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sábado, 7 de março de 2009

SÃO PAULO E AS MULHERES

Nos casamentos, constato com satisfação que as noivas rejeitam como leitura da Missa um dos textos propostos, da Carta aos Efésios, atribuída a São Paulo. Diz assim: "As mulheres submetam-se aos seus maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher. Como a Igreja se submete a Cristo, assim as mulheres, aos maridos, em tudo." Na Carta aos Colossenses, também se lê: "Esposas, sede submissas aos maridos, como convém no Senhor." E na Primeira Carta a Timóteo: "A mulher receba a instrução em silêncio, com toda a submissão. Não permito à mulher que ensine, nem que exerça domínio sobre o homem, mas que se mantenha em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva." Na Primeira Carta aos Coríntios: "As mulheres estejam caladas nas assembleias, porque não lhes é permitido tomar a palavra e, como diz também a Lei, devem ser submissas." Aí estão os textos fundamentais a partir dos quais São Paulo foi julgado como misógino e responsável pela situação de submissão das mulheres na Igreja e na sociedade. No entanto, tornou-se hoje claro que este preconceito repressivo e negativo é injusto. Quando comparamos a imagem que Paulo tem da mulher com a dos seus contemporâneos, concluímos mesmo, como escreve Stephen Tomkins, que Paulo é dos "escritores mais liberais da Antiguidade e que dificilmente merece uma crítica tão dura". Na Grécia e em Roma, as mulheres não eram consideradas pessoas, não tendo, portanto, direitos. "Calar é a grande honra de uma mulher." Aristóteles escreveu que "o homem é por natureza superior e a mulher, inferior; ele domina e ela é dominada". Os homens judeus agradeciam diariamente a Deus não os ter criado mulher, e o testemunho de uma mulher não era aceite em tribunal. Lê-se no livro bíblico de Ben Sira: "Menos dano te causará a malvadez de um homem do que a bondade de uma mulher." São Paulo fez uma experiência avassaladora, que transformou, de raiz, a sua vida: Deus não abandonou à morte Jesus crucificado. Que vale um morto? Que vale um crucificado? Então, se Deus o ressuscitou, não foi pelas suas qualidades. Assim, Deus está do lado dos abandonados e excluídos e, portanto, todos valem diante dele. Paulo intuiu e experienciou a dignidade infinita do ser humano, seja quem for. Daí ter escrito esta palavra decisiva, na Carta aos Gálatas: "Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo." E tirou as conclusões práticas. Formou comunidades cristãs carismáticas. Reuniam-se em casa de um cristão para celebrar a Eucaristia. Quem presidia era o dono ou dona da casa, de tal modo que nada impede pensar que, no princípio, mulheres presidiram à celebração eucarística. O facto de Paulo se dirigir também a mulheres casadas com não cristãos indica que as recebia na comunidade enquanto autónomas, como os homens, independentemente dos maridos. No último capítulo da Carta aos Romanos, saúda 16 homens e 8 mulheres. Lá aparecem Febe, que "também é diaconisa na igreja de Cêncreas"; Priscila, "minha colaboradora"; Maria, "que tanto se afadigou por vós"; Trifena e Trifosa, "que se afadigam pelo Senhor"; "a minha querida Pérside, que tanto se afadigou pelo Senhor". Merece menção especial uma apóstola: Júnia, "tão notável entre os apóstolos". Do confronto destes textos, conclui-se que Paulo não pode ser acusado de misoginia. O que se passa é que das 13 cartas que lhe são atribuídas, ele só é autor de 7: Primeira aos Tessalonicenses, 2 aos Coríntios, aos Filipenses, a Filémon, aos Gálatas, aos Romanos. As outras 6 - aos Colossenses, aos Efésios, Segunda aos Tessalonicenses, 2 a Timóteo, a Tito - são pseudopaulinas, isto é, dependem da "escola paulina", mas ele não é o seu autor. Ora, os passos citados, exigindo a subordinação e o silêncio da mulher, pertencem às pseudopaulinas. Quanto ao passo da Primeira Carta aos Coríntios, aceita-se hoje que é uma interpolação posterior, pois só assim se percebe que antes refira "a mulher que reza e profetiza". O comportamento misógino e subordinado da mulher não se deve a Paulo, mas a outras lutas e influências.
Anselmo Borges In DN

sábado, 28 de fevereiro de 2009

AUTOCARROS ATEUS E CRISTÃOS

O slogan "Deus provavelmente não existe. Deixe, pois, de se preocupar e goze a vida", que tinha começado por percorrer Londres, chegou à Espanha, nomeadamente a Barcelona e a Madrid, devendo alcançar outras cidades espanholas.
Como já aqui escrevi, trata-se, antes de mais, de um acto de liberdade de expressão. No quadro do respeito pela lei, todos têm direito a manifestar as suas opiniões e crenças. Este direito é, evidentemente, extensivo aos ateus.
Depois, é interessante que no "cartaz" se leia: "provavelmente". Não se diz que não há Deus, diz--se que "provavelmente" não há. Isto significa que os autores dos cartazes perceberam que não podem demonstrar a não existência de Deus. A afirmação da existência de Deus ou da sua não existência não é objecto de ciência, pois não pode haver verificação empírica. O ateu não pode dizer que "sabe" que não há Deus; ele apenas pode dizer que "crê" que não há Deus. Como o crente também não "sabe" que Deus existe; ele "crê" que Deus existe.
E entende-se todo este movimento ateu, que deve obrigar os crentes a pensar. Não foram frequentemente os crentes que deram uma imagem de Deus que obrigava ao ateísmo? Não se deve ser ateu face a um Deus mesquinho e ridículo - pense-se, por exemplo, no criacionismo americano, segundo o qual os primeiros capítulos do Génesis devem ser tomados à letra -, invejoso da alegria dos humanos e impedindo a sua realização e felicidade?
É precisamente o que se dá a entender na segunda parte do slogan: "Deixe de se preocupar e goze a vida." Deus aparece como impedindo a alegria de viver, de tal modo que a probabilidade da sua não existência seria o pressuposto para finalmente se viver de modo expansivamente humano.
Isso deve levar os crentes a reflectir, pois, embora seja fonte de vida, de salvação e realização plena da existência, de facto, muitas vezes foi pregado um Deus que amesquinha a vida, um Deus incompatível com a ciência, um Deus vingativo - ele até apanharia os ateus no inferno... -, um Deus desgraçadamente invocado para legitimar o que é contra Deus: a violência, o terrorismo, a guerra.
Mas também é preciso perguntar aos autores dos cartazes: que entendem por "deixe de preocupar-se e goze a vida"? Seja como for, crentes e não crentes têm de viver com responsabilidade e empenhar-se na luta por uma vida boa e justa para todos.
O lema do cartaz programado para a Itália pela União de Ateus e Agnósticos Racionalistas seria: "A má notícia é que Deus não existe. A boa é que não é preciso."Parece que foi impedido pelas autoridades. Lamentavelmente, pois esta publicidade dos autocarros ateus obriga toda a gente a pensar e é bom e urgente pensar no mais importante. O pior é não pensar, não se interrogar. A pergunta por Deus, seja para afirmá-lo seja para negá-lo, é a pergunta maior e é mesmo o fundamento da dignidade humana. O ser humano é digno, porque pode perguntar pelo Infinito.
Mas, afinal, Deus não é preciso? Também o crente reconhece que Deus não pode ser um tapa-buracos, a compensação para a nossa ignorância e impotência, a legitimação ideológica da ordem social e política ou a chave de abóbada de um sistema.
De qualquer modo, Deus tem a ver com o sentido último e a salvação. Foi talvez neste quadro que Nietzsche, sete anos antes de enlouquecer, escreveu a Ida, mulher do amigo F. Overbeck, pedindo-lhe que não abandonasse a ideia de Deus: "Eu abandonei-a, não posso nem quero voltar atrás, desmorono-me continuamente, mas isso não me importa." Como escreveu Wittgenstein, "crer num Deus quer dizer compreender a questão do sentido da vida, ver que os factos do mundo não são, portanto, tudo. Crer em Deus quer dizer que a vida tem um sentido".
Nas ruas de Madrid, compareceram também autocarros cristãos: "Deus existe. Desfruta a vida em Cristo." Claro que há esse direito. Mas seria lamentável uma "guerra" de cartazes. Os crentes devem sobretudo testemunhar Deus pela vida, pela combate a favor da justiça, pelo amor. E é também fundamental uma pastoral da inteligência, no diálogo entre a fé e a razão.
Anselmo Borges
In DN

sábado, 21 de fevereiro de 2009

COMO RECONHECER DEUS?

