terça-feira, 7 de outubro de 2008

Diocese de Aveiro inicia Ano Pastoral

Igreja Diocesana Renovada na Caridade é Esperança no Mundo
"A Igreja de Aveiro dedicou o anterior ano pastoral ao serviço dos mais pobres. Não se esgotou a nossa missão nem se extinguiu em cada um de nós e na Igreja de Aveiro a generosidade e a caridade. Esta não acaba nunca. O serviço aos mais pobres exige atenção demorada e criativa. Implica proximidade e escuta. Necessita de persistência e de aprendizagem. Procura respostas novas e concretas para problemas novos e para pessoas concretas, únicas e irrepetíveis. É necessário ir ao coração dos problemas sociais para proteger os mais frágeis e promover a sua dignidade, fonte essencial de um novo olhar e de um novo agir. Um olhar e um agir guiados e iluminados pela esperança que nos move e que não engana. Contribuir para o bem comum e para a justiça social é responsabilidade de todos: pessoas individuais, Igreja e Estado. A acção da Igreja de Aveiro neste campo, as várias iniciativas programadas, as propostas de formação apresentadas, a Semana Social Nacional a realizar em Aveiro no próximo ano vão certamente intensificar e optimizar tanto bem já realizado e mobilizar toda a Comunidade nesta vanguarda de serviço afectivo e efectivo aos mais pobres. A pobreza não é uma fatalidade nem pode ser uma tirania a subjugar os mais frágeis ou desprotegidos. O bom combate da fé de que Paulo nos fala também é este: contra o mal, contra o pecado e contra a pobreza."
Da Comunicação de D. António Francisco na apresentação do Plano Pastoral, que decorreu no Seminário de Aveiro, na tarde de 5 de Outubro de 2008

O Fio do Tempo

A identidade da “regulação”
1. Sem dúvida que um novo cenário de mundo vai emergindo. Com mais intensidade que a dialéctica natural da história, em que mesmo com os arrepios das contrariedades vai crescendo na dinâmica da ascese, a certeza é que os tempos actuais são de recapitulação. Esta, por si, costuma ser redefinidora das ideias e das práticas. Já não há dúvidas que nada será como dantes. Os factores em jogo nesta crise internacional, quase um 11 de Setembro da economia em que todo o mundo está em rede, farão dela o centro de muita reflexão sobre como nos relacionamos com os factores socioeconómicos neste início do séc. XXI, na contagem ocidental. 2. O ajustamento em curso terá na palavra «regulação» o novo «eixo da roda» em torno do qual o futuro próximo se vai desenhar. A releitura do séc. XX, no diálogo (agora mais serviçal que bélico) dos dois sistemas de mundo, terá a oportunidade de procurar a síntese. Se salta à ribalta real o falhanço da completa liberdade na «lógica de mercado», esta, na justa análise adulta e honesta, não pode fazer esquecer que as lógicas estatizantes aprisionam a fluência saudável, necessária e natural das trocas de bens. É oportuno fazer lembrar a palavra dos sábios. João Paulo II quando lançava o olhar crítico sobre o comunismo destacava também as falácias do capitalismo, quando desregrado. 3. O desafio da ética económica é o novo imperativo que se ergue. Até agora também o foi na teoria; mas agora na prática. A confiança a recuperar não assentará mais na especulação mas na credibilidade, e esta conquista-se na ética da intocabilidade dos deveres comuns. Também pode brotar o perigo da «regulação» insubstituível dos Estados (que falhou porque as economias assim ditaram…) vir a significar controlo ou mesmo domínio. É uma fronteira difícil mas essencial a ressituar. O pior de tudo que poderia provir era o retorno dos paradigmas estanques. A verdade está no «meio» mas não abdica da ética universal. De todos!

