Mostrar mensagens com a etiqueta Reflexão. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Reflexão. Mostrar todas as mensagens

domingo, 31 de dezembro de 2017

Georgino Rocha - Em Jesus, Deus tem Mãe


Santa Maria, Mãe de Deus

Maria surge na liturgia do início do Ano com o título de Santa Mãe de Deus. Título que distingue a sua especial vocação e singular missão. Título que enaltece a humanidade que ela representa. Título que nos faz intuir e acolher que, em Jesus, Deus tem Mãe. Que alegria e encanto! Que apelo a rezarmos com grande devoção: Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores! Que conforto para o nosso esforçado peregrinar nos tempos de intempérie, como os actuais!
Lucas, o evangelista narrador (Lc2, 16-21), leva-nos à gruta de Belém e faz-nos ver uma cena maravilhosa: o encontro dos pastores com “Maria, José e o Menino”. A sobriedade da descrição realça a grandeza da mensagem. E a alusão à atitude de cada um dos intervenientes configura um quadro muito expressivo da maravilha/mistério ali visualizado. O Menino está deitado na manjedoura. Os pastores contam o que os anjos lhes haviam anunciado. Maria, em silêncio, ouvia e conservava em coração agradecido. José, recolhido a um canto, nem deixa perceber reacção, que será certamente de grande admiração. E todos se maravilhavam pelo acontecido. Os pastores mensageiros regressam à vida quotidiana, à pastorícia, exultantes por tudo o que tinham ouvido e visto, cantando o alcance da experiência vivenciada.
O Menino tem nome. Não é um ser indiferenciado, letra ou número. Nome indicado pelo anjo Gabriel, o mensageiro das boas notícias. Nome que é inscrito nos registos oficiais do Templo de Jerusalém por José e Maria, sua Mãe. Nome que sempre o acompanha e fica como memória perpétua na inscrição da cruz no Calvário, a mando de Pilatos. Com o nome que simboliza a sua vocação pessoalíssima de Salvador da humanidade, “Jesus é circundado, conhece o gesto que simboliza a sua pertença ao povo da aliança, a sua integração nas relações familiares e sociais”. (Manicardi Comentário à Liturgia Dominical e Festiva, p. 39).
Jesus pertence a Israel, o povo que é de Deus, a Maria e a José de quem recebe o carinho e a educação familiares, aos avós e vizinhos com quem convive e se socializa, ao Templo com a sua vasta rede de leis e ritos, de práticas e tradições. Jesus entra na realidade que envolve a vida e tece a sua moldura cultural, abrindo a “janela” do mundo, horizonte maior da sua missão salvadora. E nós a quem pertencemos? Pergunta crucial que reclama uma resposta pessoal e clara. Sempre!
“É preciso reconhecermos o mistério em que estamos envolvidos e pelo qual somos acolhidos; é preciso reconhecermos o mistério do outro; é preciso tornarmo-nos atentos à presença divina que nos visita através das presenças das criaturas. A pertença a Deus passa através de pertenças horizontais, familiares, comunitárias”. (Manicardi, p. 40). As relações com o outro e com a comunidade constituem um teste qualificado da nossa pertença a Deus e da nossa fé, que sai confirmada ou desmentida. Façamos a prova da autenticidade. Veremos que é desafiante.
O nome de Jesus significa “Deus salva”. A narrativa bíblica descreve os factos mais marcantes da história da salvação, que atinge a plenitude na vida e missão de Jesus de Nazaré, com os capítulos finais: o trágico pela morte que o elimina; e o da feliz ressurreição pela aceitação incondicional que Deus Pai lhe mostra na manhã da Páscoa gloriosa. “Se os pais exprimem o que desejam para os filhos, dando-lhes o nome, também Deus indica o seu desejo para toda a humanidade ao indicar a Maria o nome que havia escolhido para Jesus.
Deus salva entrando na condição de quem necessita de ser salvo e selando com ele uma relação de amizade envolvente. “Sem ti, Deus não te salvará”, afirma Santo Agostinho. De que precisamos de ser salvos? E o contexto em que vivemos, o nosso ambiente familiar e o mundo do entretenimento, de violências e guerras?
A paz emerge com toda a força como a maior necessidade de cada pessoa e de toda a humanidade. Maria, a Mãe de Jesus, o Príncipe da Paz, é invocada também como a Senhora da Paz.
Acompanhemos o Papa Francisco que envia à Igreja uma mensagem muito apelativa dedicada aos “Migrantes e refugiados: homens e mulheres em busca de paz”. Diz o Santo Padre: “Com espírito de misericórdia, abraçamos todos aqueles que fogem da guerra e da fome ou se veem constrangidos a deixar a própria terra por causa de discriminações, perseguições, pobreza e degradação ambiental.
Estamos cientes de que não basta abrir os nossos corações ao sofrimento dos outros. Há muito que fazer antes de os nossos irmãos e irmãs poderem voltar a viver em paz numa casa segura. Acolher o outro requer um compromisso concreto, uma corrente de apoios e beneficência, uma atenção vigilante e abrangente, a gestão responsável de novas situações complexas que às vezes se vêm juntar a outros problemas já existentes em grande número, bem como recursos que são sempre limitados. Praticando a virtude da prudência, os governantes saberão acolher, promover, proteger e integrar, estabelecendo medidas práticas, «nos limites consentidos pelo bem da própria comunidade retamente entendido, [para] lhes favorecer a integração».
O Papa Francisco e no seu seguimento muitos dos nossos Bispos insistem na necessidade de promovermos a cultura do encontro que tem o selo da fraternidade sem fronteiras e faz brilhar a chancela da dignidade inviolável da cada ser humano. E que Maria, a Senhora da Paz, nos dê a sua bênção de Mãe de Deus realizada em Jesus, o Salvador.

Georgino Rocha

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Georgino Rocha — Em família, Jesus cresce em sabedoria