Há relativamente pouco tempo, coloquei esta pergunta a um grupo de crentes: "Se Deus lhe aparecesse, dizendo 'aqui estou, sou eu o Deus', como o reconheceria?" As respostas, no meio de imensa perplexidade, foram muito interessantes. Que Deus não pode aparecer directamente. Que ninguém, como diz a Bíblia, pode ver Deus. Que Deus é inobjectivável. Que se manifesta indirectamente: nas pessoas, nos acontecimentos, no esplendor da beleza - aqui, recordei a exclamação de uma sobrinha minha com 11 anos, nos Alpes, numa tarde irradiante de Sol sobre a neve e as montanhas todas à volta: "Parece Deus!" Que, para os cristãos, Jesus é a revelação de Deus. Que a experiência de Deus se dá nas experiências-cume de plenitude. Que lhe pediriam um milagre claro, que se visse e o credenciasse. Ele devia manifestar o seu poder. Quando se fala de Deus, a questão nuclear é saber de que Deus é que se fala. Que se quer dizer quando se diz Deus? O mais comum é associar Deus ao poder. Deus deve ser, antes de mais, a omnipotência. Deus deve ser infinitamente bom e poderoso, mas sobretudo poderoso. No entanto, a mística Simone Weil, cujo centenário do nascimento se celebra este ano, preveniu: "A Verdade essencial é que Deus é o Bem. Ele só é a omnipotência por acréscimo." Por isso, "é falsa toda a concepção de Deus incompatível com um movimento de caridade pura". Afinal, a revelação de Cristo é essa: Deus é puro amor. O escândalo: "Eu não vim para ser servido, mas para servir." Não se nega a omnipotência divina. O Poder de Deus, porém, não é Dominação e Espectáculo, mas Força infinita criadora. O Deus de Jesus é o Deus- amor, o Deus-origem-infinita-pessoal-criadora. A modernidade, pela secularização, quis herdar a omnipotência divina, postergando a bondade. A crise que está aí hoje visível no universo económico-financeiro é mais funda, pois é uma crise de civilização, cuja raiz é esta herança religiosa. Neste contexto, referindo-se à Igreja, o teólogo X. Pikaza recria de modo alegórico o passo evangélico da cura da sogra de Pedro. Na alegoria, a sogra de Pedro é a Cúria Romana. Jesus chega e cura-a. E depois, alegoricamente? A Cúria (sogra), que significa casa, corte do Kyrios ou Senhor, estava doente. A casa de Pedro é o Vaticano, um Estado, e quem manda é a Cúria, como ainda recentemente se mostrou no caso dos lefebreveanos. Não protege o Papa, mas impõe-se a ele. Ela "sofre de inércia, de poder". Jesus cura a Cúria para que, como a sogra de Pedro, se ponha a servir os outros. Que consequências teria a cura da Cúria Romana, que funciona há dez séculos enquanto os Pedros (Papas) vão mudando? Como Jesus, que, segundo o Evangelho, cura as pessoas diante da casa de Pedro, a Cúria curada veria gente que viria para curar-se. Sobretudo gente mais pobre e perdida (os "endemoninhados", os doentes). Agora também lá vão muitos, mas "vão curar-se ou em busca de prebendas?" Ainda segundo o Evangelho, Jesus saiu de noite, para rezar e ir ao encontro das pessoas também noutros lugares. Na alegoria, Jesus parte porque não quer ficar fechado na casa de Pedro. Jesus não tem "Cúria". Também Pedro e os funcionários da Cúria têm de sair da sua casa, da Cúria, para ir à procura de Jesus, conhecer o mundo e cuidar dele. A Igreja está em crise e precisa de conversão. Neste sentido, há 15 dias, a propósito da "falta de vocações", o director do DN, num texto subordinado ao título "Os erros da Igreja", exemplificados nos escândalos dos padres pedófilos, a intransigência quanto aos métodos de planeamento familiar, "declarações absolutamente estúpidas" como as do bispo Williamson a negar o Holocausto, alguns investimentos dúbios no plano dos negócios, escrevia que o resultado é que "a religião vai desconfiando dos seus missionários e o ambiente não aconselha a 'vocação'". E João Marcelino concluía: "Um dia pagaremos bem caro a crescente desagregação desse factor de união ocidental, bem patente sobretudo na Igreja Católica mas que também afecta todo os ramos do cristianismo." Anselmo Borges, in DN

sábado, 14 de fevereiro de 2009

BENTO XVI E OBAMA

Já uma vez aqui referi que há anos, na Suíça, fui a Ecône visitar o Seminário da Fraternidade S. Pio X, fundado pelo arcebispo dissidente Marcel Lefebvre. Após uma longa conversa com um padre, aliás simpático, da Fraternidade, tornou-se claro para mim que o problema era muito mais complicado do que propriamente a Missa em latim. O núcleo da questão era o Concílio Vaticano II e a revolução operada em problemáticas fundamentais, como a liberdade religiosa, os direitos humanos, o ecumenismo, o diálogo inter-religioso. Os recentes acontecimentos vieram confirmar essa minha convicção. Em 1988, Lefebvre tinha sido objecto de excomunhão pelo Papa João Paulo II por ter ordenado, sem autorização da Santa Sé, quatro bispos, também eles automaticamente excomungados. Numa estratégia de cedências, o Papa Bento XVI foi dando passos de aproximação à Fraternidade. Assim, logo em 2005, recebeu o líder, bispo Bernard Fellay. Em 2007, autorizou a celebração da Missa em latim segundo o rito tridentino. Tudo culminou com a assinatura do decreto de reintegração dos quatro bispos na Igreja, divulgado no essencial no dia 21 de Janeiro e publicado no dia 24. Quando se pensava que se chegaria ao termo do cisma, rebentou a bomba. As declarações do bispo Richard Williamson em entrevista à televisão pública sueca, negando o Holocausto, provocaram, como não podia deixar de ser, um terramoto: "Creio que não houve câmaras de gás. Penso que 200 a 300 mil judeus pereceram nos campos de concentração, mas nem um só nas câmaras de gás", que serviriam apenas para desinfecção. Ergueram-se protestos veementes de bispos e cardeais, de judeus também e ao mais alto nível, podendo ficar em causa a própria visita anunciada de Bento XVI a Israel. A chanceler alemã, Angela Merkel, interveio, exigindo explicações. O próprio Papa, por desejo expresso da chanceler, telefonou-lhe, pronunciando-se com toda a clareza contra o negacionismo. Mas os estragos estavam feitos. Só a título de exemplo: segundo uma sondagem do Emnid, 67% dos católicos alemães pensam que o Papa alemão causou danos à imagem da Igreja, pedindo 56%, entre eles o presidente da Conferência Episcopal, R. Zöllitsch, que Williamson, que ainda se não retractou, volte a ser excomungado. Teme-se que muitos católicos na Alemanha abandonem a Igreja Católica. Perante o escândalo, há quem ponha em dúvida a autoridade moral do Papa para a continuação na direcção da Igreja. Afinal, para lá dos erros de gestão na condução do processo, reconhecidos pelo Vaticano, o nervo da questão foi a atitude tíbia e dúbia na exigência aos integristas do reconhecimento pleno do Concílio Vaticano II. Note-se a coincidência de datas, quando se pensa que precisamente no dia 25 de Janeiro se celebrava o cinquentenário do anúncio por João XXIII da convocação de um Concílio ecuménico, precisamente o Vaticano II. Afinal, qual é o lugar primeiro da comunhão na Igreja: a obediência formal ao Papa ou o respeito real pela História e a memória das vítimas, pelos direitos humanos, pela liberdade religiosa, pelo diálogo inter-religioso? Talvez mal aconselhado ou porque a Cúria lhe sonegou informação, Bento XVI acabou, de qualquer forma, por provocar um incêndio que contribui para maior descredibilização da Igreja. Neste contexto, o teólogo Hans Küng, pensando em Obama que, após Bush, abriu os Estados Unidos e o mundo a uma nova esperança, reconhece que na Igreja Católica as coisas são diferentes, "vendo muitos o Papa Bento XVI como outro Bush". Ora, o que faria um Papa, se agisse com o espírito de Obama, pergunta Küng? Afirmaria que a Igreja se encontra numa "crise profunda". Avançaria com uma nova esperança para uma Igreja renovada, com um ecumenismo revitalizado, diálogo com as religiões mundiais, uma avaliação positiva da ciência moderna. Rodear-se-ia dos mais competentes, mentes independentes, e não de yes-men. Iniciaria imediatamente por decreto as medidas reformadoras mais importantes e "convocaria um Concílio Ecuménico para promover uma mudança de rumo". Anselmo Borges

sábado, 7 de fevereiro de 2009

MARX CONTRA MARX

Muro de Berlim
Foi no contexto da queda do muro de Berlim, em 1989, que F. Fukuyama publicou, em 1992, a obra famosa O Fim da História, segundo a qual, depois do fim da União Soviética e a libertação dos países satélites, por causa da falência do comunismo, a democracia liberal e a economia de mercado se imporiam por si ao mundo inteiro. Mas, em 2008, outro politólogo americano, R. Kagan, escreveu também um livro, mas com o título: O Regresso da História e o Fim dos Sonhos. Fukuyama enganou-se. O fim da História não se impôs com a democracia e a economia de mercado. O terrorismo global é ameaça constante. "No domínio da economia, não vivemos propriamente a difusão do bem-estar geral; pelo contrário, o abismo entre ricos e pobres no mundo é mais fundo do que nunca", escreve Reinhard Marx, arcebispo de Munique e autor do best- seller com o mesmo título do do seu homónimo: Das Kapital (O Capital). Mil milhões de pessoas dispõem de apenas um dólar por dia. Mais de 850 milhões passam fome. Morrem por dia umas 24 mil em consequência da subnutrição. Há quem pense que Karl Marx tinha razão. Reinhard Marx, porém, reconhece que o capitalismo está hoje sob pressão de justificação, mas recusa o marxismo. De facto, a História mostrou-nos como foi terrífica a Revolução de Outubro de 1917, ao mergulhar muitos milhões de pessoas na noite mais escura. "Isso nunca mais se pode repetir." Então, quando se considera a presente crise, de consequências imprevisíveis, se se quiser evitar a tentação marxista e as barricadas da revolução, não se pode continuar a caminhar no sentido da absolutização do capital e dos seus interesses. "Eu defendo a propriedade e os direitos dos proprietários", mas o capital não pode ser o bezerro de ouro à volta do qual todos dançam. "O trabalho e os trabalhadores têm primazia sobre o capital." A dignidade da pessoa humana tem de ocupar o lugar central. A economia não é fim em si mesma, pois tem de estar ao serviço das pessoas. O que a crise financeira internacional de 2008 nos veio mostrar de modo absolutamente claro é que nos precipitamos para o abismo, quando "se excluem do mercado a moral e a ética e se pensa que se pode renunciar a uma ordem política do Estado que mantenha os movimentos do mercado dentro de regras ao serviço do bem comum". O Estado social não pode ser algo apenas remanescente, após bons negócios. "O Estado social é uma condição necessária, não só moral, mas também política e económica, para a manutenção da economia de mercado." É preciso distinguir entre capitalismo e economia de mercado. Se os interesses do capital continuarem a ser a única orientação para a economia, então pessoas esmagadas por essa trituradora serão tentadas a refugiar-se nas utopias marxistas. Para evitar a tentação, é necessário lutar por uma economia de mercado que dê espaço a "uma solidariedade institucionalizada num Estado social que funcione, e que funcione na perspectiva do 'bem-estar mundial'". O célebre Prémio Nobel de Economia J. Stiglitz descreveu a ambivalência da globalização em duas obras: As Sombras da Globalização, em 2002, a que se seguiu, em 2006, As Chances da Globalização. Seja como for, a globalização é um facto e, por isso, o bispo Marx, ao falar na necessidade de novas regras para o capitalismo, refere a exigência moral de uma solidariedade global, que é "também um mandamento da inteligência política". Precisamos de uma economia global, social e ecológica, de mercado. Na sua obra, o bispo concretiza exigências. Dado o vínculo entre a pobreza material e a pobreza de formação, impõe-se o acento na educação e na formação: "A tentação de combater a pobreza apenas com dinheiro não teve sucesso." "A democracia precisa de virtudes", e isso significa, por exemplo, limite para os rendimentos dos executivos e que os políticos têm de decidir em função do bem comum e não dos interesses de determinadas empresas a eles ligados. É necessária uma nova ordem política mundial, tendo-se imposto o conceito Global Governance, para criar um novo sistema de instituições e regras no contexto dos desafios globais. Anselmo Borges Nota: Sobre o mais recente livro de Anselmo Borges, “Janela do (In)Finito”, leia aqui.

