mais importante que os dias feriados que proporciona. É este passar pelas coisas sem lhes descobrir o sentido, que faz escassear a esperança, empobrecer a vida e menosprezar as exigências que a comandam e as riquezas que contém. Chegamos à Páscoa. Com ela, à possibilidade de uma nova ponte, que tanto dá para passear, como para, serenamente, vivenciar a experiência de se sentir amado, vivo e liberto, e de se poder saciar na Fonte inesgotável, de onde dimana felicidade e paz. A Páscoa é, para os cristãos, a Festa por excelência. Não se resume a flores e amêndoas.Traz consigo energias renovadoras que dão sentido diário àqueles que celebram na fé a sua vida, e permanecem, unidos na esperança, a todos os outros crentes, para os quais Jesus Cristo, vencedor da morte, é a figura central da história humana. Páscoa é “passagem da morte à vida”. Só o amor é capaz de a realizar em todos e em todas as circunstâncias. Diariamente. O amor de um Deus, rico em misericórdia, que nos dá o Seu Filho. O amor redentor de um Filho que se entregou à morte para a todos dar vida. Ele venceu a morte e, pela fé que n´Ele depositamos e pelo dom d´Ele que recebemos, nos torna, também a nós, verdadeiros vencedores. Nesta certeza reside a nossa esperança. Ao cristão coerente, o único que está vivo como cristão, se pede que dê razões da sua esperança a uma sociedade que teme a verdade, não tem horizontes de vida e despreza os estímulos que a convidam a ir mais além. Sem se descobrir e viver a Páscoa, não se saboreia a alegria e a paz que no Aleluia pascal se manifesta. A luz da Igreja é Cristo Ressuscitado. Sem esta luz, nada tem valor. A vida cristã ou é pascal ou não é vida. Apelo que não se pode iludir nem adiar. Uma vida pascal é o melhor contributo do cristão à sociedade. Só ele é consequente e carregado da esperança que pode ajudar a sua necessária e urgente humanização.
António Marcelino

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Voos rasteiros, pragmatismo com baias

O Papa não precisa de quem o defenda. Quem o conhece e está atento, sem preconceitos, ao seu modo de agir e de intervir, antes e depois de ser Papa, sabe que nunca deixou, nem deixará, de afirmar, na fidelidade ao seu magistério, o que considera essencial e, evangelicamente, mais certo. Não fala para plateia com intenção de agradar, nem foge às críticas, mesmo que injustas. É um homem de princípios, coerente com a sua fé, corajoso no enfrentar dos problemas, detentor de uma consciência que lhe mantém bem vivo o sentido do dever e da missão, frente à Igreja, a que preside, e à sociedade, para a qual ela deve ser uma consciência crítica, que denuncie, abra caminhos e colabore. Não tem a força mediática do seu antecessor, diz-se, mas faz da sua coragem e testemunho a mais válida mediação.
António Marcelino
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quinta-feira, 26 de março de 2009