Festa da Sagrada Família


Lucas, o narrador dos relatos da Infância de Jesus, traz-nos, hoje, o estilo de vida da família de Nazaré, após a apresentação do Menino no templo de Jerusalém. (Lc 2, 22 e 39-40). E a Igreja destaca este estilo de vida como característica peculiar da Sagrada Família, dedicando-lhe a festa que estamos a celebrar, e como foco inspirador de toda a família humana, especialmente a cristã.
De facto, é neste modelo ideal, que os textos evangélicos apresentam, que se vão “desenhando” os valores estruturantes de toda a convivência humana, relacional, conjugal, eclesial; de toda a família em que as relações interpessoais estão marcadas pela vida de “comunhão” no seio de uma comunidade que São João Crisóstomo qualifica de “igreja doméstica”. Feliz expressão que desvenda horizontes novos que mobilizam as melhores energias humanas. Feliz expressão que mostra a riqueza de uma realidade insubstituível, apesar da fragilidade que a constitui. Feliz expressão que alia a seiva que circula nas veias do corpo aos laços da fé, gerando uma harmonia digna do maior apreço.
Hoje, somos convidados a relançar o olhar atento e carinhoso à nossa família de sangue, a admirar o que lhe dá vigor e consistência e é fruto do nosso cuidado constante, a reconhecer que há sombras a iluminar e limites a superar. Numa atitude sadia, sem ingredientes de fantasia adolescente nem de desilusão acabada. O Natal ensina-nos a viver um realismo confiante.
Lucas condensa o que acontece a Jesus na família de Nazaré em duas simples frases: “ O Menino crescia, tornava-se robusto e enchia-se de sabedoria. E a graça de Deus estava com Ele”. Resumo denso e eloquente, onde brilha a luz que irradia para todo o mundo; onde, para evitar dispersões, se resume o núcleo da novidade cristã, que convém saborear e transmitir.
A família de Nazaré mostra-nos o valor do acolhimento que se abre à surpresa de Deus e, como humana que é, dá o seu consentimento livre após o diálogo de clarificação indispensável. O Evangelho de João faz-nos ver a origem da decisão de Deus quando o Seu Verbo de faz carne. Lucas e Mateus narram com delicados pormenores o que acontece a Maria e José. E, segundo eles, Jesus é o Mestre do acolhimento incondicional. Que oportunidade de mensagem quando tantas atitudes mostram fronteiras fechadas, casas trancadas, corações blindados. A par de tanta abertura e solidariedade, a sociedade e a Igreja, a família e as associações humanitárias ainda persistem na discriminação e na exclusão. Nem todas por igual, é certo. Mas com acentos bem notórios e indignos da nossa dignidade comum.
Maria e José acolhem-se mutuamente: como noivos que aguardam o tempo necessário para a vida em comum; como responsáveis pela vida nascente da parte de Deus em Maria; como fiéis cuidadores do Menino e de suas múltiplas necessidades. O relato deste cuidado traz-nos um fio de ouro a brilhar nas peripécias que vão ocorrendo e nas atitudes de paciência humilde e de coragem confiante que vão cultivando.
Da experiência inicial de acolhimento mútuo, abrem-se aos outros, a Isabel e a João Baptista, a Simeão, a Ana e a tantos nazarenos que lhe batem à porta ou encontram na rua. A vizinhança constitui um bom espaço para o exercício deste valor humano. E a família alargada, também, sobretudo os idosos que o Papa Francisco considera, por vezes, “exilados ocultos” nas suas casas ou na dos filhos, em lares e residências.
Do aconchego na gruta de Belém, apesar da pobreza inclemente, e silêncio contemplativo e da admiração suscitada pelo que se diz do seu Menino, são forçados a partir para o desterro, a enfrentar a intempérie do deserto, a abrigar-se em qualquer recanto do país de destino. São induzidos a regressar à terra natal, a estar em Jerusalém e satisfazer as prescrições legais, a debater-se com desencontros numa das idas ao Templo com o seu Menino, agora adolescente.
As fronteiras do seu coração iam alargando. E as margens do possível atingem uma medida única: a de ver o Filho deixar a casa familiar e começar a sua missão em público, como profeta itinerante nas terras da Galileia. Atitude quem nem os outros familiares compreendem. Só se aceita por amor confiante e dedicação exclusiva porque “a graça de Deus estava com Ele”, afirma Lucas na conclusão da leitura de hoje.
Maria, sua Mãe, deixa-nos um eco da sua estranheza: “Filho, porque procedeste assim connosco?” Pergunta a que Jesus responde com outra que desvenda a nova dimensão que já vive e que se propõe anunciar: “Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?”. O caminho para Jerusalém deixa-nos indicações preciosas e claras sobre este ponto.
Os conterrâneos de Nazaré fixam-se no tempo em que vive com eles, ia à sinagoga, trabalha e convive. “Nascido de Maria, Jesus de Nazaré andou pelos caminhos de terra da humanidade, afirma em síntese de retrato que alarga os tempos iniciais.
Sim é Ele, podemos dizer nós com fé de convicção. A sua Família ficará a ser para sempre o referencial para a nossa humanidade e os seus valores a iluminar os nossos esforços generosos em lhes darmos rosto irradiante de beleza, amor e paz. E a Igreja, como mãe solícita, sobretudo das pessoas mais necessitadas, recomenda o Papa Francisco: “deve pôr um cuidado especial em compreender, consolar e integrar”, evitando agravar a sua situação já tão sofrida. (AL 49).
A família de Nazaré ensina-nos a ser agradecidos. Tal como Jesus tem em José e Maria os seus referentes iniciais, assim todo o ser humano necessita absolutamente de os ter. Não pode haver orfãos biológicos, sociais, culturais ou religiosos. O sentimento de pertença está primeiro. O olhar sorridente da mãe e os braços robustos do pai ajudam a estrurar a personalidade de cada um/a.
Em família, Jesus crescia em humanidade, robustecia-se em sociabilidade e enchia-se de sabedoria. Oxalá se possa dizer o mesmo de todas as crianças do mundo porque beneficiam do suporte de um ambiente familiar tão consistente que os pais e avós lhes proporcionam.

Georgino Rocha

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Georgino Rocha - Descobri quem está no meio de vós



Apelo de João, a testemunha

João, a testemunha de Jesus, está no rio Jordão com as numerosas pessoas que tinham escutado o seu apelo. Arrependidas, querem receber o batismo da penitência por meio do rito da água purificadora. Provindos da outra margem, chegam também sacerdotes e levitas enviados pelos judeus de Jerusalém. São uma espécie de inquiridores, uma delegação credenciada para averiguar o que estava a acontecer, a começar pela identidade de João. E as perguntas, claras e directas, surgem de imediato. E a justificação, também: “Dar uma resposta àqueles que nos enviaram”. Não vinham por sua iniciativa nem agem por conta própria; são mandatados pelos notáveis da cidade e funcionários do Templo; pelos que estavam bem com a situação.

João responde com grande transparência. Faz brilhar a luz de quem é testemunha. Afirma que é a voz e não a palavra nem o profeta, que apenas baptiza na água, que “vai chegar Alguém depois de mim”. E lança o apelo/desafio: “Conhecei-o porque Ele está no meio de vós”. E na sua simplicidade e modéstia, brilha a grandeza da missão do “homem enviado por Deus”, como atesta o início do texto hoje proclamado na liturgia. 

O relato do Evangelho não desvenda a reacção dos sacerdotes e levitas. Mas não é difícil de imaginar. Seria um misto de desconforto e perplexidade, de preocupação interpelante e de curiosa expectativa. Menos ainda se fica a saber a atitude dos judeus de Jerusalém depois de receberem a informação. Para o narrador isso não interessa, pois quer centrar o leitor no núcleo da mensagem e não oferecer motivos de dispersão. “Alguém está no meio de Vós”. João é a testemunha. O local da ocorrência é Betânia, além do Jordão. É preciso reconhecê-lo.

A certeza de que Jesus está no meio de nós, ainda que de  forma anónima e despercebida, desperta um duplo sentimento: O da alegria que preenche o coração humano e o inunda de esperança; e o da busca que a consciência iluminada pela fé está chamada a fazer. São estes os alicerces que a liturgia de hoje pretende realçar e celebrar.

A alegria tem a sua fonte primeira no encontro pessoal com Jesus Cristo, no diálogo de amizade consequente, na aceitação dos seus ensinamentos, no seguimento do seu estilo de vida. A consciência, que quer ser livre e agir responsavelmente, precisa da “alavanca” da verdade e do amor, da compreensão de si e da relação correcta com os outros e seus contextos culturais e sociais. E fica-nos o apelo/convite: “Alguém está no meio de vós”, isto é no santuário da consciência pessoal e comunitária, familiar e colectiva onde predomina o bom senso e o bem comum. Por isso, fazei silêncio no vosso coração. Há tantos ruídos a habitar-nos. Sobretudo em certos ambientes. Protegei-vos para O reconhecer e escutar. Com Ele, é mais fácil perceber que as vozes do tempo são portadoras de aspirações genuínas onde ressoa o Espírito de Deus. E, como João, sede testemunhas da luz, sempre pronta a irradiar. Há tanta treva a semear confusão.

“O mais grandioso que pode fazer um ser humano neste mundo, afirma J. M. Castillo, é ser testemunha de Jesus, dizer com a própria forma de vida que Jesus é a esperança que nos resta e o futuro que temos”.

Ser testemunha é ver “como a terra faz brotar os germes e o jardim germinar as sementes” e descobrir: “Assim o Senhor Deus fará brotar a justiça e o louvor diante de todas as nações”, afirma Isaías na primeira leitura.

A certeza de que o Senhor está connosco e realiza o que promete, leva o salmista a exultar de alegria e a fazer-nos rezar o hino de Maria de Nazaré, a Senhora do Advento, a Mãe de Jesus que vai chegar no Natal que se aproxima. E com esta oração singular, a contemplar o modo de agir de Deus que realiza a salvação de cada pessoa e de toda a humanidade a partir dos humildes em relação a si, dos mansos (activos não violentos) em relação aos outros e às injustiças, dos famintos de dignidade que, reconhecida e assumida, visa derrubar as estruturas do poder opressor e transformar a ordem estabelecida para que brilhe a fraternidade humana e a harmonia da criação.