sábado, 31 de janeiro de 2009

SIMONE WEIL: FILÓSOFA E MÍSTICA

SIMONE WEIL: FILÓSOFA E MÍSTICA
Faria 100 anos na próxima terça-feira. Nasceu no dia 3 de Fevereiro de 1909, mas morreu jovem, com 34 anos apenas. Chamava-se Simone Weil, e era de ascendência judaica. Figura complexa, filósofa de formação - as Obras Completas, na Gallimard, completarão sete volumes -, professora de Filosofia, viveu intensamente os dramas da primeira metade do século XX. No seu número de Janeiro, Philosophie Magazine consagrou-lhe um dossier, sublinhando "a originalidade" da sua filosofia, na confluência articulada de experiência real, reflexão e acção. Aí se relata como a foram encontrar, com 11 anos apenas, no meio de uma manifestação de grevistas no boulevard Saint-Germain. Simone de Beauvoir refere nas suas Memórias um encontro na Sorbonne: Weil jura apenas pela Revolução que "daria de comer a toda a gente" e a Beauvoir, que sustenta que o verdadeiro problema é o de "encontrar um sentido" para a existência", replica: "Vê-se bem que nunca passaste fome!" Para perceber a alienação dos operários, tornou-se ela própria operária e sindicalizou-se: "Enquanto nos não tivermos colocado do lado dos oprimidos, para sentir com eles, não se pode tomar consciência." Esgotada pela incapacidade de seguir a cadência infernal da produção, dirá que aí "o pensamento se encarquilha como a carne diante do bisturi". Visionária, viu claramente que a libertação não viria nem do fascismo nem do comunismo, abstracções "ávidas de sangue humano" que remetem para "duas concepções políticas e sociais quase idênticas". Denunciou a exploração da classe operária e o colonialismo, mas manteve-se crítica face ao comunismo. Pôs-se ao lado da Resistência, reivindicando "uma forma de ofensiva", mas excluindo a violência das armas. Comprometida com a liberdade e a libertação, manteve-se distante dos partidos políticos e da Igreja. Sobre os partidos escreveu que se trata de "organismos, publicamente, oficialmente constituídos de modo a matar nas almas o sentido da verdade e da justiça". Quanto à Igreja, temia a sua intolerância. Ficou, pois, à porta, pensando que a sua vocação era permanecer "cristã fora da Igreja". Embora educada no agnosticismo, viveu intensamente à "espera de Deus". Deus não deve ser tanto procurado como esperado como graça. Essa graça consiste em "morrer para si mesmo", ser "des-criado" e depois "re-criado" em Deus. Nesta espera, foi determinante uma experiência em Portugal em 1935, na Póvoa de Varzim. Ela que sabia o que era o sofrimento, assistindo a uma procissão em honra da padroeira, com velas e cânticos de uma tristeza pungente - "Eu nunca escutei nada mais pungente" -, teve repentinamente "a certeza de que o cristianismo é por excelência a religião dos escravos, que os escravos não podem não aderir a ele, e eu também". Fui reler a sua obra Carta a um Homem Religioso, onde levanta a lista dos obstáculos que a mantiveram fora da Igreja. Tudo se resume nesta afirmação: "A Verdade essencial é que Deus é o Bem. Ele só é a omnipotência por acréscimo." Por isso, "é falsa toda a concepção de Deus incompatível com um movimento de caridade pura. Todas as outras são verdadeiras, em graus diferentes". Os únicos milagres são os do amor, de tal modo que "Hitler poderia morrer e ressuscitar 50 vezes que eu não o veria nunca como filho de Deus". "A forma de pensar de Cristo era a de que devíamos reconhecê-lo como santo porque ele fazia o bem perpétua e exclusivamente." A Igreja centrou-se no dogma, que levou ao anátema e, assim, "estabeleceu um início de totalitarismo". "Os partidos totalitários formaram-se devido ao efeito de um mecanismo análogo ao da fórmula anathema sit. Esta fórmula e o seu uso impedem a Igreja de ser católica, a não ser de nome." A parábola do bom Samaritano "deveria ter ensinado a Igreja a nunca mais excomungar quem quer que fosse que praticasse o amor ao próximo". Só o amor salva: "Qualquer pessoa que seja capaz de um gesto de compaixão pura para com um infeliz (coisa, aliás, muito rara) possui, talvez implicitamente mas sempre realmente, o amor de Deus e a fé." Anselmo Borges, in DN

sábado, 24 de janeiro de 2009

ÉTICA E RELIGIÃO NA ECONOMIA

Perante o estrondo da crise financeira, que está a chegar, avassaladora, à economia real, há da parte de muitos um enorme apelo à ética e aos valores na finança, na empresa e na economia em geral. Há vantagens nisso, como diz Josef Wieland, professor de Ética: os valores éticos trazem enormes bens à empresa, como, por exemplo, a segurança jurídica; "a reputação da empresa aumenta e ela acaba por receber os melhores e mais motivados colaboradores". É preciso ter em conta que a corrupção vai recuar e "as regras éticas defendem em todo o mundo os empresários da prisão". Não é por acaso que são esperados quatro mil participantes no sexto congresso cristão de empresários e gestores, que se realiza em Düsseldorf, Alemanha, de 26 a 28 de Fevereiro próximo, sob o lema Avançar para a Chefia com Valores. Isto não significa de modo nenhum que a ética empresarial seja um exclusivo dos crentes, mas a fé tem de ter influência no mundo dos negócios. Na Alemanha, 66% dos empresários dizem acreditar pessoalmente em Deus e, segundo impulse, revista para empresários, no seu número de Janeiro, a união de empresários católicos atingiu o número histórico de mais de 1200 membros e, no caso dos empresários protestantes, o número multiplicou-se em poucos anos por dez, sendo agora 600. Segundo uma sondagem da Forsa, as normas éticas e morais desempenham um grande papel para 50% dos empresários alemães, sendo interessante verificar que essa normas são mais importantes para os empresários protestantes (58%) do que para os católicos (47%). Segundo a mesma sondagem, da fé derivam deveres: responsabilidade pelos trabalhadores (71%), sinceridade, justiça, lealdade (31%), decisões socialmente compatíveis (18%) e há limites morais para o rendimento pessoal: católicos (62%), protestantes (42%), sem confissão religiosa (56%), empresários em geral (52%). Haverá contradição entre a fé em Deus e a maximização do lucro? Os crentes em geral respondem: sim (28%), não (68%). Os passos da Bíblia mais citados pelos empresários crentes são: "ama o teu próximo como a ti mesmo", "o Senhor é o meu pastor" e os dez mandamentos. Segundo o bispo Wolfgang Huber, presidente do Conselho da Igreja Evangélica na Alemanha, a maximização do lucro e o amor do próximo podem ser compatíveis: "a Igreja não é estranha à realidade". A responsabilidade económica precisa de ter os pés assentes na terra e a proximidade ao Homem. A presente crise financeira não pôs em causa a economia social de mercado. De qualquer forma, o sistema desequilibrou-se e é preciso corrigi-lo. Quanto à justiça, há um critério importante: "As diferenças na sociedade devem estabelecer-se de tal modo que também as pessoas que se encontram no fundo da escala possam estar convencidas de que o sistema em geral é justo e lhes é favorável também a elas." Dos debates tensos de Gerd Kühlhorn com os empresários para impulse, resultaram dez mandamentos para os empresários cristãos, que "talvez sejam um pouco simples, mas certamente mais claros do que todos os fanfarronantes Codes of Conduct". Aqui ficam:1. Trata dos negócios de tal modo que a tua empresa tenha um bom lucro. 2. Sê justo com os teus parceiros de negócio. 3. Mostra estima pelos teus colaboradores. 4. Faz negócios prospectivamente e assegura o futuro da tua empresa. 5. Procura parceiros que como tu acreditem em Deus. 6. Cultiva a humildade. 7. Coloca os teus talentos e recursos ao serviço dos outros. 8. Não te percas no trabalho. 9. Reconhece que a tua empresa não te pertence a ti, mas a Deus. 10. Respeita todos os que não partilham a tua fé. No fundo, como diz o bispo W. Huber, encontramo-nos num "ponto de viragem". A confiança é "um capital tão importante para a economia como o dinheiro". Por isso, é preciso que os empresários estabeleçam "um equilíbrio entre a eficiência económica e as consequências sociais do negócio empresarial". Afinal, a economia não é fim em si mesma, pois é o Homem que tem de ocupar o centro. Daí, como lembrou Martin Buber, o sucesso não ser "um dos nomes de Deus". A solidariedade, sim. Anselmo Borges, in DN