Gritos de ontem e de hoje, realidades e apelos de sempre

Há sessenta anos um padre francês, Henri Godin, acordou a Igreja da sua terra, com a publicação do livro “França, país de missão”. Escândalo para uns, grito que incomodou outros. O mesmo padre deu origem à “Missão de França”. Desencadeou-se, então, um movimento imparável: o Cardeal Suhard institui a Missão de Paris (1944); multiplicaram-se os “padres operários”, mais de uma centena entre 1944 e 1954 e cerca de 800 em 1978; o Cardeal Suennes, belga, publica o seu livro “Igreja em estado de missão”; um pároco de Paris partilha a sua reflexão e inquietação no livro “Paróquia, comunidade missionária”; dois padres da Vandeia, a terra das muitas vocações sacerdotais e religiosas, então professores do Seminário de Luçon, reflectem, no livro “Seminários em estado de missão”, a sua vontade de formar os seminaristas para um mundo novo, dando início às “férias missionárias” para que pudessem contactar, de perto, com a realidade das suas dioceses. Também por essa altura, o Cardeal Cerejeira, a seu modo, dizia que “ A África fica às portas de Lisboa”. Ontem um profetismo de apelo à evangelização dos lisboetas da periferia. Hoje, seria mais ainda como atenção especial à presença numerosa dos africanos. Entrei na vida pastoral, como padre, neste clima que, então, por cá não se sentia nem se respirava por aí além, mas que, ao chegar a Roma (1955), pouco tempo após a intervenção de Pio XII sobre os padres operários (Março de 1954), me fez acordar para uma realidade, que nunca mais deixou de ser para mim, incómoda e interpeladora. A Europa estava-se paganizando, não obstante a estar Igreja implantada em todo o continente. Há poucos dias, a “Vida Nueva” (7-13 de Março), revista semanal da Igreja de Espanha, dizia que a “Espanha já é terra de missão”. Vimo-lo dizendo em relação a Portugal, como um facto evidente da realidade religiosa e como eco das intervenções dos últimos papas aos bispos portugueses. Sobre tudo isto, juízos diferentes, ora de assentimento, ora de se pensar que se trata de um exagero, ora levando a reflectir e a unir esforços. Mesmo quando as coisas não eram ainda tão claras, João XXIII, por certo incomodado e perplexo pela posição de Pio XII sobre os padres operários, deixou-lhes o seu parecer nestas palavras, então as mais objectivas e sensatas: “Eu compreendo-vos, mas, nas circunstâncias presentes, não vos posso atender. Entretanto, já convoquei um Concílio. Este e o meu sucessor farão aquilo que eu agora não posso fazer” (Fevereiro de 1960). Assim aconteceu. Em 1965 os bispos franceses oficializam os padres operários e Paulo VI, tempos depois, convida um deles para pregar, no Vaticano, o seu retiro espiritual. A semente estava lançada. Vinha da JOC e dos seus assistentes religiosos, desde 1925. A situação social foi-se modificando, outros caminhos se abriram. Porém, a evangelização permanece como o grande desafio posto à Igreja, que não tem fronteiras nem geográficas nem humanas e para a qual não há soluções definitivas. O anúncio da fé que leva à conversão e personalização do crente e a edificação de comunidades cristãs, testemunhas do Evangelho no mundo, exigem dos evangelizadores a fidelidade diária ao projecto de Deus e a inovação cuidada que a realidade pede e a verdade revelada apoia em cada dia e circunstância. O laicado cristão tornou-se, no mundo de hoje, indispensável como motor e executor da missão evangelizadora da Igreja. Não apenas tarefa do clero e de uns tantos que o rodeiam e seguem, de modo obediente e pouco crítico. O papel dos leigos é, de facto, prioritário no anúncio e difusão do Evangelho. Com eles se recuperará a família com todos os seus membros, e a Igreja se tornará presença válida nas instâncias seculares, carentes da inspiração e dinamismo evangélico. A pastoral de conservação, mesmo que generosa, já não é caminho. Um mundo em mudança tem gritos novos. Assim a Igreja, lembrando a história, lhes dê ouvidos e atenção. Estamos todos em missão. António Marcelino