O MAL SÓ ACONTECE AOS OUTROS

Na história recente têm-se multiplicado os problemas sociais. De repente, quando todos imaginamos que o mundo rola sobre rodas afinadas, caem sobre nós os dramas de muitos povos, com catástrofes, crises económicas e sociais que ninguém soube prever nem evitar. Há tempos, sem que alguém o esperasse, a subida do petróleo disparou para valores inimagináveis. Com essa subida, toda a economia ficou baralhada, deixando os investidores confusos e os trabalhadores preocupados. Presumo que poucos possam imaginar os reflexos dessa subida de preços na vida das pessoas, sobretudo nas que vivem exclusivamente do seu trabalho ou das suas pensões de reforma. Agora, aí temos a falência de bancos e de outras estruturas paralelas a afectarem o quotidiano de imensa gente, ao ponto de todos começarmos a olhar uns para ou outros, como quem espera respostas para as dúvidas em relação ao futuro. Infelizmente, não vejo quem possa apontar soluções para se ultrapassar a crise. O desespero invade o homem comum. A dúvida está em saber onde se encontra a porta certa para tranquilizar as pessoas. As políticas e os políticos começam a ficar confundidos. As reuniões e as decisões multiplicam-se, mas a crise está para ficar. E nós, com o velho hábito de acreditar que o mal só acontece aos outros, temos de começar a pensar que também nos pode chegar um dia destes. Com a economia, como é conhecido, a dominar tudo e todos. FM

Escola da Ti Zefa

Escola da Ti Zefa, hoje oficina de bicicletas e motorizadas
Antigos alunos querem encontrar-se
Nos últimos dias, têm-se repetido as consultas, no sentido da viabilidade de um encontro de antigos alunos da escola da Ti Zefa. Alguns amigos, que por lá passaram, muitos deles há mais de sessenta anos, perguntam-me se será possível organizar uns momentos de convívio, para recordar e sobretudo para matar saudades. A ideia, tanto quanto sei, partiu do José Maio, que não vejo há anos. Sei que emigrou e que já regressou, mas a verdade é que não o tenho visto. O mesmo acontece com outros, que o tempo tem abastado do nosso convívio. De quando em vez lá me vou cruzando com um ou outro, e então há sempre uma troca de impressões sobre a vida, com o passado a marcar presença nas nossas conversas. E não faltam perguntas sobre este ou aquele colega que anda longe dos nossos olhares e dos nossos caminhos. Também vamos sabendo de um ou outro que já não está entre nós, embora se mantenha no nosso espírito. Aos que me abordam sobre a possibilidade do encontro, digo sempre que estou disponível e que só aguardo ordens para aparecer onde for preciso, para a cavaqueira que se impõe. Recordar é viver. Todos sabemos disso. Mas não podemos ficar simplesmente pelas ideias; é preciso mesmo deixar os nossos comodismos e avançar. As nossas recordações estão à espera de soltar as amarras para verem a luz do dia, em conversa franca e amiga uns com os outros.
Fernando Martins

O INVESTIMENTO

Alunas na aula de informática (Foto do meu arquivo)
Anunciou, logo no início da aula, mal a professora entrou, que fazia anos. Era um aluno irrequieto, com a força do mar espelhada nuns olhos verdes, transparentes, quase perturbadores de tanta limpidez! Cativava, o malandro! Pela sua irrequietude, pela sua beleza de porte selvagem, nos olhares, nos gestos, nas atitudes largas! A professora tinha alguma dificuldade em o manter quieto, atento, nas aprendizagens que era preciso fazer. A Escola tinha regras... o programa estava ali para ser cumprido. Às vezes, afigurava-se bem comprido... Hoje o B. estava excessivamente irrequieto... a efeméride do dia estava a perturbá-lo. Observando esta postura e na tentativa de o acalmar, aproxima-se dele a professora e fixa-o intensamente no olhar... aqueles olhos verde-água, que não cansam a vista de ninguém! Permanecendo em silêncio, por largos momentos, desperta no B. a curiosidade e a excitação de adivinhar aquilo em que a mestra cogitava. Esta, para ganhar tempo, diz-lhe: – Não te posso dizer agora, só no fim da aula... Ficou-se por aí. Cumprido o ritual da saída, a professora pede ao aluno que a acompanhe à sala dos professores. É hábito este gesto ser indiciador de algum merecido castigo, pois, ali ao lado, costumam alguns alunos tomar um curto “banho de assento”. O sorriso da professora não deixara margem a medos, fora cúmplice e o B. percebera-o! Depois de combinar com o Director de Turma, surgem os dois professores à beira do aluno, junto à porta, com ar austero. A professora dá-lhe os parabéns, afirmando que, dali para a frente, conta com a prestimosa colaboração deste novo Assessor de Disciplina, nomeado, ad hoc, na presença e com a conivência do seu Director de Turma! Juntamente com os dois beijinhos da praxe, a professora entrega ao aniversariante, como prenda improvisada, uma barrita de cereais, que levara consigo, para acalmar as necessidades do estômago. Professor sofre! Mas… professor não cessa no esforço de encontrar, na pedagogia, a solução, a ajuda, o milagre para levar a sua missão a bom porto! Madona