sábado, 17 de janeiro de 2009

A MAIOR RIQUEZA: SEMELHANTES

Há algo essencial que aqueles que quereriam imortalizar-se, mediante a clonagem, esquecem: mesmo os clones, quando dissessem "eu", di-lo-iam de modo único e intransferível. Não é isso, aliás, o que acontece com o gémeos verdadeiros? De facto, cada um de nós é sempre o resultado de uma herança genética e de uma história única, história com cultura. Nenhum de nós é sem o outro, sem outros. Sem tu, não há eu. Fazemo-nos uns aos outros em interacção. Só com outros seres humanos nos tornamos humanos. A nossa identidade é constitutivamente atravessada e mediada pela alteridade, concretizada em outros. Ora, não havendo outros sem a interpenetração de biologia e cultura, é inevitável o diálogo intercultural. O encontro com o outro acontece sempre no quadro da cultura, porque não há outro "puro", sem cultura. Assim, na presente situação do mundo, em contexto de multiculturalismo, não basta a mera junção de culturas, vivendo umas ao lado das outras e respeitando-se mutuamente. É preciso passar do multiculturalismo da justaposição ao pluralismo cultural interactivo, deixando-se desafiar por uma identidade interrogativamente aberta. Neste quadro, há hoje a tendência para valorizar sobretudo a diferença: é a diferença que nos enriquece, diz-se. Quem pode pôr essa afirmação em dúvida, quando se percebeu que a identidade é atravessada pela alteridade? No entanto, se podemos entender-nos, é porque somos fundamentalmente iguais. Como recordava recentemente, em Santa Maria da Feira, num debate sobre o diálogo intercultural, o filósofo Fernando Savater, a semelhança entre os seres humanos é que cria a riqueza e funda a humanidade. Reconhecemo-nos, porque somos semelhantes. Só porque o fundamental é a nossa semelhança é que há igualdade de direitos e só porque não há diferença de direitos fundamentais é que há o direito à diferença. Afinal, "não há ninguém tão convencido da diferença como um racista". Claro que, no encontro com o outro, nunca se pode esquecer que o outro é um outro eu e ao mesmo tempo um eu outro, de tal modo que nunca nenhum de nós saberá o que é e como é ser outro enquanto outro, eu outro. Mas o que mais nos interessa é a semelhança, pois, nas diferenças, somos todos humanos, reconhecendo-nos. Se me perguntam pelo fundamento último da dignidade humana, digo que é a nossa comum capacidade de perguntar. O que nos reúne é uma pergunta inconstruível, sem limites, que tem na raiz o infinito e nele desemboca, sendo as culturas tentativas de formulá-la e perspectivar respostas. Aqui, assenta a convivência fraterna e digna da Humanidade, reconhecendo todos como humanos. Mas, como também lembrou Savater, inimigos maiores desta convivência são a pobreza e a ignorância. Rejeitamos os pobres, porque metem medo: nada nos dão e obrigam-nos a dar. A ignorância é outra fonte de susto: quando se não reconhece a semelhança, teme-se o diferente. Aí está, pois, a urgência da solidariedade, assente no reconhecimento da semelhança. Nesta solidariedade, justiça e caridade têm de abraçar-se. Sobre este abraço, Bertolt Brecht, o famoso escritor marxista, que lia a Bíblia, escreveu estes versos inultrapassáveis: "Contaram-me que em Nova Iorque,/na esquina da rua vinte e seis com a Broadway,/nos meses de Inverno, há um homem todas as noites/que, suplicando aos transeuntes,/procura um refúgio para os desamparados que ali se reúnem.//Não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores./Não é este o modo de encurtar a era da exploração./No entanto, alguns seres humanos têm cama por uma noite./Durante toda uma noite estão resguardados do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua.//Não abandones o livro que to diz, Homem./Alguns seres humanos têm cama por uma noite, / durante toda uma noite estão resguardados do vento / e a neve que lhes estava destinada cai na rua. / Mas não é assim que se muda o mundo, / as relações entre os seres humanos não se tornam melhores. /Não é este o modo de encurtar a era da exploração." Anselmo Borges,
In DN

sábado, 10 de janeiro de 2009

MARX ESCREVE A MARX

De passagem pelo aeroporto de Colónia, lá estava. Lançado nos finais de Outubro, é best-seller há semanas. Estou a referir-me ao livro Das Kapital ("O Capital"), de Marx - desta vez, porém, não Karl Marx, mas Reinhard Marx, arcebispo de Munique. Ele foi professor de Ética Social Cristã e, antes de chegar a Munique, passou seis anos como bispo auxiliar de Trier, a cidade na qual Marx, o Karl, passou a meninice e a juventude e conheceu a sua futura mulher, Jenny. Reinhard Marx abre com uma carta ao seu homónimo, esperando que, após a morte, tenha verificado que se enganou quanto à não existência de Deus e, assim, possa ser mais benevolente para com um homem da Igreja. O diálogo pode ser frutífero, pois consta que, pouco antes de morrer, terá dito: "Só sei que não sou 'marxista'." Karl Marx enganou-se, quando pensou que o seu programa se podia resumir na "abolição da propriedade privada". Também não se realizou, no conflito entre o trabalho e o capital - concretamente na Alemanha e outros países industrializados -, o seu vaticínio de uma revolução radical. Contra as suas previsões, a revolução acabou por ter lugar onde não devia: a Rússia. Mediante contratos sociais de trabalho, sindicatos activos, toda uma regulação sócio-jurídica e a participação dos trabalhadores, criou-se uma sociedade na qual estes passaram de vítimas do sistema de mercado a participantes dos seus sucessos. "Pareceu possível o bem-estar para todos", a ponto de o próprio J. Habermas ter escrito: "O designado portador de uma futura revolução socialista, o proletariado, dissolveu-se enquanto proletariado." Mas isto foi uma ilha com sol de pouca dura. Com a globalização, as novas possibilidades de troca de informações, bens e serviços a nível global tornaram o antigo conflito indiscutivelmente favorável ao capital, tanto mais quanto, como disse Manuel Castells, na actual sociedade em rede, está em vigor a fórmula: "O capital é essencialmente global, o trabalho é em geral local." Aumentam assim as possibilidades dos investidores e especuladores. O lema é: "Demolição do Estado social e desregulação." O abismo entre ricos e pobres é cada vez mais fundo no mundo e nos países. Mais de 2, 5 mil milhões de pessoas têm de viver com menos de dois dólares por dia, mas há mil milhões em pobreza extrema, pois têm de sobreviver (?) com menos de um dólar. Mais de metade da riqueza mundial está nas mãos de dois por cento da Humanidade. Parece que Marx tinha razão quanto à sua tese da acumulação e concentração progressivas do capital. De facto, de ano para ano sobe o número dos super-ricos. E a crise financeira internacional veio mostrar a força com que "já hoje o capital anónimo determina o nosso destino". Os bancos e os fundos com as suas especulações deitaram a perder milhares de milhões. Mas, agora, depois de tanto se ter propagandeado a necessidade de o Estado se não intrometer no mercado, "tem de ser o contribuinte a responder pelas perdas especulativas". "Os lucros são privatizados e as perdas, socializadas." Será a História a dar razão a Marx? O capitalismo vai afundar-se por si próprio? Responde o bispo Marx: "Dr. Marx, espero que não. E por várias razões." Ele sabe que não foi o seu homónimo, mas os seus discípulos bolchevistas a pôr em marcha o comunismo soviético. Mas o que é facto é que o programa da socialização dos meios de produção levou à estatização, desembocando numa ditadura política, por vezes totalitária. É necessário distinguir entre um capitalismo sem limites e uma economia social de mercado. Um "capitalismo primitivo" é injusto, contra a pessoa, e, por isso, não aceitável. Mas um capitalismo enquadrado politicamente, no sentido de uma economia social de mercado, foi "o único caminho correcto, e este caminho continua hoje sem alternativa razoável". Há uma pergunta que preside ao livro: as pessoas são para o capital ou o capital deve estar ao serviço das pessoas? A resposta é: "Um capitalismo sem humanitariedade, solidariedade e justiça não tem moral nem futuro." Anselmo Borges

sábado, 3 de janeiro de 2009

PROVIDÊNCIA E ECONOMICÍDIO

Antes, era a Providência divina. Deus, no seu saber, bondade e poder infinitos, governa o mundo, e a Humanidade está sob a sua protecção. Mesmo quando a dor, a desgraça e a morte se abatem sobre os seres humanos, deve-se conAlinhar à esquerdafiar, pois Deus tudo dirige segundo o seu desígnio. Aliás, Leibniz escreveu a sua Teodiceia precisamente para, como diz a própria palavra, justificar Deus perante a razão, por causa do mal do mundo. A justificação é: sendo Deus omnisciente, omnipotente e infinitamente bom, este é o melhor dos mundos possíveis. Hegel de algum modo secularizou a teodiceia, substituindo-a pela historiodiceia: a História autojustifica-se, pois ela é a manifestação e realização do Espírito Absoluto no seu autodesenvolvimento dialéctico, a caminho da plena autoconsciência. A negatividade é momento do processo e a "astúcia da Razão" consiste em colocar mesmo o particular e negativo ao seu serviço. Se a historiodiceia toma o lugar da teodiceia, a Razão na sua astúcia substitui a Providência. Na economia, a teodiceia e a historiodiceia são substituídas pela mercadodiceia - o mercado justifica-se a si mesmo. Entregue livremente a si próprio, o mercado fará com que, apesar de cada um procurar o seu interesse, tudo convirja para o maior bem de todos. Nele, habita a Providência, agora com o nome de "mão invisível", como disse Adam Smith. Mas Kant chamou a atenção para o "falhanço" da teodiceia: como pode a razão finita justificar Deus? A "astúcia da Razão" não é suficientemente forte para assumir as negatividades improdutivas. Quanto à "mão invisível", deixou mesmo de se ver. Quem tinha dúvidas esbarrou agora com a evidência. O antigo presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos Alan Greenspan recuou na fé de 40 anos: "Cometi um erro ao confiar que o mercado livre pode regular-se a si próprio sem a supervisão da Administração." A crise está aí, imensa, imprevisível. Começou com o sistema financeiro e está a chegar, à maneira de tsunami, à economia real, e teme-se um economicídio. Agora que o mundo do negócio se afunda, é tempo de parar no ócio - quantos se lembram que a palavra escola vem do grego scholê, que significa ócio, não no sentido de preguiça, mas de liberdade para pensar? -, precisamente para pensar. Quando se pensa, percebe-se que afinal não há alternativa à economia de mercado, mas ela tem de ser economia social e ecológica de mercado, acentuando os dois adjectivos: social e ecológica. Economia quer dizer etimologicamente lei da casa; ora, a casa tem de ser a casa de todos e para todos e a casa é o planeta Terra, que é obrigatório preservar. Quando se pensa, vê-se claramente a urgência de apelar para a necessidade da regulação e da ética no universo da finança e da economia. Ética - mais uma vez, segundo o étimo grego - tem a ver com o comportamento que se deve ter para habitar a casa comum. Quando se pensa, espera-se que a justiça funcione. De facto, houve incompetência, aventuras especulativas irresponsáveis e também se fala em corrupção e crimes vários. Sem justiça, como repor crédito e confiança no sistema? Problema maior: quantos acreditam e confiam real e verdadeiramente na justiça em Portugal? Pensando bem, precisamos de distribuição mais justa da riqueza - não se lia há dias no DN que "os rendimentos dos presidentes executivos das 50 maiores empresas europeias equivalem a 441 salários mínimos da Zona Euro"? Não continua também entre nós a cavar-se cada vez mais fundo o abismo entre a ostentação obscena da riqueza e a iniquidade cruel da pobreza? Quando se pensa a fundo, talvez se conclua que é tempo de pôr mais o acento na cultura do ser do que na cultura do ter. E não será urgente viver com mais moderação - de mederi, donde vem também meditação e medicina?E torna-se absolutamente claro que está aí o tempo da solidariedade. Se não for por humanidade, ao menos por egoísmo esclarecido. De facto, a acumulação sucessiva de frustração, impotência, fome, degradação, injustiça, pode levar a confrontos sociais de consequências imprevisíveis.
Anselmo Borges