Escuta o apelo de João. Medita na atitude de Maria. Descobre e reconhece que Jesus está no meio de nós e quer agir connosco e por nós.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Georgino Rocha - Escutai a voz do Profeta



ENDIREITAI OS CAMINHOS DO SENHOR

João Baptista surge com todo o seu vigor no início do Evangelho de Marcos que, no 2º domingo do Advento, a liturgia da Igreja nos apresenta. (Mc 1, 1-8). Surge como o profeta que realiza o anúncio vaticinado por Isaías, durante o cativeiro do povo judeu na Babilónia. Surge como garantia de que os relatos sobre a vida de Jesus estão na sequência dos factos narrados nos textos sagrados, já conhecidos. Surge para lançar o brado definitivo: “Endireitai os caminhos do Senhor, Ele está no meio de nós”.

Marcos chama o leitor a iniciar o percurso da descoberta de Jesus Cristo, ouvindo o apelo de João Baptista, acolhendo as vozes dos acompanhantes que testemunham os factos por Ele realizados na itinerância da missão, e abrindo o coração para saborear a confissão pública do Centurião: “Realmente, este é o Filho de Deus!”.

A liturgia da Igreja organiza as celebrações de modo sábio e pedagógico. Em cada domingo apresenta um episódio emblemático que visualiza a vida de Jesus, configura o seu modo de proceder e desvenda a sua realidade profunda: Ser Filho de Deus. E o leitor é interpelado, convidado a parar, meditar, reconsiderar e a professar a sua fé, se chegar a esta feliz conclusão. Como o Centurião romano.

“Endireitai os caminhos do Senhor”. É nos caminhos da vida que se encontra Jesus Cristo. A vida, no seu dramatismo provocante, está recheada de surpresas que despertam a sonolência que, frequentemente, nos assalta. E a ensurdecedora publicidade comercial consumista avoluma. E Marcos convida-nos a irmos aos começos, a verificarmos as raízes que nos garantem a liberdade em segurança, a escutarmos as boas notícias da verdade que Jesus nos comunica.

O que será preciso pôr direito na vida de cada um de nós, nas famílias, nas instâncias sociais e políticas da sociedade, no sistema educativo como serviço público de qualidade, pertença a quem pertencer? Que será preciso endireitar na Igreja e suas comunidades e movimentos para que nas pessoas e na sua instituição brilhe mais intensamente a transparência do Evangelho de Jesus?

Os caminhos têm de ser visíveis e transitáveis, planos e assinalados. Por isso, exemplifica Isaías na 1ª leitura: Que o retorcido seja posto direito, o vale seja elevado, o monte abatido, as veredas escarpadas sejam aplanadas. E da morfologia do terreno, somos convidados a examinar a integralidade da vida humana, sobretudo a consciência iluminada pela razão e pela fé cristã. A mudança há-de ser verificada pelo arauto chamado a proclamar a feliz notícia: O Senhor vem na sua glória com o prémio da vitória. O relato de Marcos confirma esta visão profética com os factos narrados no seu Evangelho que abrem caminho à missão da Igreja, de cada um de nós.

Aplanai, facilitai, favorecei o caminho da vida aos que estão abatidos e perplexos, são rebaixados na “cotação” social e organizativa, e têm de esconder a vergonha que os assalta pela desconsideração sentida a partir da cultura do êxito a baixo preço e de consumo no instante.

“Perante a realidade concreta que vivemos, neste mundo que se apresenta fragmentado, violento, injusto e estilhaçado… a Palavra de Deus faz-nos o convite a esperar em Deus que nos ama e nos promete uma realidade reconciliada, transformada pela justiça, uma realidade como a que canta o Salmo 84: de paz, de misericórdia e fidelidade. Uma esperança ancorada em Deus e vivida no coração da realidade”, afirma Mariña Rios Alvarez, mulher teóloga. (Homilética 2017/6, p. 745).

É uma esperança que nos faz ver com profundidade a vida, as pessoas, os conjuntos sociais e religiosos, a cultura de “espuma da onda” que deslumbra mas desumaniza e aliena, o Evangelho cheio de energia transformadora da instituição eclesial chamada a agilizar o serviço de animação missionária.

É uma esperança que nos impele a consolar os tristes e amargurados – e são tantos! – a acompanhar as dores sofridas pelas vítimas de si mesmas e das circunstâncias envolventes, a ajudar a abrir horizontes de liberdade a quem não consegue erguer o olhar e ver uma nesga de luz que possa augurar um futuro feliz.

“Endireitai os caminhos do Senhor”, exorta o profeta, pois eles são os nossos caminhos. É no caminho, e não na acomodação, que se dá o encontro. E a nossa vida irradiará a misericórdia do Senhor e todos juntos contemplaremos “a justiça (que) caminhará à sua frente e a paz (que) seguirá os seus passos”. (Salmo 84, proclamado na liturgia de hoje). Que mensagem entusiasmante! Experimenta.

Georgino Rocha

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Georgino Rocha — O Senhor vem. Acolhe-O e com ele prepara o teu futuro


A Igreja destaca o encontro definitivo com Jesus, o Senhor, para o inicio do Ano litúrgico. É uma atitude muito humana, de sábia pedagogia. Semelhante à do corredor que se lança na pista tendo bem presente a meta a alcançar. Os seus esforços estão todos ao serviço do êxito pretendido: escolha da posição no grupo de colegas que correm em conjunto, marcação de ritmos, reabastecimento de energias, aceitação benevolente do apoio dos circunstantes; tudo converge em alcançar o objectivo desejado; tudo está animado pela esperança activa e vigilante; tudo a aguardar que o sonho se converta em realidade e a surpresa supere a expectativa. Em cada passo, está já o começo da meta.

Marcos, o autor dos relatos dos episódios da vida de Jesus que se lêem nas celebrações dominicais deste ano, apresenta uma parábola em que visualiza a atitude dos discípulos perante o que vai acontecer. Situa-a no conjunto dos últimos ensinamentos de Jesus, antes de entrar no processo da paixão. Recorre a um estilo sóbrio e persuasivo. Aduz o exemplo da figueira estéril, do ladrão inclemente. Anuncia que haverá sinais a observar e a interpretar: sinais característicos dos tempos da grande tribulação, típicos de uma nova situação a emergir. E conclui: Vigiai para que não terdes a consciência ensonada e serdes surpreendidos.

A parábola é emblemática e breve a sua narração. (Mc, 13-33-37). Um homem faz uma viagem e confia os cuidados da casa aos seus empregados, assinalando a tarefa de cada um. Encarrega o porteiro do cuidado especial de vigilância. E deixa-os na expectativa de quando será o regresso. Marcos, tendo presente as quatro vigílias da noite que os soldados romanos observavam para mudar de turno, vai mencionando o cair da tarde, a meia-noite, a madrugada, o amanhecer. Pode ser a qualquer hora. Fica tudo em aberto. Não porque o dono da casa fomente a ansiedade ou queira provocar o sobressalto. Seria masoquismo. Mas porque ama os seus empregados e quer que desenvolvam capacidades adormecidas em tempos de acomodação, de certezas rígidas, de seguranças costumeiras; capacidades como a atenção ao que acontece à nossa volta e mais longe, o discernimento dos sinais que interpelam a nossa indiferença, a paciência no tempo de espera, a confiança que o encontro se realizará e que a festa do regresso se celebrará, a aventura de avançar na vida como se o Invisível se deixasse ver. E o dono volta. E o advento do Senhor Jesus acontece em Natal de plenitude.

Entretanto, prestai atenção: Vigiai! Que a surpresa não vos apanhe de improviso pela vossa dormência e indiferença. Esta consigna dada aos empregados, passa aos discípulos ouvintes e alarga-se a todos sem distinção. “O que vi digo a vós, digo-o a todos. Vigiai!”.

Vigiai, cuidando da minha casa feita em harmonia e biodiversidade, confiada desde os alvores da criação ao homem e à mulher, espelho da minha imagem e semelhança; velai para que seja um jardim onde dê gosto viver e conviver em cordial relação de amizade e gestão de recursos; velai pela hierarquia de verdades e não vos deixeis confundir por ideologias que visam alterar todo o sistema orgânico deste conjunto vital que vos deixo como herança.