Adeus Marx, adeus capital

A economia está na ordem da hora. Reparem nos relógios, nos ecrãs, na histeria dos espectáculos bolseiros, nos sinais, na pressa, na subida, na descida, no sentimento positivo ou negativo. Tudo se passa como um relâmpago, começando em Wall Street e passando por Londres, Tóquio, Madrid ou Lisboa. E chega à nossa porta. Ao nosso bolso. Não contávamos com isto. Pelo menos para já. Neste novo milénio tivemos o 11 de Setembro, os arredores de Paris a arder, atentados no Iraque e Afeganistão, ameaças nucleares nalguns países, África por vezes a emergir, outras com a pobreza no pico mais alto, os barris de petróleo a fazerem rolar os painéis nas bombas de gasolina, nas viagem de qualquer tipo, no preço do pão de cada dia. Diremos simplesmente que as leis são mais fortes que as vontades e as vontades que criam leis de justiça ou injustiça não mudaram. Vivemos a convulsão do “já e ainda não”, com os grandes do mundo mais assustados que os pobres, pois as suas perdas são mais arrasadoras que as perdas do cidadão comum. Mas as astúcias ganham cidadania. O dinheiro é jogo, especulação, ameaça, retracção, bluf, enganos contínuos para que a ilusão seja impulsionadora de negócio e o boato determine novas formas de lucro. Os poderes públicos já se sentiram ultrapassados. Uma espécie de terrorismo económico tornou-se determinante no xadrez de troca de capitais e bens – móveis ou imóveis – que nos leva a sentir-nos em estado de emergência e dúvida económica sistemática, decretada pelos prestidigitadores da moeda, dos juros, dos lucros, das subidas e descidas das acções como roleta constitutiva do nosso sistema económico. Adeus Marx, adeus capital. Nesta matéria mentir não é bom. Mas dizer a verdade toda pode ser arriscado. Pode gerar efeito dominó. Cada qual lança ou paralisa o seu investimento, o pequeno ou grande sinal de compra e venda, e abre uma caixa surpreendente de consequências. Bento XVI na abertura do Sínodo referiu-se a esta crise como reveladora da “futilidade da corrida ao dinheiro”. Não se vislumbra, por enquanto, saída para este estado de crise. Mas nem por isso podem ficar de fora as atitudes éticas no pequeno e grande mercado, nos negócios onde o ser humano está no centro e o mais frágil merece o maior respeito. A Igreja reafirma hoje mais veementemente a sua doutrina social, sejam quais forem os novos meios e técnicas em que se envolva o trabalho humano. O trabalho continua a ser um direito e um dever de todos, na continuidade da criação, na relação com o capital, no título de participação de todos, nas obrigações do Estado, no mundo agrícola e industrial, no mundo universo migratório, nos direitos da mulher, na remuneração equitativa, na distribuição dos rendimentos, nas novas formas de solidariedade e nas surpresas constantes da orgânica do mundo laboral. O ser humano é o mesmo. E continua indiscutível a frase de Cardijn: as coisas têm preço, os homens têm dignidade. António Rego