sábado, 27 de dezembro de 2008

DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM

Há 60 anos, exactamente no dia 10 de Dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou em Paris a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Havia precedentes. Por exemplo, a famosa Charta Magna libertatum - a Magna Carta -, de 1215. Mas ela começa assim: "Estas são as demandas que os barões solicitam e o senhor rei concede", acabando, portanto, por abranger apenas os "homens livres". A Declaração de Direitos (Bill of Rights) do Bom Povo de Virgínia, de 1776, já reconhecia os direitos dos indivíduos enquanto pessoas, mas não se estendia a todos, pois não incluía os negros, considerados "uma espécie inferior". Em 1789, a Assembleia Nacional Francesa promulgou a célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, mas este Homem era ainda só o varão branco e proprietário. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclama-se, pela primeira vez, que toda a pessoa humana, independentemente do sexo, condição social, raça, religião, nacionalidade, é detentora de direitos fundamentais, que devem ser respeitados por todos, pois são universais e valem em todo o tempo e lugar. Mas não houve consenso. Oito países abstiveram-se de votar a favor. A Arábia Saudita e o Iémen puseram em causa "a igualdade entre homens e mulheres". A África do Sul do apartheid contestou o "direito à igualdade sem distinção de nascimento ou de raça". A Polónia, a Checoslováquia, a Jugoslávia e a União Soviética, comunistas, contestaram que alguém pudesse invocar os seus direitos e liberdades "sem distinção de opinião política". Entretanto, em 1966, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou o "Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais" e o "Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos", que, para entrarem em vigor, precisariam de ser ratificados pelo menos por 35 países membros, o que só aconteceu dez anos mais tarde. Embora a sua violação continue uma constante, como permanentemente informa e denuncia a Amnistia Internacional, há uma consciência universal crescente dessas duas gerações de direitos - civis e políticos, e económicos e sociais -, a que veio juntar-se uma terceira geração, cujos titulares não são os indivíduos, mas os povos, como o direito ao desenvolvimento, o direito à autodeterminação, a um meio ambiente sadio, à paz. Continua o debate sobre a sua universalidade, que J.-Fr. Paillard sintetizou nesta pergunta: "Um instrumento ideológico ao serviço do Ocidente", para impor ao resto do mundo a sua visão do bem e do mal? M. Gauchet, por exemplo, disse: "Do ponto de vista de um dirigente chinês, indiano ou árabe, os direitos do Homem são antes de mais os direitos do homem branco a exportar o modelo de civilização que os tornou inteligíveis." No entanto, ainda recentemente - Junho de 1993 -, na Conferência das Nações Unidas sobre os Direitos do Homem, os Estados reafirmaram: "Todos os direitos do Homem são universais, indissociáveis, interdependentes e intimamente ligados." E, considerando a diversidade cultural em conexão com este universalismo, acrescentaram: "Se importa não perder de vista a importância dos particularismos nacionais e regionais e a diversidade histórica, cultural e religiosa, é dever dos Estados, seja qual for o sistema político, económico e cultural, promover e proteger todos os direitos do Homem e todas as liberdades fundamentais." No início de um novo ano, que melhores votos que os do cumprimento pleno destes direitos? Referindo o Preâmbulo da Declaração - "Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; considerando que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar, de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem..." -, um caricaturista do El País pôs Deus a ler e a exclamar: "Que preâmbulo! Não tinha lido nada tão bom desde o Sermão da Montanha."

sábado, 20 de dezembro de 2008

'PROVAVELMENTE DEUS NÃO EXISTE'

É possível que já em Janeiro, nas ruas de Londres, as pessoas se deparem com cartazes no exterior dos autocarros com estes dizeres: "There's probably no God. Now stop worring and enjoy your life" (Provavelmente Deus não existe. Então, deixe de preocupar-se e desfrute a vida). Trata-se de uma campanha publicitária a favor do ateísmo, promovida pela Associação Humanista Britânica e apoiada pelo célebre biólogo darwinista R. Dawkins, professor da Universidade de Oxford, ateu militante e, segundo muitos, fundamentalista. A campanha foi um êxito, pois rapidamente conseguiu fundos - dezenas de milhares de euros - mais que suficientes para pô-la em marcha. Segundo a jornalista Ariane Sherine, que a tinha sugerido em Junho, "fazer uma campanha em autocarros com uma mensagem tranquilizadora sobre o ateísmo seria uma boa forma de contrabalançar as mensagens de certas organizações religiosas que ameaçam os não cristãos com o inferno". Para Dawkins, "a religião está acostumada a ter tudo grátis - benefícios fiscais, respeito imerecido e o direito a não ser ofendida, o direito a lavar o cérebro das crianças". Assim, "esta campanha de slogans alternativos nos autocarros de Londres obrigará as pessoas a pensar. Ora, pensar é uma maldição para a religião". Logo que apareceu o anúncio da campanha, fui confrontado por um jornalista da TSF: se a achava provocatória. Respondi que até a achava interessante. De facto, era isso mesmo: obrigaria as pessoas a pensar nas questões essenciais, e Deus é uma dessas questões decisivas. Constatei, mais tarde, que essa foi também a posição de líderes religiosos britânicos, que responderam favoravelmente à iniciativa. Aliás, qualquer um tem o direito de promover as suas ideias através de meios apropriados. A Igreja Metodista agradeceu inclusivamente a Dawkins pelo facto de encorajar um "contínuo interesse por Deus". A rev. Jenny Ellis disse: "Esta campanha será uma boa coisa, se levar as pessoas a comprometer-se com as questões mais profundas da vida." E acrescentou: "O cristianismo é para pessoas que não têm medo de pensar sobre a vida e o sentido." É significativo aquele "provavelmente". Dawkins não sabe que Deus não existe e, por isso, escreve: "Provavelmente." A existência de Deus não é objecto de saber de ciência, à maneira das matemáticas ou das ciências verificáveis experimentalmente. Nisso, Kant viu bem: ninguém pode gloriar-se de saber que Deus existe e que haverá uma vida futura; se alguém o souber, "esse é o homem que há muito procuro, porque todo o saber é comunicável e eu poderia participar nele". Afinal, também há razões para não crer, mas, quando se pensa na contingência do mundo, no dinamismo da esperança em conexão com a moral e na exigência de sentido último, não se pode negar que é razoável acreditar no Deus pessoal, criador e salvador, que dá sentido final a todas as coisas. Numa e noutra posição - crente e não crente -, entra sempre também algo de opcional. Mas, nos cartazes, o mais impressionante é a segunda parte: "Deixe de preocupar-se e desfrute a vida." É claro que o que está subjacente a esta conclusão é a ideia de um Deus invejoso da vida e da alegria dos homens e das mulheres. Se a primeira parte obriga os crentes a pensar, retirando da fé tudo o que de ridículo - pense-se em todas as superstições - lhe tem andado colado, a segunda tem de levá-los a "evangelizar" Deus. É preciso, de facto, reconhecer que houve e há muitos a quem "Deus" tolheu a vida, de tal modo que teria sido preferível nunca terem ouvido falar no seu nome - pense-se no horror do inferno, nas guerras e ódios em seu nome, no envenenamento da sexualidade, na estreiteza e humilhação a que ficaram sujeitos. Agora que está aí o Natal, é ocasião para meditar no Deus que manifesta a sua benevolência e magnanimidade criadoras no rosto de uma criança. Jesus não veio senão revelar que Deus é amor, favorável a todos os homens e mulheres e querendo a sua realização plena. Perante um "deus" que os humilhasse e escravizasse, só haveria uma atitude digna: ser ateu. Anselmo Borges

sábado, 13 de dezembro de 2008

O FÓRUM CATÓLICO-MUÇULMANO

Após a tragédia da Índia, em Bombaim, ganha urgência maior o princípio de Hans Küng: não haverá paz entre as nações, sem paz entre as religiões; não haverá paz entre as religiões, sem diálogo entre elas e sem um novo ethos - uma nova atitude ética - global. Lembro, pois, pela sua importância, o encontro inédito e histórico entre 29 muçulmanos, representando várias correntes do islão, e igual número de católicos, que teve lugar no Vaticano entre 4 e 6 de Novembro passado. Quem não se lembra do célebre discurso de Bento XVI em Ratisbona, em Setembro de 2006, e da indignação por ele causada no mundo islâmico por alegadamente associar islão e violência? Foi assim que, em Outubro de 2007, um ano depois, 138 académicos, clérigos e intelectuais islâmicos do mundo inteiro, numa Carta a Bento XVI, com o título Uma Palavra Comum entre Nós e Vós, declararam que, apesar das suas diferenças, o islão e o cristianismo - as duas maiores religiões: juntas, representam mais de 55% da população mundial -, partilham a mesma Origem Divina, a mesma herança abraâmica e os mesmos mandamentos essenciais: o amor a Deus e o amor ao próximo. Também afirmavam que, se não houver paz entre os cristãos e os muçulmanos, não haverá paz no mundo. A esta mensagem respondeu o Secretário de Estado do Vaticano, Cardeal T. Bertone, em Novembro de 2007: "Sem ignorar nem diminuir as nossas diferenças, podemos e portanto deveremos olhar para o que nos une." Os contactos entre as autoridades católicas e muçulmanas conduziram, em Março deste ano, à instituição do Fórum Católico-Muçulmano e à organização do referido encontro no Vaticano. No fim do Seminário, houve uma Declaração comum, em 15 pontos. Logo no primeiro, mostra-se como a concepção de um Deus, fonte de amor, é partilhada pelas duas religiões. Afirma-se depois que "a vida humana é o dom mais precioso de Deus a cada pessoa. Portanto, deveria ser conservado e honrado em todas as suas etapas". A pessoa requer "o respeito pela sua dignidade original e a sua vocação humana". Defende-se, por isso, uma legislação civil que assegure "a igualdade de direitos e a plena cidadania" de todos, e há o compromisso conjunto de "assegurar que a dignidade humana e o respeito se estendam a uma igualdade de base entre homens e mulheres". O respeito da pessoa e suas opções em assuntos de consciência e religião "inclui o direito de indivíduos e comunidades praticarem a sua religião em privado e em público". Também "as minorias religiosas têm direito a ser respeitadas nas suas convicções e práticas religiosas". "Nenhuma religião nem os seus seguidores deveriam ser excluídos da sociedade." A criação de Deus na sua pluralidade de culturas, civilizações, línguas e povos é "uma fonte de riqueza e portanto não deveria nunca converter-se em causa de tensão e conflito". É necessário promover uma informação exacta sobre as religiões e proporcionar uma "sã educação em valores humanos, cívicos, religiosos e morais aos seus respectivos membros". Católicos e muçulmanos estão chamados a ser "instrumentos de amor e harmonia entre crentes e para a humanidade em geral, renunciando a qualquer tipo de opressão, violência agressiva e terrorismo, sobretudo quando se cometem em nome da religião". Sem justiça para todos, não haverá paz. Por isso, a Declaração apela aos crentes para que trabalhem em ordem a criar "um sistema financeiro ético no qual os mecanismos reguladores tenham em conta a situação dos pobres e deserdados, tanto indivíduos como nações endividadas". No termo do Seminário, Bento XVI recebeu os participantes, apelando veementemente a que as religiões se tornem artífices da paz e a liberdade religiosa seja respeitada "por todos e em todos os lados". Certamente, pensava também nas minorias cristãs perseguidas em países de maioria muçulmana. A Declaração conclui com o compromisso de realização de um segundo Seminário do Fórum dentro de dois anos "num país de maioria muçulmana". Oxalá! Anselmo Borges