Tende cuidado convosco. Respeitai-vos mutuamente como irmãos em humanidade, que eu quero ajudar a salvar. Que não haja sangue inocente derramado por ódio, retaliação, perseguição de consciência ou guerra de religião. Sois todos irmãos! Removei o que pode provocar distúrbios semelhantes. Vigiai pelo sustento de todos, sem distinção: comida saudável suficiente, água potável, cuidados de saúde integral, economia solidária sustentável, convivência em harmonia e estima mútua, abertura aos valores que expressam a nobreza humana de cada um, resposta consciente ao amor que Deus Pai vos tem. Sois Seus filhos e meus irmãos! Velai pela herança que vos confio. Olhai que nos espera um futuro de família em comunhão.

Aceitai a minha companhia, feita dom e guia, graça de misericórdia e amor de reconciliação. Desenvolvei a atitude teologal da fé, esperança e caridade. Reuni-vos como irmãos em assembleias dominicais, lede a palavra que vos deixo e comungai com dignidade o sacramento do meu corpo e sangue, a Eucaristia. É alimento para o vosso caminhar de peregrinos confiantes. Valorizai a Igreja, instituição em transformação missionária para ser cada vez mais serviço de salvação universal. Não vivais de saudades melancólicas. Avancemos, como atletas no estádio. Lembrai-vos do exemplo de Abraão, Moisés e tantos outros. Lede com atenção a carta aos cristãos de Roma que evoca a memória de quem pela fidelidade a Deus no quotidiano se tornou verdadeiramente exemplar. E atendei ao testemunho de Paulo, meu apóstolo, que se porta, como corredor de fundo: “Irmãos, não acho ter já alcançado o prémio, mas uma coisa faço: esqueço-me do que fica para trás e avanço para o que está adiante. Lanço-me em direcção à meta, em vista do prémio do alto, que Deus nos chama a receber em Jesus Cristo” (Fl 3, 13 e 14). A meta está já no primeiro passo da corrida. Procuremos iniciar bem e manter bom ritmo. A árvore está contida no gérmen da semente. Como o agricultor solícito, tratemos dela com cuidado. A surpresa do futuro prepara-se no presente.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Georgino Rocha — Valorizar os dons que Deus te confia



Jesus quer deixar claro quem é Deus. Está na parte final dos seus ensinamentos. Tem consigo os discípulos e, neles, todos os que virão a acreditar na sua palavra. Como nós, hoje. E recorre a três parábolas muito concretas: A da festa nupcial, narrada no domingo passado, a da avaliação final ou do juízo da humanidade e do universo, no próximo domingo que a Igreja celebra como a Festa de Cristo Rei, a de hoje dedicada aos talentos confiados aos servos por um homem rico que vai fazer uma viagem. Por indicação do Papa Francisco este domingo é consagrado especialmente aos Pobres, o que indica uma chave de leitura para o texto evangélico
Mateus elabora uma excelente catequese para os judeus convertidos, destinatários preferenciais do seu evangelho. E faz uma narração em que praticamente todos os elementos têm um especial significado. Vale a pena acompanhar o seu precioso relato.
Um homem parte de viagem. (Mt 25, 14-30). Certamente teria razões sérias: Gosto pela aventura, cansaço das rotinas da vida, tentativas de alcançar novos benefícios, ou o desejo de mostrar uma faceta do seu coração: a confiança nos empregados e no seu agir responsável? Tudo aponta para esta última hipótese. Os dons entregues gratuitamente têm apenas em conta as capacidades dos servos, nem sequer as necessidades ou outras circunstâncias. São à medida de cada um. Sem exigir nada que a ultrapasse. Não pretende sobrecarregar ninguém, nem provocar cansaços estéreis. Nada de “burnout”. Mas uma excelente oportunidade para que as capacidades possam desenvolver-se, afirmar-se, atingir a maturidade. Que propósito sublime e beleza confiante!
A viagem demora o tempo suficiente para que os servos possam realizar o trabalho encomendado. Certamente que, entretanto, vários sentimentos o assaltam, antes de vir encontrar-se com eles. Mas a confiança na sua atitude responsável prevalecia. E que grande alegria se apoderou do seu coração quando ouvia o relato do que havia acontecido aos dois primeiros. Tinham conseguido o pleno: Os cinco multiplicaram-se por outros cinco; o mesmo acontecendo aos dois que alcançaram outros dois. O dono tem uma reacção curiosa, cheia de mensagem: Não reclama nada, mas tudo entrega de novo: as mais-valias e os talentos confiados. Com provas tão positivas, os servos podem desempenhar serviços maiores e saborear a alegria exuberante do seu senhor. Que momento tão consolador! Que desfecho tão surpreendente! Que apreço pela confiança serena e activa!
O mesmo não acontece com o que havia recebido o talento proporcional às suas capacidades e actua de acordo com as regras que conhece: Sabia que és severo; tive medo e salvaguardei o teu talento; aqui o tens. Mateus ao destacar as razões invocadas deixa a claro a força paralisante do medo, a asfixia das capacidades que provoca, a esterilidade da vida respaldada na segurança e na acomodação. Razões que podem iluminar muitas atitudes e comportamentos actuais, e, à maneira de “chicotada psicológica”, abanar consciências adormecidas. E o dono complacente aceita a medida indicada pelo servo medroso. As razões que acompanham a sua declaração visualizam as trevas do seu coração, a solidão em que se colocou, o choro da lamentação consentida. “Tudo isto revela o que impediu o servo de entrar numa relação de confiança”, que é um dos objectivos da parábola. (Vers Dimanche, nº 469).
Deus oferece-nos a possibilidade de viver já a sua alegria. Espera que correspondamos à confiança que tem em nós e cuidemos dos seus dons que enriquecem a nossa humanidade: Os da criação e das criaturas, os da saúde integral e da educação libertadora, os da solidariedade operativa e da caridade a toda a prova, os da celebração dos sacramentos e da participação na missa dominical, os da graça divina como presença revigorante das nossas forças peregrinas.
O Papa Francisco envia-nos uma mensagem especial para o “Dia Mundial dos Pobres” que celebramos, hoje. Dela retiramos este parágrafo persuasivo: “Benditas as mãos que se abrem para acolher os pobres e socorrê-los: são mãos que levam esperança. Benditas as mãos que superam toda a barreira de cultura, religião e nacionalidade, derramando óleo de consolação nas chagas da humanidade. Benditas as mãos que se abrem sem pedir nada em troca, sem «se» nem «mas», nem «talvez»: são mãos que fazem descer sobre os irmãos a bênção de Deus. (da mensagem do Papa Francisco para o dia Mundial dos Pobres, nº 5). Os dons de Deus estão nas nossas mãos!
Georgino Rocha
 

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Georgino Rocha — Vós sois todos irmãos

Carta de São Paulo aos cristãos de Tessalónica


Jesus, perante a atitude dos fariseus, endurece o discurso. Deixa as parábolas, as perguntas pedagógicas, as respostas provocantes. Adopta um estilo directo. Dirige-se às pessoas, aos líderes do povo, aos mestres da Lei e oficiantes do culto. E faz um relato das suas principais atitudes para, em contraste, deixar claro aos discípulos como se hão-de comportar na nova comunidade que vai surgir.

Mateus organiza o discurso em duas partes: a primeira está centrada na denúncia da hipocrisia dos actuais responsáveis, ali representados; a segunda focaliza-se em três advertências que descrevem o estilo de vida anunciado por Jesus. (Mt 23, 1-12). E projecta a sua luz nas comunidades cristãs locais e na Igreja universal de todos os tempos. Luz que brilha com nova intensidade no modo de ser e de agir do Papa Francisco e de muitos outros. Oxalá que também em nós!