quinta-feira, 19 de março de 2009

Reflexão serena sobre a mulher com as luzes e sombras

Há poucos dias celebrou-se o Dia Mundial da Mulher. Multiplicaram-se as entrevistas e reportagens nos meios de comunicação social, não faltaram artigos a falar do tema, ouviram-se opiniões de psicanalistas, sociólogos e juristas, mulheres das mais diversas condições foram ouvidas, tanto na rua, como nos estúdios, outras escreveram sobre as suas vidas.
Nunca se diz tudo, é certo. Mas, quando se segue, com alguma atenção, um acontecimento como este, e se analisam ecos vindos de todo o lado, fica-se com a sensação fria de que se falou muito, mas se disse pouco, e se passou ao lado de problemas sérios e importantes, perdendo-se, talvez, a ocasião de reflectir com a preocupação de ver na globalidade e de tocar o essencial do tema em causa.
Também na Igreja, embora esta tenha sido e seja, historicamente, o espaço onde a mulher mais tem sido defendida e dignificada, o problema não está por completo resolvido, se é que há problemas humanos com resolução definitiva. Não se trata apenas de ver o que falta outorgar-lhes como serviço ou tarefa e, de fora, se atirar pedras, por razões que nem sempre se explicam por uma verdadeira compreensão do que é a Igreja e a sua missão nas diversas culturas onde se professa a mesma fé. Também, por esta razão, o problema não se resolve uma vez por todas, nem à base de leis ou de opiniões superiores, muito menos de grupos de pressão. Já é bom que se aceite que o problema da mulher não está por completo resolvido, embora o tempo não aceite muitas delongas.
Porém, o problema da mulher é mais grave na sociedade ocidental e em diversas culturas do mundo, suficientemente conhecidas. Como nos toca mais o que melhor conhecemos, olhemos para o nosso espaço geográfico e reflictamos a partir daí.
Ninguém pode negar que muitos passos se deram e estão dando a favor de um estatuto mais humano e justo da mulher. Estão à vista, se confrontados com séculos atrás. Porém, a visão redutora de uns, a pressão ideológica de outros, a deficiente leitura dos fenómenos sociais, a emancipação sociológica sem limites humanos, naturais e sociais, vêm provocando novos problemas e não ajudando a uma equilibrada solução dos antigos. Hoje, para os que se julgam pioneiros da inovação social, há duas classes de mulheres: as que deitam abaixo todas a barreiras, e essas são louvadas e apoiadas, e as que mantêm princípios e valores, teimam em ser interiormente livres ante as pressões de uma sociedade acrítica, e essas são julgadas como retrógradas e consideradas obstáculo à modernidade e seus postulados.
Não vi ninguém falar das esposas e mães que não abdicam de ser uma coisa e outra; das mulheres fecundas, espiritual e socialmente, dedicadas a causas a que dão vida; das jovens que, para viverem um ideal em que acreditam e poderem dar sentido à sua vida, têm de entrar na clandestinidade pessoal, porque, neste país democrático, professores, colegas e até familiares, põem a ridículo as suas legítimas opções e fazem tudo para desvirtuar os seus propósitos; das mulheres, transformadas em objectos diários de prazer de um machismo irresponsável, de gente importante ou que se julga tal; das que deixam tudo e partem para serem mães e irmãs em terras e missões difíceis onde o amor escasseia; das vítimas de leis que lhes tiram a palavra para a darem a prepotentes, que fazem da sua influência e dos seus interesses pessoais a sua força; das que são, pela sua oração e radicalidade de entrega a valores permanentes que não perdem cotação, os permanentes pára-raios de uma sociedade progressivamente extraviada…
E todas estas são mulheres. O Dia Mundial também lhes dizia respeito. Se as mulheres perdem a dimensão e a referência espiritual das suas vidas, a sociedade fica mais pobre, na família, no trabalho, na convivência… Quem as ajuda a ser mulheres, sempre e só mulheres.
António Marcelino

quinta-feira, 12 de março de 2009

IDOSOS, TEMA E REALIDADE HOJE MAIS ACTUAIS

O número de idosos aumenta na nossa sociedade e cresce a preocupação de realçar o seu valor e o seu contributo social. Chega-se mais depressa à aposentação, vive-se mais tempo, existem melhores condições para defender a saúde, multiplicam-se iniciativas estimulantes que fomentam o interesse pela aprendizagem e aumento da cultura, proporcionam-se tempos de lazer que antes eram impensáveis, conta-se com a gente mais idosa para muitas actividades de voluntariado, os avós voltaram a ocupar um lugar na família que parecia esquecido, publicam-se livros e artigos em revistas sobre eles. De figuras antes quase anónimas, os idosos passaram à ribalta das muitas atenções e preocupam-se com eles os políticos, as autarquias, as paróquias, o mundo da publicidade. Por razões diversas, é certo, mas a verdade é que se fala e se escreve sobre os idosos como nunca se havia feito. Há culturas onde os idosos são a expressão viva do património mais válido e mais significativo, os mestres por excelência, dado que, por vezes, mais se aprende com pessoas experientes e sábias, do que em livros eruditos. Há um mundo numeroso de idosos internados em lares. Embora estes tenham cada vez melhores condições para os acolher, a verdade é que escasseia, frequentemente, a presença da família e o carinho dos filhos, a que têm direito e que ninguém compensa. O ideal "Viver mais e melhor", título de um livro publicado há dois anos pela Editorial Presença, com o sub título "Uma longevidade activa na sociedade actual", ajuda a ver, a nível do corpo, do espírito e da sociedade, o caminho a seguir para que a vida dos idosos tenha mais sentido e qualidade. Muitas paróquias, que vão na vanguarda das soluções sociais, parece não terem ainda sentido a necessidade de uma pastoral concreta com os idosos e para eles, que os ajude a crescer espiritualmente, lhes dê dimensão apostólica, os integre na comunidade com a riqueza da sua experiência, a sabedoria dos anos vividos e das dificuldades superadas. Nasceu há décadas em França, e hoje está espalhado pelo mundo e que chegou já a diversas dioceses de Portugal, o "Movimento Vida Ascendente", que também se chama "Movimento Cristão de Reformados". O seu tripé é realista e aponta horizontes novos: Amizade, Espiritualidade, Apostolado. A estrutura não é complicada e adapta-se, sem dificuldade, à idade e à mentalidade dos seus membros. O realismo das comunidades cristãs não deixa que se menospreze ninguém que delas faz parte. Nem a atenção dos responsáveis lhes permite privilegiar apenas as crianças, os jovens ou os adultos, em fase de compromisso familiar ou profissional. Na Igreja, como na sociedade, os idosos são, também eles, protagonistas da sua história e da história do grupo ou da comunidade humana e cristã onde vivem e se inserem. Têm direito a serem ouvidos, a iniciativas que lhe dizem respeito, ao crescimento diário da sua vida e à participação nas actividades compatíveis da paróquia. Não escondo o incómodo ao ver nas festas de Natal e de Carnaval, os idosos como se fossem crianças, quando levados a participar, em palco, nas brincadeiras próprias do tempo. O que vestem e o modo como falam e representam não é o deles. Uma reflexão séria sobre o seu mundo e o mundo das suas possibilidades, levá-los-ia, por certo, a outros modos mais consentâneos e respeitadores de participar. O facto de haver hoje mais idosos, válidos, experientes e lúcidos, com capacidades, por todos reconhecidas, é um "sinal dos tempos" que necessita de leitura adequada e consequente. Se a Igreja acordar, ajudará outros a acordar também.
António Marcelino