sábado, 29 de novembro de 2008

IGREJA, SEXUALIDADE E BIOÉTICA

No lançamento do livro A Sexualidade, a Igreja e a Bioética. 40 anos de Humanae Vitae, de Miguel Oliveira da Silva, procurei reflectir sobre o paradoxo de, sendo o cristianismo uma religião do corpo - não diz a Bíblia que Deus criou os seres humanos em corpo e viu que era muito bom e não confessa a fé cristã que Deus assumiu em Jesus a corporeidade humana e que ela está presente, pela ressurreição, no seio da Trindade? -, em boa parte a má vontade contra a Igreja radicar na sua relação com o sexo. Como admitir, por exemplo, mesmo quando a saúde e a própria vida ficam ameaçadas, a proibição do preservativo? O que envenenou a relação da Igreja com a sexualidade foi o choque entre o poder e o prazer, porque o prazer pode abalar o poder. Concretamente, há a doutrina do pecado original, entendido não como o primeiro de todos os pecados - todos pecam -, mas como um pecado herdado de Adão e transmitido por geração, portanto, no acto sexual. Depois, com a reforma gregoriana, século XI, foram-se erguendo as três colunas sobre as quais assenta, segundo Hans Küng, o paradigma católico-romano: papismo (poder centrado no Papa), celibatismo (celibato obrigatório por lei para os padres), marianismo (devoção a Nossa Senhora como compensação). Como se determinou que tudo o que se refere ao sexo é por princípio matéria grave e como, por outro lado, não há ninguém que não tenha pelo menos pensamentos relacionados com o sexo e só o sacerdote ou o bispo podem perdoar os pecados, a confissão acabou por tornar-se não um espaço de reconciliação e paz, mas tantas vezes de opressão, e raramente uma instituição acabou por deter tanto poder sobre as consciências, criando infindos complexos de culpabilização. Quando se lê os manuais dos confessores e todos aqueles interrogatórios inquisitoriais, quase reduzidos ao campo sexual, percebe-se que muitos tenham começado a abandonar a Igreja por causa da confissão, considerada ofensiva dos direitos humanos. No universo sexual, que, como escreve Miguel Oliveira da Silva, continua a ser "um imenso, incómodo e multifacetado mistério", é evidente que não vale tudo. Ele reconhece que "a sociedade ocidental vive um profundo e grave vazio ético em matéria de sexualidade". De qualquer modo, a Igreja precisa de reconciliar-se com o mundo e a ciência, o corpo e a sexualidade. Mas enquanto se mantiver a lei do celibato obrigatório não estará todo o discurso eclesiástico sobre o tema debaixo do fogo da suspeita? Nos seus Jerusalemer Nachtgespräche, o Cardeal Carlo Martini interroga precisamente esta lei e, depois de considerar os estragos da encíclica Humanae Vitae, reconhece que muitos esperam do Magistério uma palavra de orientação sobre o corpo, a sexualidade, o casamento e a família. "Procuramos um caminho para, de modo fiável, falar sobre o casamento, o controlo da natalidade, a procriação medicamente assistida, a contracepção." Neste domínio da contracepção, o equívoco fundamental da encíclica Humanae Vitae encontra-se numa concepção de lei natural fixa, estática e centrada na biologia. Ora, por natureza, o ser humano é cultural e histórico e a própria realidade é processual. A sexualidade humana não pode ser vista apenas na sua vertente biológica. Como pode o Magistério fixar-se na biologia, esquecendo que, para ser verdadeiramente humana, a sexualidade envolve o biológico, o afectivo, a ternura, o amor, o espiritual? Por outro lado, na perspectiva bíblica, não criou Deus o Homem como criatura co-criadora? Não é o Homem, por natureza, interventivo, aperfeiçoador e transformador da natureza? Então, no juízo moral, o critério não pode ser o natural identificado com o bem e o artificial identificado com o mal, mas a responsabilidade digna e a dignidade responsável. Aliás, quem defende os métodos contraceptivos naturais como os únicos legítimos deverá ser confrontado com a objecção: para lá da sua falibilidade, ainda serão naturais os métodos que têm a ver com uma descoberta e aproveitamento humanos dos períodos inférteis da mulher? Anselmo Borges

sábado, 22 de novembro de 2008

A INFAUSTA DOUTRINA DO PECADO ORIGINAL

A impressão geral que me ficava da religião nos tempos da catequese não era luminosa. Pelo contrário, tudo aquilo transmitia um mundo bastante tenebroso, a ideia de um Deus castigador e de nós sujeitos a um destino de submissão trágica. Os primeiros pais tinham pecado, Deus andava irado com a gente e Jesus sofria na cruz para ver se nos libertava. A alegria era um roubo e a palavra Evangelho, que quer dizer "notícia boa", não pousava sobre nós nem nos aquecia. O que infectava o cristianismo era a doutrina infausta do pecado original. Escreveu o célebre historiador católico Jean Delumeau: "Não é exagerado afirmar que o debate sobre o pecado original, com os seus subprodutos - problemas da graça, do servo ou livre arbítrio, da predestinação -, se converteu (no período central do nosso estudo, isto é, do século XV ao século XVII) numa das principais preocupações da civilização ocidental, acabando por afectar toda a gente, desde os teólogos aos mais modestos aldeões. Chegou a afectar inclusivamente os índios americanos, que eram baptizados à pressa para que, ao morrerem, não se encontrassem com os seus antepassados no inferno. É muito difícil, hoje, compreender o lugar tão importante que o pecado original ocupou nos espíritos e em todos os níveis sociais. É um facto que o pecado original e as suas consequências ocuparam nos inícios da modernidade europeia o centro da cena mundial, sem dúvida muito atribulado." No entanto, a doutrina do pecado original, no sentido estrito de um pecado transmitido e herdado, não se encontra na Bíblia. Jesus nunca se referiu a um pecado original. Na sua base, encontra-se fundamentalmente Santo Agostinho, a partir de um passo célebre da Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo 5, versículo 12. Mas ele seguiu a tradução latina: Adão, "no qual" todos pecaram, quando o original grego diz: "porque" todos pecaram. Ora, uma coisa é dizer que todos são pecadores e outra afirmar que todos pecaram em Adão, como a árvore fica infectada na raiz, de tal modo que todos nascem em pecado do qual só o baptismo os pode libertar. Santo Agostinho deixava cair no inferno, mesmo que menos terrível, as crianças sem baptismo. Durante séculos, houve mães tragicamente abaladas, porque os filhos morreram sem baptismo. A Santo Agostinho serviu esta doutrina sobretudo para, convertido do maniqueísmo ao cristianismo, "explicar" o mal no mundo, que não podia vir do Deus criador bom. De facto, baseou-se numa exegese errada. E quem não sabe hoje que o que diz respeito a Adão e Eva e à queda é da ordem do mito? Adão e Eva não são personagens históricas. Depois, se eles ainda não sabiam, como diz o texto do Génesis, do bem e do mal, como podiam pecar? O que o texto diz é outra coisa, e fundamental: o que caracteriza o Homem frente ao animal é a liberdade. O Homem já não é um animal como os outros: tem auto-consciência, sabe de si como único - a nudez metafísica - e que é mortal. Mas os estragos desta doutrina infausta foram e são incalculáveis, sobretudo a partir do acrescento de Santo Anselmo e a sua doutrina da retribuição: os primeiros pais cometeram uma ofensa contra Deus infinito e, assim, era necessária uma reparação infinita para uma dívida infinita que só o Deus-homem Jesus podia pagar na cruz. Ficou então a ideia de um Deus por vezes monstruoso, que precisou da morte do Filho para reconciliar-se com a Humanidade. Mas como era isso compatível com o Deus amor? Porque o pecado se transmitia pelo acto sexual, a sexualidade, o corpo e a mulher ficaram envenenados, numa situação dramática: era preciso continuar a gerar filhos - no limite, a actividade sexual só se legitimava para a procriação -, mas eles eram gerados em pecado e a mulher trazia o pecado dentro dela. Porque é que o primeiro acto humano da História havia de ser o pecado? Hoje, com a teoria da evolução, a contradição torna-se maior. E, afinal, o que São Paulo diz no passo célebre da Carta aos Romanos é uma mensagem de esperança: todos os seres humanos pecam, o pecado do Homem é grande, mas o amor de Deus é maior. Infinito. Anselmo Borges

sábado, 15 de novembro de 2008

DARWIN CONTRA DEUS?