A denúncia é contundente: “Não os imiteis”. Dizem e não fazem. Impõem fardos aos outros e não os carregam. Gostam do espavento e da adulação. Puxam por títulos e honrarias. Tudo a encher o olho, mas o coração tem outros amores. Não seja assim entre vós. Apesar disso, Jesus aconselha a ouvir os seus ensinamentos, a observar o que prescrevem. Manifesta o respeito por quem se senta na cátedra de Moisés ou seja tem a responsabilidade de transmitir ao povo fielmente a mensagem bíblica, apesar da fragilidade.

A coerência de Jesus é clara. Mas a denúncia é mais eloquente e constitui espelho polido de quem sabe umas coisas e faz outras: apreciar a verdade e viver na mentira, conhecer o valor da assembleia dominical e não tomar parte na celebração da missa ou saber que é preciso comungar dignamente e não se importar com o estado da sua consciência, rectamente formada. O risco é, como adverte São Paulo, assinar o decreto da própria condenação. (I Cor. 11, 29).

O estilo da comunidade dos discípulos de Jesus contrasta radicalmente com o dos fariseus. “Sois todos irmãos”, declara o Mestre em tom solene. Para sempre. O que vai além disto é lixo que corrói o melhor da novidade cristã. A história, mesmo recente, regista uma longa lista de elementos corrosivos. E assim lança-se o descrédito sobre a beleza da mensagem, a fraternidade humana, o caminho de liberdade, o encanto do serviço por amor, a grandeza de ser o último por opção. E surge o desabafo acusatório: “Dizem, mas não fazer”.

A radiografia das vulnerabilidades dos cristãos e suas famílias, dos movimentos e comunidades, como outrora as dos judeus destinatários da profecia de Malaquias, hoje proclamada na liturgia, tem características bem descritas pelo Papa Francisco. Enumeram-se algumas referidas aos padres: O ministério vivido como actividade funcional; o rigorismo legalista; o perigo da banalização nas celebrações sacramentais; o ritualismo rigoroso; a escassa predisposição para a oração; a distância dos pobres, a escassa maturidade afectiva, o apego ao dinheiro, e muitas outras, a par de incontáveis exemplos de doação generosa e, por vezes, heroica. “Nos escritos do Papa pode encontrar-se o melhor mapa da realidade sacerdotal que há que renovar em cada dia”. (J. Rubio Fernandez, Homilética 2017/8, p. 641).

Paulo, na 1.ª carta aos cristãos de Tessalónica, mostra uma comunidade que vive o estilo novo preconizado por Jesus. A mãe que cuida dos filhos, em família, é escolhida para exemplo a imitar entre os cristãos: os que desempenham os diversos ministérios e serviços; e os que têm autoridade e os outros cristãos. “Pela viva afeição que vos dedicamos, desejaríamos partilhar convosco, não só o Evangelho, mas a própria vida, tão caros vos tínheis tornado para nós”, diz o autor da carta em comovente e entranhada relação de amor.

O contraste com a atitude dos fariseus é radical. Paulo vive o ensinamento de Jesus, sem restrições. A novidade cristã começa a brilhar e quer irradiar no mundo. Também hoje. E surgem notas típicas que nos ajudam a reacender a esperança. De acordo com os textos deste domingo, são de realçar as seguintes.

A primeira diz respeito à delicadeza de relação entre as pessoas e ao espírito de serviço das instituições eclesiais num mundo em que predomina o anonimato e a burocracia, a senha e a lista de espera. Os responsáveis pastorais, padres e leigos, estão chamados a fazer, pelo exemplo, o contraponto a esta engrenagem, a aquecer e libertar tantos corações tolhidos pelas circunstâncias e amarrados pelas normas.

A segunda está relacionada com a apresentação da mensagem. Em linguagem acessível, leve e apelativa. Ela é verdadeiramente a boa nova do Senhor para o seu povo. Convém evitar tudo o que possa desviar esta centralidade ou enfraquecer a sua frescura e atracção. Não tem cabimento qualquer culto à personalidade do mensageiro, embora constitua o seu rosto mais visível, a voz mais próxima, a ponte mais acessível com a realidade a iluminar e a coragem a refazer.

Paulo lembra que “foi a trabalhar noite e dia que vos pregamos o Evangelho”, o que suscita a gestão do tempo, as prioridades da agenda, a coordenação de reuniões. A este propósito seria bom trazer à nossa consciência perguntas como: Que atenção damos às pessoas doentes ou idosas, aos presos e privados de companhia, aos jovens desejosos de rasgar horizontes ao futuro e aos adultos absorvidos nas teias do presente. E quem cuida dos cuidadores, tão frágeis como qualquer outra pessoa responsável. O nosso tempo é gasto como tempo de Deus?

Ontem, realizou-se a “Caminhada pela Vida”. O Papa Francisco quis associar-se e enviou uma carta pessoal aos responsáveis, cristãos e outras pessoas amigas das grandes causas da vida, em que manifesta um só desejo: Que “apareçam sempre mais homens e mulheres de boa vontade que abracem corajosamente a verdade e valor que cada ser humano tem para Deus, sustentando tal verdade com factos e razões científicas e morais num dramático apelo à razão, para se voltar ao respeito de cada vida humana”, da concepção à morte natural, “na batalha contra o aborto, eutanásia e demais atentados à vida humana”. A defesa da vida constitui um campo excelente para provarmos que somos todos irmãos.

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Georgino Rocha — Sereis felizes por minha causa




«Felizes os que cultivam a mansidão e a humildade, sobretudo em situações de irritabilidade e violência, e optam pela intervenção directa não violenta, mas persuasiva e paciente. Em todas as situações, sobretudo na família e na escola, no ambiente de trabalho e de lazer. Sem esquecer o desporto e as suas claques. Mansidão que nos faz mais sensíveis à relação com as pessoas e a natureza, à contemplação do belo e da harmonia do universo, do sol poente e do abraço amigo.»


A liturgia da festa de todos os Santos faz-nos ver uma multidão imensa, que “ninguém pode contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas”. Identifica-os como os “melhores filhos da Igreja”. E garante que são para nós exemplo a imitar e apoio para a nossa debilidade. Eles alcançaram a meta e nos estamos a caminho, unidos pela paixão que dá sentido à nossa vida: Mostrar por acções que a novidade do Evangelho de Jesus humaniza as relações humanas e robustece os esforços de quem colabora na construção de uma sociedade de todos/as, em que a dignidade se espelha na liberdade responsável de cada um/a.

O caminho a percorrer é claramente indicado por Jesus aos discípulos e à multidão que o acompanha. Quer dizer é caminho para todos. Mateus apresenta-o no início do “manifesto” programático do Reino (Mt 5, 1-12) no cimo da montanha, estando Jesus sentado, como mestre, à semelhança de Moisés. E realça a fluência do discurso que, em sequência progressiva, proclama as vias concretas da felicidade. Vias relacionadas com as situações de vida presente, embora abertas ao futuro definitivo de Deus. E destaca a admiração dos ouvintes perante a clareza e a autoridade do ensinamento apresentado. Reacção que brota certamente do contraste com o que outros mestres faziam e se divulgava como modo normal de ser feliz. Reacção que, certamente, se verifica entre nós que queremos levar a sério as bem-aventuranças da felicidade. Vamos salientar o contraste possível que se encontra na leitura do Evangelho de hoje.

Felizes os que vivem em espírito de pobreza e sobriedade, relativizando a riqueza material e apreciando os valores de realização integral de todas as pessoas, valores que “não se compram, nem se vendem, não se pesam nem medem”. Valores que brotam de um coração educado e bondoso, que desenvolve as suas capacidades e as coloca ao serviço dos outros, necessitados de ajuda e atenção. É a felicidade que resplandece no estilo de vida e nas atitudes de Jesus como ele irá testemunhar no exercício da missão pública.

Felizes os que cultivam a mansidão e a humildade, sobretudo em situações de irritabilidade e violência, e optam pela intervenção directa não violenta, mas persuasiva e paciente. Em todas as situações, sobretudo na família e na escola, no ambiente de trabalho e de lazer. Sem esquecer o desporto e as suas claques. Mansidão que nos faz mais sensíveis à relação com as pessoas e a natureza, à contemplação do belo e da harmonia do universo, do sol poente e do abraço amigo.