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O Fio do Tempo

A caravela da motivação
1. Pessoas visionárias e motivadas geram projectos e envolvimentos ambiciosos. O contrário também é verdade: desmotivação atrai pessimismo, crise, incerteza, desconfiança, negritude, depressão, recessão. É preocupante observar-se que a conjugação desta sequência de palavras “negras” começa a ocupar espaço demasiado como se de uma nuvem chuvosa se tratasse. Os tempos económicos actuais são também esse reflexo consequencial de que a «pedra angular» da construção social tem sido colocada bem mais na sedutora face «material» do ter que nos valores profundos que dão sentido e Ser à vida. A cultura do efémero, do plástico, do «de repente» invadiu os territórios da sabedoria tirando-lhe o lugar. 2. De 85 anos de vida e 65 de partilha pública de ideias, o reconhecido ensaísta português, Eduardo Lourenço, esteve nestes dias entre nós. Na Universidade de Aveiro e em Portugal, a convite do Centro Nacional de Cultura, sendo homenageado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Lourenço, estudioso dos valores e essências da mitologia clássica europeia e portuguesa, esteve no programa «diga lá excelência» (Público, RR, Canal 2). A sua entrevista (Público, 05-10-2008) é mais um contributo irrecusável para compreendermos quem somos, dos lados de crise aos de aventura, como necessidade de «sair» de si para (idealmente) se encontrar. 3. Destaca Lourenço que os portugueses lá fora são conhecidos pela «caravela». Vem essa imagem dos tempos do «milagre» de um país tão pequeno chegar tão longe nas descobertas. Comentava-se que esse milagre nos aprisionou, pois que nos viria substituir no compromisso diário de embarcar. Se «cada pessoa que se eleva, eleva a própria Humanidade», então as dificuldades de cada época trazem mesmo consigo esse ouro no crisol que pode gerar uma nova forma. A motivação não é um milagre que venha de fora; constrói-se no compromisso e no rigor diário a que nos habituarmos. Alexandre Cruz

Um livro de Ana Maria Lopes

“Jorge Godinho”
Se fosse vivo, Jorge Godinho teria completado 70 anos no passado dia 5 de Janeiro. Nasceu nessa data, em 1938, e faleceu em 16 de Junho de 1972, vítima de leucemia. Era casado com Ana Maria Lopes e quando morreu os seus dois filhos, o Pedro e o Miguel, tinham, respectivamente, 6 anos e 16 meses. O livro nasceu, segundo a autora, a pensar “nos nossos netos que não conheceram o Avô”. E decerto, também, a pensar nos filhos, que pouco tempo tiveram para conviver com o pai. Mais ainda, julgo eu: a pensar na importância de deixar como herança, aos familiares e amigos, as marcas indeléveis de um homem, marido, pai e depois avô, que soube viver o seu tempo com elevação. Para além das evocações fundamentais da vida de Jorge Godinho, por sinal irmão de Cecília Sacramento, minha querida e saudosa professora de português, Ana Maria Lopes revela facetas artísticas de seu marido, durante sete anos, pois era um exímio executante da guitarra de Coimbra. Lendo esta obra, a autora leva-nos a viajar com Jorge Godinho pelo mundo do fado coimbrão, tão cultivado pela academia. E nessa viagem, cruzamo-nos com artistas que fizeram escola, alguns dos quais ainda podem deixar-nos impressões vivas do convívio que mantiveram com o biografado. Luiz Goes, José Niza, Jorge Tuna, Octávio Sérgio, José Miguel Baptista, Durval Moreirinhas, José Afonso, Fernando Rolim, António Portugal e Levy Baptista e tantos outros são evocados por Ana Maria Lopes nesta obra, em edição de autora, que os ex-alunos, amigos e familiares do homenageado hão-de ler e reler com saudade. Jorge Godinho licenciou-se em História e Filosofia, tendo exercido a nobre missão de ensinar até à sua morte. E pelo testemunho de um aluno, Naia Sardo, ele foi um professor de Filosofia que soube fornecer aos estudantes “as bases das correntes doutrinárias das várias épocas e países”, que os “ajudaram a ser homens válidos para a sociedade actual”. Por sua vez, Octávio Sérgio recorda “a sua sonoridade, o dedilhar, o timbre, a clareza de notas, enfim, a qualidade da sua execução era superior”. E Durval sublinha: “Eu, tu, o Tuna, o Zeca, o Adriano, o Niza, Sutil Roque, o Marta, o Octávio, etc., etc., fizemos parte desse caldo de cultura cúmplice, fraterno, solidário, que nem os maus momentos conseguiram destruir.” Ao referenciar o seu falecimento, o Correio do Vouga escreve, em 23 de Junho de 1972: "Corajoso na doença, dedicado aos seus alunos e amigos, optimista na visão dos acontecimentos, espírito inteligente e culto, foi professor que se impôs pela sua competência profissional e pelas suas invulgares qualidades de carácter, de compreensão e de bondade." Completam o livro inúmeras ilustrações da vida de Jorge Godinho, desde criança até à sua intervenção social, passando pela família e pela vida académica e artística. Neste sector, sobressaem as capas dos discos em que deixou a sua marca de guitarrista, no Fado de Coimbra, da sua e nossa geração.
Fernando Martins
Nota: O livro de Ana Maria Lopes, “Jorge Godinho”, foi lançado no sábado, em Coimbra, na Galeria de Arte Santa Clara.