O diálogo entre o bispo S. Wilberforce e Th. Huxley, aqui narrado no sábado passado, será mais lenda do que história. Facto é que, a partir do darwinismo, há quem pense que a única conclusão cosmovisional é o materialismo e o ateísmo. Mas essa é uma conclusão que nem Darwin tirou. Ele é mais agnóstico do que ateu, como pode ler-se na sua Autobiografia: "Sinto-me compelido a considerar uma causa primeira com uma mente racional análoga à do Homem; e mereço ser chamado teísta. Mas então surge a dúvida: pode-se confiar na mente do Homem, que, estou convencido, se desenvolveu a partir de uma mente tão primitiva como a que possuía o mais primitivo dos animais, quando tira conclusões tão sublimes? Não podem estas ser o resultado da relação entre causa e efeito, que, embora nos pareça necessária, provavelmente depende só da experiência herdada? Também não podemos ignorar a probabilidade de que a imposição constante da crença em Deus na mente das crianças produza um efeito tão pronunciado, e talvez herdado, nos seus cérebros não totalmente desenvolvidos que lhes seja tão difícil libertarem-se da sua crença em Deus. Não posso pretender lançar a mínima luz sobre problemas tão nebulosos. O mistério do começo de todas as coisas é para nós insolúvel; e eu, pelo menos, tenho de contentar-me com continuar a ser um agnóstico." João Paulo II reconheceu, em 1996, numa intervenção na Academia Pontifícia das Ciências, que novos conhecimentos levam a considerar a teoria da evolução como mais do que uma simples hipótese. Há evolucionistas materialistas. Mas também há evolucionistas que são crentes. Não há incompatibilidade entre a fé e o evolucionismo, que, segundo a obra célebre do padre e cientista Teilhard de Chardin, podem mesmo harmonizar-se. Depois de se esclarecer o "como" do processo evolutivo que leva ao aparecimento do Homem, ainda se não calou a pergunta pelo "porquê" da evolução desembocando num ser humano que continua a perguntar pelo sentido da sua existência e de tudo. Bento XVI não se cansa de insistir que não somos um produto casual e sem sentido da evolução. "Cada um de nós é o resultado de um pensamento de Deus." Sim, porque é que o Deus criador pessoal não haveria de poder servir-se do acaso para realizar o seu desígnio de uma criatura inteligente e amante, com quem estabelecer a sua aliança? Contra J. Monod, que concluiu o seu célebre O Acaso e a Necessidade, escrevendo que "o Homem está só na imensidão indiferente do Universo, donde emergiu por acaso", o cientista Juan-Ramón Lacadena crê numa "teleologia externa, cujo agente é a Causa Primeira, Deus", que tem uma finalidade na criação. Mas acrescenta que tem de ficar claro que nem ele "o pode provar cientificamente" nem ninguém "o pode rebater com provas científicas". "É uma simples, mas importante, questão de crença ou não crença. Um cientista crente pode aceitar a existência de um Criador, sem necessidade de que o mesmo Deus tenha de continuar a intervir pontualmente no processo evolutivo desde as origens do universo." Pelo contrário, o crente reflexivo, precisamente porque o é, recusa um Deus intervencionista. Francis S. Collins, coordenador do Consórcio Internacional da Sequenciação do Genoma Humano, escreveu na sua obra The Language of God, defendendo a tese de uma evolução teísta: "Deus criou o universo e estabeleceu leis naturais que o governam. Deus escolheu o próprio mecanismo evolutivo para dar lugar a criaturas especiais, dotadas de inteligência, conhecimento do bem e do mal, livre arbítrio, e o desejo de buscar amizade com Ele", acrescentando: "A minha modesta proposta é dar outro nome à evolução teísta: 'Bios mediante Logos' ou simplesmente, BioLogos - bios, termo grego para 'vida', e logos, 'palavra', em grego. Para muitos crentes, a Palavra é sinónimo de Deus, como dizem de forma tão poderosa e poética as majestosas linhas que abrem o Evangelho de São João: 'No princípio era o Verbo (Logos), e o Verbo era com Deus, e o Verbo era Deus' (Jo. 1, 1). 'BioLogos' exprime a crença de que Deus é a fonte de toda a vida e que a vida exprime a vontade de Deus."

sábado, 8 de novembro de 2008

DEUS CONTRA DARWIN?

Não cabe aqui um esboço sequer da história das concepções evolucionistas. De qualquer modo, a ideia de evolução já tinha acenado entre os gregos. Em 1809, Lamarck expôs a sua teoria da não imutabilidade das espécies. Mas foi em 1858, há 150 anos, que a ideia da selecção natural e da luta pela existência, de Alfred Russel Wallace e Charles Robert Darwin, foi apresentada na Linnean Society de Londres. No ano seguinte, em 1859, Darwin publicou a obra célebre: A Origem das Espécies. Atendendo a estas datas e sobretudo às celebrações do segundo centenário do nascimento de Charles Darwin - nasceu em 12 de Fevereiro de 1809 -, aumentarão os estudos científicos sobre as teorias da evolução, não faltando os debates à volta da sua relação com a religião, por causa do livro do Génesis, do "criacionismo" e do chamado "desígnio inteligente". O primeiro embate célebre deu-se logo em 1860, em Oxford. Perante uma assistência numerosa, o bispo de Oxford, Samuel Wilberforce, foi perguntando ao naturalista Thomas Huxley, defensor de Darwin, se descendia do macaco pelo lado do avô ou pelo lado da avó. Huxley respondeu: "Penso que um homem não tem que envergonhar-se por ter um macaco como avô. Se tivesse de envergonhar-me de um antepassado, seria de um homem: um homem de inteligência superficial e versátil que, em vez de contentar-se com os sucessos na sua esfera própria de actividade, vem imiscuir-se em questões científicas que lhe são completamente estranhas, não faz senão obscurecê-las com uma retórica vazia, e distrai a atenção dos ouvintes do verdadeiro ponto da discussão através de digressões eloquentes e hábeis apelos aos preconceitos religiosos." Por causa desta resposta, considerada pouco elegante, uma senhora desmaiou. A mulher do bispo, essa, terá dito entre dentes: "Só faltava esta: descender de macacos! Se for verdade, rezemos para que ninguém saiba." A teoria da evolução constituiu uma daquelas humilhações do Homem de que falou Freud. Embora o Homem não descenda do macaco, ele e o macaco descendem de um antepassado comum, o que não constituiu uma descoberta particularmente exaltante. Desde então a nossa visão da natureza, do Homem e de Deus modificou-se. Significativamente, já na altura, muitos religiosos britânicos declararam que não havia incompatibilidade com a fé. O historiador das ciências D. Lecourt escreveu: "A figura mais importante da Igreja escocesa declarou-se evolucionista e, num curso, em 1874, aconselhou os teólogos a sentirem-se 'perfeitamente à vontade com Darwin'." Darwin, sepultado com pompa, em 1882, na abadia de Westminster, a alguns passos do túmulo de Newton, nunca foi oficialmente condenado pela Igreja católica e A Origem das Espécies nunca esteve no Índex. De qualquer modo, segundo o reverendo Malcom Brown, director dos serviços de relações públicas da Igreja Anglicana, a sua Igreja deveria agora pedir desculpa pela má interpretação de Darwin e algum fervor anti-evolucionista. Hoje, os equívocos beligerantes provêm essencialmente do "criacionismo" americano e do chamado "desígnio inteligente". Mas o "criacionismo" assenta numa leitura literal do mito da criação do Génesis, esquecendo que o Génesis é um livro religioso e não de ciência e que só uma leitura simbólica é adequada. Quanto ao "desígnio inteligente", o seu equívoco provém da ambição de demonstrar Deus pela ciência. De facto, como é evidente, a existência de Deus não é nem pode ser objecto de ciência. Mas afirmar taxativamente que a evolução é mero produto do acaso não deixa de ser também uma posição dogmática. A ciência vai respondendo ao "como" da evolução, mas não responde ao "porquê", concretamente ao porquê e para quê da existência do Homem e de tudo: "Porque há algo e não pura e simplesmente nada?" Como escreveu o cientista Francisco J. Ayala, na conclusão da sua obra Darwin e o Desígnio Inteligente, "a evolução e a fé religiosa não são incompatíveis. Os crentes podem ver a presença de Deus no poder criativo do processo de selecção natural descoberto por Darwin".