Felizes os que têm lágrimas de solidariedade, de compaixão e proximidade para com os que sofrem, vítimas de maus tratos e de carências sem fim, sobretudo de amor compreensivo e libertador; lágrimas de revolta pacífica que gera as mais ousadas atitudes e despertam a letargia dos insensíveis e dos indiferentes, especialmente dos responsáveis por minorar os males verificados. A alegria do coração brota do compromisso com os débeis e ostracizados, como fica claro no exemplo de Madre Teresa de Calcutá.

Felizes os que escolhem percorrer os caminhos de justiça porque sentem o coração necessitado de mais e melhor que vem de Deus e quer ser repartido em medidas humanas. “Há uma íntima felicidade quando sentimos fome de Deus, fome de paz, fome de justiça, pois neste desejo se vislumbra a felicidade que, por vezes, vemos no sorriso de uma criança que tudo espera da sua mãe; ou de um idoso e de um doente que dependem de quem os cuida e aguardam um sorriso ou uma carícia”. J. Rubio Fernandez, Homilética, 2017/5, p. 628.

Felizes os que são misericordiosos, dão e recebem ajuda que humaniza, vence a dureza e a frieza do coração, abate muros e ergue pontes de comunhão, corre riscos de se deixar contagiar pela bondade que irradia de tantos rostos, às vezes, cheios de rugas de amargura e esquecimento. Deixar-se ajudar quando é necessário é experimentar a felicidade de ser frágil e estar dependente e proporcionar a outras pessoas a oportunidade de serem misericordiosos. Como os avós em relação aos familiares, os idosos em relação às gerações novas.

Felizes os que cuidam do coração e educam os desejos, apreciam a limpeza interior e a transparência, não pactuam com as intenções escondidas e malévola, abominam a mentira e o calculismo interesseiro, a cegueira que não olha a meios para alcançar os fins. O coração feliz tem outro bater e segue outro ritmo: o da simplicidade e da singeleza, da pureza no sentir e no ver, que são reflexo em nós do olhar de Deus.

Felizes os que promovem a paz assente no respeito pela justiça, que se pôem a caminho para dar e receber o perdão e promover a reconciliação, dos que estão prontos a sanar as feridas provocadas e ainda não cicatrizadas, as ofensas não reparadas. A felicidade dos violentos é efémera. A paz da consciência, fruto da compreensão recta das relações humanas à luz dos critérios do Evangelho, tem garantias duradoiras: “Serão chamados filhos de Deus”, afirma Jesus.

Felizes os que tém a coragem de ser coerentes com as consequências do bem feito e da justiça praticada, aceitando o sofrimento que lhes é imposto, e a perseguição que lhes é movida. O reino dos Céus brilha na sua atitude paciente e silenciosa que aguarda a vez e a voz de Deus a dar-lhes razão. Então será descoberta a verdade que certamente confundirá os intriguistas violentos.

Jesus conclui o seu ensinamento com uma certeza reconfortante: “Felizes sereis, quando por minha causa…disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa”. Como Ele, os que perdedores deste mundo são os verdadeiros vencedores. As bem-aventuranças são preciosos marcos do nosso caminhar. A festa de todos os Santos dá-nos a garantia de que é possível vivê-las agora. A celebração dos Fiéis Defuntos mostra-nos claramente que há um prazo para o fazer. Depois, será tarde. Sejamos coerentes com a mensagem que nos chega.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Georgino Rocha — AMAR: Critério único da vida



Jesus manifesta uma paz de espírito admirável, transmite uma liberdade interior brilhante, reage serenamente à provocação dos fariseus em busca de uma prova acusatória. O episódio narrado por Mateus ocorre nas imediações do Templo. A provocação surge na forma de pergunta sobre o maior mandamento. Pergunta fundamental não apenas para os Judeus, mas para nós, os seres humanos, chamados a realizar a nossa vocação ao amor. Mt 22, 34-40.

O amor é a energia vital que nos humaniza e enobrece, tem a sua fonte em Deus e manifesta-se em opções e critérios, atitudes e gestos concretos. É dinamismo de relação que revigora o laço solidário que nos une e recheia a consideração que nos dispensamos. É alimento de esperança no futuro e força de envolvimento no presente. Sem ele, a pessoa enclausura-se no egoísmo e a sociedade empobrece no tecido por onde flui a seiva do desenvolvimento integral. Sem ele, o coração faz-se insensível e a vontade indiferente, a inteligência rígida e o desejo fantasioso, as leis espartilhos e os mandamentos imposições insuportáveis. A vida entrincheira-se no reduto autorreferencial e perde horizontes de sentido, cultivando apenas o jardim da zona de conforto individualista.

Os fariseus dirigem-se a Jesus e querem saber qual é o maior mandamento, pois tinham 248 preceitos e 365 proibições, ou seja 613, tal era o seu empenho em prever todas eventualidades na vida e assim cumprir a vontade divina. Preocupação legítima para um regime de religião controlada, de sistema vigiado, de segregação de “puros e impuros”. Mateus, porém, adverte que a pergunta entranhava certa malícia, pois era para apanhar Jesus em algo acusatório. A resposta surge diáfana e serena como se nada de especial estivesse a acontecer: Amar a Deus e ao próximo como a ti mesmo. E para não haver dúvidas, acrescenta: Nestes dois mandamentos se encerra a Lei inteira e os profetas, ou seja toda a revelação conhecida da vontade de Deus. Resposta sublime. Deixa desarmados os inquisidores. Terão ficado satisfeitos ou amargurados, esclarecidos ou intrigados? Tudo é possível. Mas não desarmam e as próximas cenas apontam para a retaliação, a prisão e a condenação.

Jesus põe a claro que há um só amor que se manifesta em intensidades diferentes. Concretamente, a resposta indica três: Amar a Deus com doação total, pois Ele toma a iniciativa de vir ao nosso encontro, amar os outros sem reservas, tendo como referência o bem que cada um deseja para si. Ou dito de outro modo: Aprecia o teu bem com o critério de Deus, respeita e solidariza-te com o próximo com a medida que usas para ti mesmo, reconhece que o amor te faz entrar e viver no circuito de amor próprio de Deus, comunhão das três pessoas divinas.

O amor abre-nos a Deus de quem procedemos e com quem nos relaciona, faz-nos ver os outros humanos como irmãos empenhados no mesmo bem, e impele-nos a apreciar as criaturas e a criação, o ambiente e a natureza como herança a valorizar e a transmitir às próximas gerações. Por isso, o amor abrange a pessoa toda e deve ser cuidadosamente apreciado como valor maior e educado como dimensão superior da nossa comum humanidade. Outras dimensões que certa imprensa “cor-de-rosa” difunde e de que se alimenta serão sempre pirilampos de luz intermitente a brilhar na noite escura do gosto instantâneo, do prazer descartável, do biblô de satisfação imediata.

O amor de Deus é derramado em nossos corações e quer irrigar as veias da humanidade e fazer surgir a correspondente civilização, espelho da nossa dignidade. A construção do sociedade passa por aqui. Só o amor edifica, garante São Paulo ( 1Co 13, 4-7) . Escala de valores, opções de vida, critérios de acção, atitudes, sentimentos e palavras hão-de ser reflexo acessível nos ambientes da família e da convivência social, do lazer e da profissão. Hão-de ser veiculados pela educação e pela comunicação, pela relação de proximidade benevolente e pela atenção solícita a tudo o que diz respeito ao que acontece a todos, sobretudo aos mais pobres, como recomenda o livro do Êxodo na 1ª leitura deste domingo.

Inicia-se, hoje, a semana dedicada à educação cristã. Os nossos Bispos enviam-nos uma mensagem com o título expressivo: «A Alegria do Encontro com Jesus Cristo». É dela que retiramos alguns parágrafos que nos fazem sentir o realismo do amor, sentido único da vida.