sexta-feira, 6 de março de 2009

O TEMPO QUE PASSA E A MEMÓRIA QUE PERDURA

Alguém, já nem sei quem, escreveu que “uma pessoa só morre depois de morrerem todos aqueles que a conheceram”. É este um dizer de sabedoria normal, que faz com que perdure, para além do tempo e capaz de o vencer, a memória do coração. Aquela que sempre guarda, envolvidos em amor, os que fazem parte da mesma vida ou que partilharam os mesmos ideais. Como se fala hoje muito das doenças do coração e das suas consequências, vamos encontrando razões para perceber que também ele vai perdendo a memória e, deste modo, deixa morrer muita gente antes de ela se ter despedido de vez. É o mundo incontável dos não-amados, dos idosos a reclamar cuidados e a exigir despesas sem lucros, das vítimas, como tantas crianças, depressa esquecidas por decisões loucas. São ainda todos os que vivem do outro lado da barricada, se evitam na vida e a quem se pôs um rótulo definitivo de cariz politico, religioso ou qualquer outro, marcado pela desafeição, e de quem de diz, com normalidade, que é como tivessem já morrido…. No tempo actual tudo parece ter referência obrigatória ao económico e ao poder. Quem perdeu cotação nestes campos, põe-se simplesmente de lado ou já morreu. A menos que teime em contrariar, permanecendo vivo, para gáudio de uns e incómodo de outros. Ser incómodo, a qualquer título, hoje é um perigo. Os afectos, as emoções, a liberdade sem peias passaram a ser o mais poderoso fundamento das leis e das relações sociais. Estas vão-se encarregando de aliviar o terreno, para que nem os gerados não nascidos, porque “ainda não são gente”, nem os que já não merecem ser vivos, porque oneram o tesouro e roubam tempo aos apressados, incomodem cada vez manos quem quer ser livre de responsabilidades e, mais ainda, do pesado ónus de ter de amar e de respeitar. O amor, essa dívida nunca paga por quem dele beneficiou! Aqui, entra a memória do coração, grande teimoso que não deixa morrer nem quem já partiu Entra o espaço necessário da gratidão, o reduto sempre aberto do respeito e do apreço, o sentimento maravilhoso de quem diz “nunca morrerás porque eu te amo”. Entra a vida. Só os vivos fazem parte da história e dela continuam eternamente protagonistas. Aos que apenas se olham a si próprios e aos seus interesses, o tempo os leva consigo na onda do esquecimento. Aos que fazem do cuidado e do bem dos outros o seu caminho diário, a vida não os deixa morrer, nem esquecer. Redimem os tempos povoados de egoísmo, servem de estímulo aos que optaram por ser solidários e dar lugar aos outros, com gestos feitos de amor fraterno e de reconhecimento da sua dignidade. A memória apaga-se facilmente, por incómoda e desnecessária, se não é guardada por um coração que sente e persiste em ser lúcido e agradecido. Há pessoas que, da sua memória, resta a placa na rua. Põe-se-lhes, por debaixo, a indicação de quem foram, porque já ninguém os conheceu. Quase sempre homens da política, promovidos por correligionários. Poucas ruas com nome de mulheres. Outras pessoas, que podem nem ter nome nas ruas, serem até de terras, povos e línguas diferentes, os que viveram ontem e vivem hoje bem os conhecem. É o que se passa com quem viveu fazendo o bem, por ele soube dar sentido à história e à sua vida em sociedade. São esses os que nunca morrem. Sempre conhecidos de quem lhes está grato por uma vida que gerou vida, por um testemunho que anima a fazer igual caminho. O tempo apaga tudo, menos a memória do bem, a que o amor deu sentido. Com gestos de bem-fazer, é preciso dar memória ao coração, dar lugar aos que ninguém lho deu. Assim, vale a pena viver, se abre caminho ao alcance de todos, se dá sentido ao tempo. António Marcelino

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Que sentido para um debate "Prós e Contras"?