domingo, 5 de outubro de 2008

ATENAS CONTRA JERUSALÉM?

Já no fim, Hitler obrigou miúdos a avançar para a guerra. Foi assim que também Johann Baptist Metz entrou no horror. Uma manhã, ao regressar, depois de cumprir ordens num destacamento militar distante, encontrou os colegas todos mortos. Uma juventude roubada, à beira do abismo do absurdo! Aí está a razão por que, como o filósofo Adorno escreveu que, "depois de Auschwitz, já não é possível a poesia", também o teólogo Metz, no início do ano lectivo, reflectia com os estudantes que, se aquelas aulas não fossem ao encontro dos problemas dos homens e das mulheres e dos seus sofrimentos e das suas esperanças, não só não valiam a pena como eram uma injúria. Na Alemanha, celebra-se agora o 80.º aniversário do seu nascimento e muitos chamam a atenção para a importância de uma teologia que, no quadro de uma "nova teologia política", marcou indelevelmente o pensamento do século XX. Th. Assheuer acaba de se lhe referir no influente Die Zeit como "teólogo fascinante" e chamando a atenção para o que constituiu a sua provocação à Igreja católica: "Atenas contra Jerusalém." Porque é que a Igreja está mais centrada na redenção dos pecadores do que na justiça com os que sofrem inocentemente? Porque dá mais facilmente as mãos aos criminosos do que às vítimas? Porque avança triunfalmente, abençoando os poderosos? Segundo Metz, o cristianismo perdeu em radicalidade na sua mensagem, porque ficou preso do espírito helénico, esquecendo as suas raízes hebraicas e que no seu fundamento está "a memória perigosa" de um judeu, Jesus, crucificado. Enquanto o pensamento grego gira à volta dos modelos ideais "fora da" história, o pensamento bíblico recorda as vítimas "na" história. "Atenas" pergunta pelas ideias abstractas e a-históricas; "Jerusalém" pergunta pela sorte dos inocentes. Die Zeit lembra "o grito dos inocentes" e "a autoridade dos que sofrem", para sublinhar que, segundo Metz, a história do Ocidente seria menos cruel, se não tivesse reprimido a revolta bíblica contra a "normalidade" da dominação e da violência. A paixão por Deus verifica-se - tem a sua verdade - na compaixão pelas vítimas, como veio dizer a Valadares, há três anos, quando o convidei para o Congresso sobre Deus no Século XXI e o Futuro do Cristianismo. E só a compaixão funda perspectivas de paz. Um "exemplo desconfortável": "Só quando israelitas e palestinianos reconhecerem reciprocamente a sua história de sofrimento, chegará a paz ao Médio Oriente." J. B. Metz reconheceu, desde jovem, em A Teologia do Mundo, traduzido para português, a base bíblica da secularização enquanto autonomia do mundo. O seu combate foi contra a privatização da fé e da teologia, como se o cristianismo, concretamente após o iluminismo, devesse remeter-se para privacidade e para o sentimento, sem consequências políticas. Fundou assim, em oposição à "teologia política" do politólogo Carl Schmitt, cuja concepção de pecado original legitimava o poder ditatorial, uma "nova teologia política", em confronto crítico com a sociedade e concebendo-se como um "saber prático", que se faz "praxis na história e na sociedade". Este projecto teológico articula-se à volta de três categorias fundamentais: memória, narração e solidariedade. O conteúdo da fé cristã determina-se como memória da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Esta memória é uma "memória perigosa", pois tem um poder mobilizador e transformador: põe em crise o presente, abre à esperança e apela à acção. Enquanto teologia narrativa, comunica experiências e desperta para novas experiências. Depois, a memória e a narração implicam a solidariedade, uma solidariedade "místico-política": mística, porque referida à história de Jesus; política, porque é praxis transformadora da história e da sociedade, tendo no horizonte a realização íntegra de todos os seres humanos. Percebe-se então que esta solidariedade tenha de ser bifronte: não olha apenas para diante, para o futuro; olha também para o passado, para a história do sofrimento, para os mortos, pois o seu compromisso é com todos: todos reconhecidos como "sujeitos diante de Deus". Anselmo Borges, no DN