A alegria do encontro é, antes de mais, a alegria de nos sentirmos amados, de modo pleno e incondicional. Mesmo no pecado? Então ainda mais!... já que a carência é maior... É também a alegria pelo “novo horizonte” e o “rumo novo” que esse amor dá à nossa vida… É, enfim, a alegria de vermos a nossa vida a prolongar-se nas vidas daqueles a quem a damos: os pais nas dos filhos; os catequistas nas dos catequizandos; os professores nas dos alunos; todo o educador nas dos educandos (cf. CEP “Catequese: A alegria do encontro com Jesus Cristo”, IV). Uma alegria que cresce, quando também eles se dão – a partir do encontro com Cristo, mediado por cada um de nós, que então pode, por isso, dizer: É Cristo que vive em mim (Gl 2, 20)… Acolhamos, por tudo isso, o convite do Papa Francisco a “todo o cristão, em qualquer lugar que se encontre, a renovar (…) o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de o procurar no dia-a-dia sem cessar” (A Alegria do Evangelho, n. 3).

Georgino Rocha

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Georgino Rocha — Admirados com a resposta de Jesus. Aprecia!


A figura e a inscrição na moeda que os fariseus mostram a Jesus constituem o ponto de partida para o ensinamento que o Evangelho de hoje nos transmite. (Mt 22, 15-22). As autoridades queriam desforra pelos desafios que as atitudes de Jesus lhes lançavam. Haviam tentado apanhá-lo já em alguma questão acusatória. Agora colocam-lhe a pergunta envenenada: “É lícito pagar o imposto a César ou não?”. São seus porta-vozes alguns fariseus e outros partidários de Herodes, aliados de circunstância para a armadilha dar resultado.

E têm tudo bem pensado. Procuram captar a benevolência de Jesus, elogiando-o com menções honrosas verificáveis: Sabemos que és verdadeiro, ensinas o caminho de Deus, não fazes acepção de pessoas porque vais para além das aparências. Dir-se-ia que para começar não havia melhor entrada. Mas palavras são palavras que podem esconder a realidade. E esta era a intenção dos “inocentes louvaminhas”, intenção que Mateus, o narrador do relato, apresenta de modo claro: Os fariseus fizeram um plano para apanhar Jesus.

Plano bem urdido, temos de reconhecer. Logicamente qualquer resposta seria comprometedora. Se Jesus dissesse: Não se deve pagar o imposto, seria acusado de subversivo; pelo contrário; se concordasse com o pagamento, não sintonizava com os gemidos do povo subjugado pelas forças do Império Romano. De qualquer modo, ficava sempre mal visto e com provas condenatórias. Que momento delicado vive Jesus. E tem de tomar uma decisão urgente. Que terá sentido no seu coração apertado? Que critérios se podem descortinar na sua atitude? Ela vai ser desconcertante e os seus adversários ficam espantados. De admiradores “louvaminhas”, passam a cúmplices acusados, de homens verdadeiros a hipócritas denunciados, de tentadores disfarçados a gente desmascarada. E para cúmulo, diríamos com humor, a sua reacção a este “tratamento de excelência” é de admiração e não de confusão, como seria normal.

“Mostrai-me a moeda do imposto. De quem é a figuira e a inscrição?”. “De César”, dizem. E Jesus olhando a efigie do imperador, responde: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. E eles ficam admirados. E nem era para menos. Como podiam fazer-lhe qualquer acusação? A sabedoria triunfa sobre a artimanha e a verdade ilumina não apenas a relação entre o poder civil e a autoridade religiosa, como alguns chegam a pensar, mas o rosto de Deus que deixa a sua imagem e semelhança no ser humano, homem e mulher, o reflexo da sua beleza no santuário da consciência pessoal, os vestígios da sua impressão digital nas criaturas e na criação. O cunhar moeda, o pagar impostos, o regime fiscal e tudo o que se liga com esta rede deve estar em consonância com aquela verdade primeira, e, sendo justos, isto é servindo o bem comum ou, pelo menos da maioria necessitada, tornam-se obrigatórios moralmente, e os prevaricadores, incluindo a própria autoridade que os estabeleceu, são passíveis de penalização legal.

Em comentário a este episódio, afirma Frei Raimundo de Oliveira, op: “O imposto era o sinal da dominação romana; os fariseus rejeitavam-na, mas os partidários de Herodes aceitavam-na. Se Jesus responde «sim», os fariseus desacreditá-Lo-iam diante do povo; se diz «não», os partidários de Herodes poderão acusá-lo de subversão. Mas Jesus não discute a questão do imposto. Ele só se preocupa com o povo: A moeda é «de César», mas o povo é «de Deus». O imposto só é justo quando reverte em benefício do bem comum. Jesus condena a transformação do povo em mercadoria que enriquece e fortalece tanto a dominação interna como a estrangeira”. (Bíblia Pastoral, Ed. São Paulo Lisboa 1993, p. 1380, em nota de roda-pé). 

“Dar a Deus o que é de Deus” é consigna para todo o sempre porque o homem realizar-se-á no seu melhor: ama sem acepção de pessoas nem fronteiras de tempo; vive e convive amigavelmente com todos os humanos e com respeito pela criação inteira; situa-se na história como agente responsável na escuta dos gemidos das criaturas oprimidas e na sua libertação integral; aspira a que os direitos básicos sejam assegurados a todos, designadamente o da dignidade, da alimentação, do vestuário, da saúde e de tantos outros. O contrário será o drama da humanidade, sempre possível!

“Dar a Deus o que é de Deus” é ver respeitada a liberdade de consciência e poder expressá-la pessoalmente e de forma associada, na rua e nos templos, dentro de um quadro legal que facilite a harmonia de cidadãos que vivem numa sociedade plural. É sentir-se reconhecido nesta relação com a fonte original de todos os bens e ver facilitada, mediante a criação de condições favoráveis, a transmissão dos valores correspondentes a educação nas famílias, nas escolas de serviço público, na comunicação social.

“Dar a Deus o que é de Deus” é dar largas ao coração que exulta de alegria e convida a terra inteira a associar-se a este louvor, é publicar entre as nações as suas maravilhas, é anunciar a todos os povos a novidade do amor revigorante que o Senhor nos tem. O salmista da liturgia de hoje convida-nos a alargar horizontes.

Hoje é o Dia Mundial das Missões. O Papa Francisco dirige-nos uma mensagem e um veemente apelo: “A missão da Igreja, destinada a todos os homens de boa vontade, funda-se sobre o poder transformador do Evangelho. Este é uma Boa Nova portadora duma alegria contagiante, porque contém e oferece uma vida nova: a vida de Cristo ressuscitado, o qual, comunicando o seu Espírito vivificador, torna-Se para nós Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14, 6)… Promovido pela Obra da Propagação da Fé, o Dia Mundial das Missões é a ocasião propícia para o coração missionário das comunidades cristãs participar, com a oração, com o testemunho da vida e com a comunhão dos bens, na resposta às graves e vastas necessidades da evangelização… Que a Virgem nos ajude a dizer o nosso «sim» à urgência de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus no nosso tempo; nos obtenha um novo ardor de ressuscitados para levar, a todos, o Evangelho da vida que vence a morte; interceda por nós, a fim de podermos ter uma santa ousadia de procurar novos caminhos para que chegue a todos o dom da salvação”.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Georgino Rocha — Vinde tomar parte! A festa está preparada


Jesus prossegue o anúncio da novidade de que é portador: Deus é diferente do que imaginamos, o seu agir mostra claramente quem ele é. Visualiza o que quer transmitir com a parábola do rei que pretende fazer festa pelo casamento do filho. (Mt 22, 1-14). Envia os convites, prepara com requinte a ementa, espera pela resposta livre de cada um, não desiste perante a recusa nem altera o seu projecto, dirige-se a outros que aceitam prontamente, e o banquete realiza-se na alegria dos comensais que convivem em igualdade e se alimentam com as iguarias confeccionadas com primor e dignidade. A parábola é dirigida aos sumos-sacerdotes e anciãos do povo, isto é, aos responsáveis pela situação religiosa vivida e que desfigurava o rosto de Deus.