sábado, 1 de novembro de 2008

DIAS DE ANIVERSÁRIO: 1 E 2 DE NOVEMBRO

Nas nossas sociedades tecnocientíficas e urbanas, a morte é tabu, mas permite-se que todos os anos, nos dias 1 e 2 de Novembro, os mortos regressem: são os dias dos mortos. E os cemitérios enchem-se de vivos, numa saudade sem fim. A palavra saudade talvez venha de solitate (solidão) - talvez melhor, de salutem dare (saudar). De qualquer forma, do abismo sem fundo da nossa solidão, ergue-se uma prece, mais religiosa ou mais laica, pelos mortos: estejam onde estiverem, que estejam bem! É o aniversário dos mortos, no sentido etimológico (annus+vertere): o que volta cada ano, todos os anos. Se pensarmos bem, não é o aniversário dos mortos, mas apenas dos vivos, que, cada ano, recordam os mortos. Para os mortos, precisamente porque apanhados pela morte, já não há aniversário. É por isso que, na celebração do aniversário, há algo que remete para a metafísica. Como escreve o filósofo P.-H. Tavoillot, "lembra-nos que há um princípio e um fim e que, na aparente repetição das estações, se esconde um fio cada vez mais curto e ténue". Lá está o que se encontra na maior parte das lápides dos túmulos: a data do nascimento, frequentemente com a indicação de uma estrela - ter vindo à luz do mundo - e a data da morte - entre nós, a maior das vezes, com um sinal da cruz. Daí a diferença com que as crianças e os adultos encaram a festa de aniversário: os primeiros sonham exaltados com as prendas; os outros, sobretudo com o avanço da idade, tomam consciência do cutelo do tempo. O mistério do Homem é o tempo e a morte. Foi também com Tavoillot que aprendi que a celebração do aniversário é recente. Antes, com este nome, o que se celebrava não era o dia do nascimento - aliás, antes da generalização do registo civil, a referência a esse dia nem sempre era exacta -, mas o dia da morte, concretamente dos mártires, chamado dies natalis (dia do nascimento). A Igreja opunha-se à celebração do nascimento. Para Santo Agostinho e outros Padres da Igreja, celebrá-lo significaria, por um lado, ligar-se a práticas pagãs e, por outro, lembrar a vinda ao mundo de um pecador. Ora, exceptuando Jesus, Maria ou João Baptista, não havia "qualquer razão para alegrar-se!" Aí está a razão de, ainda hoje, mais em países de influência protestante, como a Alemanha, estar presente a tradição de os católicos festejarem o dia do nome (Namenstag): nome do santo patrono a quem o recém-nascido foi confiado. O tempo efémero ficava ancorado na eternidade. Ao pôr em causa o culto dos santos, "o protestantismo abriu a via do novo aniversário": atente-se nas palavras alemã - Geburtstag - e inglesa - Birthday -, com o significado explícito de dia do nascimento. Agora, a vida do indivíduo tem consistência própria e não já em referência a uma realidade superior. Mesmo entre os católicos, lentamente a festa da celebração do aniversário natalício impôs-se, e lá estão a família e os amigos e os presentes e o bolo do/da aniversariante e as velas e o canto universal do Happy Birthday to You, cuja letra remontará a 1924, mas a música a 1893. No quadro da secularização e do individualismo, é um modo de dar sentido e consistência a uma existência que se sabe efémera e mortal: "Pelo menos uma vez por ano, o fluxo quotidiano que cada um vive tenta transformar-se em destino e até em epopeia. É uma maneira profana de dar sentido ao curso da vida." Assim, as crianças aprendem a viver; os adultos, a envelhecer; quanto aos velhos, "é um modo de os honrar", pois, num mundo de exaltação da juventude e do êxito, "a performance suprema não é envelhecer?". Para tentar explicar o espaço e o tempo como formas da sensibilidade, segundo Kant, desafio os estudantes a captar as coisas sem o espaço e a narrar a sua vida sem o tempo. Impossível! Aí está a razão por que a morte e o seu depois, porque para lá do espaço e do tempo, são completamente irrepresentáveis para nós. Depois da morte, para os mortos, já não há aniversário, porque, com a morte, sai-se do tempo e entra-se na eternidade. Na eternidade do nada ou na eternidade de Deus. Espero que na eternidade do Deus vivo e infinitamente bom.
Anselmo Borges
In DN

sábado, 25 de outubro de 2008

QUEM TESTEMUNHA O QUÊ?

As Conferências do Lumiar, organizadas pelas monjas dominicanas, têm como tema neste ano lectivo "testemunhar". A mim, na abertura, coube-me o título em epígrafe: Quem Testemunha o Quê? No plano cristão, o testemunho ocupa lugar nuclear e determinante. Jesus, diante de Pilatos, o representante do Império Romano, respondeu: "Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz." E antes da ascensão ao Céu, disse aos discípulos: "Ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo." Na Bíblia, é infindável o número de referências ao testemunho, ser testemunha, dar testemunho. Testemunha e testemunho provêm do latim testis (*tristis, "que está ou assiste como terceiro", com raiz em tri, redução de tres, treyas + sto). Percebe-se assim a ligação com tribunal. Essa conexão é dada do mesmo modo em alemão, por exemplo: Zeuge (testemunha), a partir de ziehen, especialmente das Ziehen vor Gericht (levar a tribunal) e, também, Zeugnis ablegen (dar testemunho), überzeugen (convencer, levar alguém com provas a reconhecer algo como verdadeiro); Zeugnis é o comprovativo das notas dos alunos, que provam o seu esforço e saber. Num tribunal, há testemunhas de defesa e de acusação, o que está em julgamento e um juiz. No cristianismo, Jesus, por palavras e obras, deu testemunho do que viu e ouviu de Deus, seu Pai: que é amor, e espera-se e exige-se que os cristãos dêem, por palavras e obras, testemunho do que viram e ouviram de e sobre Jesus: ele é o Messias de Deus, que revela quem é Deus para os homens e o que são os homens para Deus, com todas as consequências. Há testemunhas que dão testemunhos verdadeiros e outras, falsos. O tribunal procurará averiguar a verdade ou a falsidade do testemunho, buscando contradições. No nosso caso, pode haver, de facto, contradição entre o testemunho dito e o testemunho pela acção. Pense-se, por exemplo, no Vaticano, no luxo do clero, na pedofilia, na avareza e na injustiça cínica dos cristãos - não contradiz a prática o que se confessa por palavras? Por outro lado, é preciso testemunhar até ao fim. Não se pode negar o que se viu e ouviu. Foi assim que fizeram Jesus e os discípulos: testemunharam, atestaram, certificaram até ao sangue e à morte - mártys e martyrion, em grego, significam, respectivamente, mártir e testemunho ou prova. O testemunho implica coragem de ser: significativamente, outra acepção de testis (testemunha e testículo) é força varonil. Então, dá-se testemunho de quê? Da verdade? Da beleza? Da dignidade? Da solidariedade? Da malvadez? Da vulgaridade? Da fealdade? Da injustiça? Porque todos damos testemunho. O próprio mundo dá testemunho. Mas de quê ou de quem? Esse testemunho é ambíguo. Porque há a beleza e a ordem do mundo e também a sua desordem e fealdade. O mundo exalta, o mundo horroriza. A natureza tudo dá à luz e tudo destrói e sepulta. O Homem recebe o testemunho e tenta decidir. O que são as filosofias e teologias e a grande música e poesia e artes senão testemunhos? Mas o mundo é racional ou irracional? Na sua raiz, está a Vontade cega? É sempre o eterno jogo do mesmo? E a História dos homens? Tem sentido? A História do mundo é o juízo do mundo, como queria Hegel - Weltgeschichte Weltgericht? A História é moral? Mas então quem dá razão às vítimas inocentes? Há uma dívida para com elas. Quem a paga? E testemunha-se perante o quê ou perante quem? Perante a consciência, perante os outros, perante a História. Mas, para quê, se tudo for devorado pelo nada? Quem é o juiz? O mundo está em processo, e o processo ainda não transitou em julgado. Ninguém sabe o que está em questão na História do mundo e na História dos homens. A História lê-se do fim para o princípio e precisamente o fim ainda não chegou. Mas os crentes esperam que, no fim - no chamado Juízo Final -, Deus se revele como testemunha favorável a todos e juiz misericordioso. Anselmo Borges

sábado, 18 de outubro de 2008

A 'BÍBLIA': 73 LIVROS

A palavra Bíblia vem do grego e significa livros, no plural. Em latim e, por derivação, em português, transformou-se num singular feminino: a Bíblia como "O Livro". Quem não estiver atento pensará que se trata de um livro como os outros. Na realidade, é, segundo o cânone católico, o conjunto de 73 livros - uma pequena biblioteca -, e a sua redacção e formação prolongaram-se por mais de mil anos. Assim, como reconhece o Sínodo dos Bispos, reunido em Roma até 26 deste mês, para tratar precisamente da Bíblia, o magno problema bíblico é o da interpretação. De tal modo foi possível, com base na Bíblia, fazer leituras díspares que o filósofo Hegel tem o dito famoso de que ela é como um nariz de cera, expressão que já vem de Alain de Lille, no fim do século XII. Dou exemplos, um pouco ao acaso, apenas para mostrar, perante o emaranhado de textos, a urgência da tarefa gigantesca da exegese e da hermenêutica. No primeiro livro - o Génesis -, há duas narrativas da criação, que não são coincidentes. Logo por aí se vê que não podem ser tomadas à letra. Sobre o amor, encontra-se na Bíblia um dos livros mais eróticos da história da literatura: o Cântico dos Cânticos é um poema que canta o amor de um homem e de uma mulher, com a sua expressão sexual, e não são casados. Mas, no Levítico, lê-se: "O homem e a mulher adúlteros serão punidos com a morte"; "Se um homem coabitar sexualmente com um varão serão os dois punidos com a morte". Na Bíblia, ao lado de uma ética sexual do amor, da justiça e da bondade, encontramos éticas da pureza e da propriedade. No salmo 137, está: "Cidade da Babilónia, feliz de quem agarrar nas tuas crianças e as esmagar contra as rochas!" Mas Jesus mandou amar os inimigos e, do alto da cruz, rezou: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem". Jesus disse que Deus e a Mamona (a riqueza divinizada) são incompatíveis, mas também se lê no Evangelho o que ficou conhecido como "o efeito de Mateus": "Ao que tem será dado e terá em abundância; mas, ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. Sobre as mulheres, diz São Paulo que "já não há homem nem mulher, pois todos são um em Cristo". Mas, no Eclesiástico, lê-se: "Pela mulher começou o pecado e por sua culpa todos morremos." Os livros dos Profetas constituem uma revolução na história da consciência religiosa da Humanidade, pois, contra a corrente sacerdotal, reivindicam a moralização da religião, cujo núcleo está na justiça e não nos sacrifícios, dos quais Deus diz que "fedem". Job, esmagado pela dor na sua inocência, ousa convocar Deus para um tribunal independente. Frente à morte, diz-se que o Homem morre como o gado. Mas São Paulo escreve que a fé cristã tem o seu fundamento na ressurreição dos mortos: "Sem ressurreição, é vã a nossa fé." Com a Bíblia, justificou-se a teocracia e também a laicidade, matou-se, cometeram-se crueldades sem fim, fizeram-se as cruzadas, mas também se ergueu, como nunca tinha acontecido, a dignidade divina da pessoa humana. Deus é o Deus dos exércitos e da vingança, mas também é o Libertador, e a única tentativa de definição diz: "Deus é amor." Afinal, a Bíblia escreve sobre a história dos homens, no seu melhor e no seu pior, na busca do absoluto. É preciso entender que ela é um livro religioso e não científico e só no seu todo é que se reclama da verdade. Ora, se toda a religião tem como ponto de partida e de "definição" a pergunta essencial: o quê ou quem traz libertação, salvação, sentido final?, então, quando se pergunta pelo fio hermenêutico essencial e decisivo para a interpretação correcta dos livros sagrados, ele só pode ser o do sentido último, da libertação-salvação total. Só a esta luz é que são verdadeiros. Em tudo o que neles se encontra de menos humano ou até de desumano, revela-se o que Deus não é e o que o Homem não deve ser. Lídia Jorge disse de modo iluminante: "A Bíblia é o poema colectivo mais longo criado até agora pela Humanidade. Nele se espelham as várias batalhas que os homens engendram na sua demanda pelo amor absoluto." Anselmo Borges