O Fio do Tempo

A incompleta República
1. Fruto dos grandes diálogos com Sócrates (470-399) e da sua ética inalienável como coerente projecto pessoal e de sociedade, Platão (428/7-347) escreve A República. Obra colossal, matriz fundadora dos valores do Ocidente, também na convergência com o espírito da incontornável tradição histórica judeo-cristã, A República quer ser a viva aspiração humana de uma sociedade inclusiva onde não existisse lugar para a rejeição. Nos tempos do renascimento, diante da Europa em convulsão guerreira e intolerante, Tomás Moro (1478-1535) inspira-se na obra platónica para escrever a sua Utopia (1516). Também nesta mesma raiz foram projectados os modelos de ciência e sociedade; entre outros, a Nova Atlântida (1627) de Francis Bacon (1561-1626), a Cidade do Sol (1623) de Tommaso Campanella (1568-1639), … 2. É importante ir à raiz da «res-pública» para compreender os desafios da actualidade. Tantas vezes a limitação humana das reacções a determinados sistemas previamente vigentes pode bloquear o verdadeiro significado do que se pretende dizer. Neste sentido, talvez seja necessário destacar que a Revolução Francesa (1789), que ergueu um desejado saudável Estado de Direito, rapidamente primou tanto pela reacção ao passado que não foi «livre», tanto quanto se apregoa. A proclamação ideal de «liberdade, igualdade e fraternidade» espelhou-se em falácia verificada nos nacionalismos consequentes que invadiram a Europa, começando logo com o império francês napoleónico. Saudável a crítica republicana ao absolutismo e aos poderes instalados; engano tremendo a nova absolutização do «republicanismo». 3. A tradução para o feminino da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) valeu a uma mulher corajosa a morte na guilhotina. Afinal a «liberdade» só era masculina e os que não tinham direitos de cidadania também não tinham lugar. É assim maravilhoso relembrar que a autêntica república se alicerça nos Direitos Humanos (1948), não só «do Homem e Cidadão». Ou seja, exaltação exacerbada do «republicanismo» (como se fosse uma nova religião com o “ismo”), não! Porque poderá excluir as diversidades e ideologicamente o reflexo das próprias liberdades… República, Participação, Democracia, Justiça, Dignidade Humana, sim! Este será o caminho da inclusão pessoal e social das culturas, dos sentidos, das religiões, das raças, das políticas… É neste sentido que o 5 de Outubro poderá ser ponto de reflexão em que, enquanto houver indignidade humana e exclusão…, a liberdade da própria república continua incompleta. Ou não será? Depende da distância crítica em liberdade e da verdade de que os sistemas humanos não são valores absolutos.