DEBATER NÃO É O MESMO QUE DIALOGAR
Debater não é o mesmo que dialogar. Quem debate quer vencer o outro. Quem dialoga quer enriquecer-se com a partilha e o contributo do outro. O debate tem claque a bater palmas. O diálogo não a tem, nem a quer. O debate dá-se bem com o barulho. O diálogo quer silêncio para pensar e interiorizar. Debate-se na praça pública, dialoga-se no deserto fecundo e fértil. No debate, opõem-se ideias e convicções. No diálogo, somam-se parcelas de verdade, para uma verdade maior e comum. No debate, extremam-se campos e sobem-se muros. No diálogo, abrem-se frechas por onde passe a luz e se possam dar as mãos, até se chegar, de vez, ao derrube de fronteiras. A vida de todos os dias mostra que é mais fácil debater do que dialogar, porque no debate se procuram louros e adeptos, ao passo que no diálogo se procura a união, para se usufruir um património que a todos pertence, mas que ninguém o tem por completo, nem o tem para si próprio. A sociedade caminha mais com o diálogo. Divide-se mais com o debate. O diálogo exige humildade e respeito por quem é diferente, condição indispensável numa sociedade plural. O debate tem raízes de suficiência e o outro é sempre um adversário a vencer ou a abater. Quando em gente diferente se contrapõe a vontade de dialogar com a vontade de vencer, o caminho comum torna-se impossível. Então, a vontade parece não ser mais de se ir em conjunto para onde todos se sintam bem, mas ir para um destino, onde alguns não têm lugar ou são rejeitados na coabitação com os diferentes. De vez enquanto, e segundo os temas, ouço o ”Prós e Contras”, àquela hora horrível que leva a pensar que se trata de um programa à segunda-feira para quem não trabalha na terça. É um programa com algum sentido para se poder apreciar a realidade da nossa sociedade, mas que não leva, normalmente, a outras conclusões. Cada um está na sua e procura impor a sua. Se aparece algum interveniente que julga que vai para dialogar, onde se respeite e seja respeitado, depressa se desilude e torna-se um rotulado, a quem se despreza ou se aplaude. Observar, até onde possa chegar o nosso olhar, as partes em debate ou que assistem ao mesmo, não difere da observação de um jogo de futebol com equipas em luta e claques de apoio a gritar a toda a hora, sem que o árbitro as possa calar. Mas futebol já temos que chegue. Nunca, e menos ainda em democracia, se podem canonizar opiniões, apreciar o valor das mesmas pela imposição do maior número ou pela frequência e tempo dos aplausos. A história desmonta serenamente os absolutismos pessoais e de grupos, as vitórias fictícias, o poder esmagador dos poderosos que acabam débeis, porque o tempo os foi fragilizando inexoravelmente. Por isso, ela é mestra de vida para os que lhe estão atentos e dela não recordam apenas datas, anedotas, páginas do seu agrado. O valor de um povo reside no respeito que cada um tem pelos outros, pelos valores culturais comuns, pelo que história de todos foi e vai ensinando. Donos absolutos, só à custa de um povo esmagado ou amordaçado. Seja nos debates televisivos, seja nos debates parlamentares, seja nas leis feitas de costas para o bem comum, seja na persistência em impor valores e substituir ou contrapor culturas, sem ver o que têm de válido para integrar ou de espúrio para pôr de lado. Se nem este juízo for claro, o caminho para discernir, com um contributo alargado e objectivo, será o do diálogo, não o do debate das ideias fixas e das razões que não aceitam outras. Não será já tempo de “Prós e Contras”, mesmo com o favor das audiências, se avaliar sobre se o seu contributo social é positivo ou negativo? Sobre se educa um povo, ou se vai cavando fossos em vez de lançar pontes? Sobre se o debate ali feito fomenta ou não a aprendizagem do diálogo, necessário ao país para poder ir mais além? António Marcelino