Mateus, hábil narrador, tem como “pano de fundo” os acontecimentos ocorridos em Jerusalém, pelos anos 70, aquando da destruição do Templo pelas tropas romanas. E realça a acção generosa do rei que selecciona cuidadosamente a lista dos convidados. Segundo a praxe, o convite é dirigido a amigos e a pessoas estimadas. São estas que projectam a sua imagem social, constituem como que o espelho da sua reputação, do reconhecimento público que lhe era dispensado, da gala de ilustres figuras que o rodeiam e acompanham. Estava em jogo o bom nome, a sua honorabilidade. 

O Papa Francisco ao comentar esta parábola afirma: “Pobre Rei que tinha bem presente cada um dos que desejava ver no seu palácio. Desejava com o seu coração abrir os braços e receber o seu hóspede esperado, mas este não quis vir, simplesmente assim: não quis, não soube, ou nem quis saber”. Pobre rei que, apesar da insistência, se vê recusado sem qualquer explicação e pelas mais diversas razões. Não lhe dão a menor atenção. Indiferentes, uns; violentos e agressivos, outros. Todos recusam entrar em comunhão fraterna com ele. Dir-se-ia que estavam bem na situação em que se encontravam. “Os que se negam a ir à boda, explica J. M. Castillo (La religión de Jesús, ciclo A, p. 422) são gente de alta posição social e de muito dinheiro. Têm terras e negócios. Os que entram na boda são gente que não tem nada, os vagabundos dos caminhos”. Aqueles estão satisfeitos, acomodados, com seus privilégios e distinções. Deus não os suporta mais. Os outros acabam por ser os preferidos. Isto os fariseus não aguentam e maquinam a trama final da vida de Jesus.

O retrato dos chefes interlocutores saía em relevo. Mas a narrativa continua com novos requintes. “A festa de casamento está pronta, mas os convidados não a mereceram. Portanto, ide à encruzilhada dos caminhos e convidai para a festa todos os que encontrardes”. E a sala ficou cheia. Quem imaginaria o palácio real ocupado por esta gente tão diversa e desprezada: os marginalizados e excluídos sociais e religiosos, os maltrapilhos e deformados, os esfomeados e sedentos, os sem-abrigo nem protecção. A sala coloriu-se com todos eles, que simbolizam os membros do novo povo de Deus. Os primeiros, os responsáveis religiosos dos Judeus recusam e vêem-se preteridos; os segundos aceitam e são contemplados com os bens messiânicos, os do banquete oferecido.

A parábola contém outros elementos de grande significado. Faz, como que em antecipação, o relato do que vai acontecer. O filho é Jesus que celebra a ceia de despedida com os discípulos antes da paixão e da morte que o elimina e abre a porta à sua ressurreição. Os enviados foram os profetas e agora são os cristãos animados pelo Espírito Santo congregados em Igreja e prontos para a missão. O rei é Deus que persiste em levar por diante o projecto de salvação, respeitando a liberdade humana, mas exigindo comportamentos responsáveis. O tempo coincide com a história que, em género de livro da vida, regista o percurso de cada um de nós. No fim será consumada a festa do banquete em que todos participam, uma vez que se apresentam com o traje do bem feito em obras de justiça, misericórdia e perdão, de graça e benevolência, sobretudo em favor dos que estavam nas encruzilhadas dos caminhos e nas bermas da sociedade e das religiões. (Apoc. 19, 8).

A festa está pronta. Vinde tomar parte. Ouvimos na celebração da Eucaristia: “Felizes os convidados para a ceia do Senhor”. Aceita o convite e prepara-te para comungar dignamente.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Georgino Rocha — Pergunta Jesus: Qual dos dois faz a vontade ao pai?





Jesus recorre à pergunta fechada para envolver os que o seguiam e vigiavam e não os deixar apenas como ouvintes indiferentes ou críticos. Tem consigo a elite de Jerusalém que vivia do templo e para o templo, designadamente os sumos-sacerdotes, os escribas e os anciãos do povo. Estão também os discípulos e numerosa multidão de que faziam parte publicanos e prostitutas, marginalizados e proscritos. O contraste vai ser posto em realce na parábola dos dois filhos que respondem ao convite do Pai de modos diferentes, convite para irem trabalhar na vinha. O primeiro diz espontaneamente que não, mas depois pondera, arrepende-se e vai. O segundo, pelo contrário, mostra-se disponível e afirma que sim, mas não aparece, esquece a resposta dada, não é coerente nem honrado. Dois tipos de reacção que constituem um espelho muito actual para tantas situações.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Georgino Rocha — Tens inveja por eu ser bondoso?



Esta pergunta é feita pelo dono da vinha que mostra a sua bondade ao pagar por igual aos trabalhadores contratados. Os queixosos começam a murmurar e questionam abertamente o seu proceder. Aduzem diferenças de horário e de condições do tempo variáveis ao longo da jornada. E desabafam dizendo: “Suportámos o peso do dia e o calor”. E era verdade, pois vêem os que trabalharam apenas uma hora receberem a mesma paga.
Aquela pergunta é a última de três. “Amigo, diz a um deles, em nada te prejudico. Não foi um denário que ajustaste comigo? Leva o que é teu e segue o teu caminho. Eu quero dar a este último tanto como a ti. Não me será permitido fazer o que quero do que é meu? Ou serão maus os teus olhos porque eu sou bom?”

Jesus conta parábolas que são histórias da vida corrente, acessíveis e cheias de sabedoria, para ajudar os ouvintes a descobrir a novidade que anuncia ou seja que o proceder de Deus é surpreendente e desconcertante, que os seus critérios de avaliação são diferentes em relação aos nossos, que a sua preocupação maior é o bem de todas as pessoas e não apenas o interesse de algumas. Mateus, hábil narrador, faz um belo relato do que terá acontecido e tem particular impacto nas comunidades a que dirige o seu Evangelho. Um dos maiores problemas estava relacionado com os judeus ouvirem dizer que outros povos receberiam as mesmas bênçãos de Deus, teriam acesso aos bens do Reino, seriam considerados herdeiros das promessas. Mesmo convertendo-se, mas sem passarem pelas práticas religiosas judaicas. A fidelidade às tradições impede-os de se abrirem à novidade que surge em Jesus de Nazaré e de começarem a acolher um Deus diferente na sua relação com todas as pessoas. Simplesmente porque é bom e a sua misericórdia se estende a todas as criaturas, como reza o salmo hoje recitado.

A bondade como prática pastoral prolonga este modo de ser e de agir do nosso Deus. A Igreja, que somos nós em comunhão de irmãos com o nosso Bispo e o Papa Francisco, tem aqui a regra de ouro para o seu proceder e a sociedade a pauta da verdade para o robustecimento da cidadania. Dom António Francisco dos Santos deu rosto humano irradiante à bondade e deixa-nos a certeza de que: "Só pela bondade aprenderemos a fazer do poder um serviço, da autoridade uma proximidade e do ministério uma paixão pela missão de anunciar a alegria do evangelho".

A parábola dos trabalhadores da vinha (Mt 20, 1-16a) é muito rica de sentidos e tem um alcance enorme para desvendar o projecto de salvação que Deus oferece à humanidade ao longo dos tempos. João Paulo II faz-lhe um comentário magistral ao apresentar a Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo, em 1988. Diz o Papa logo na introdução: “A parábola do Evangelho abre aos nossos olhos a imensa vinha do Senhor e a multidão de pessoas, homens e mulheres, que Ele chama e envia para trabalhar nela. A vinha é o mundo inteiro (Cf Mt 13,8), que deve ser transformado segundo o plano de Deus em ordem ao advento definitivo do Reino de Deus”. “O convite do Senhor Jesus «Ide vós também para a minha vinha» continua, desde esse longínquo dia, a fazer-se ouvir ao longo da história: dirige-se a todo o homem que vem a este mundo”.

Tendo presente este horizonte tão rasgado, vale a pena mergulhar na realidade em que vivem os judeus e fazer brilhar alguma centelha de luz para a nossa situação actual. O trabalho aí está a interpelar profundamente a consciência humana, as leis laborais e a organização da sociedade. Os direitos adquiridos com o seu cortejo de exigências em que sobressai sempre o interesse individual, impõe-se sem piedade, quebra todos os laços de solidariedade e acaba por desumanizar as pessoas. Os critérios de rentabilidade invadiram a cultura actual que faz ecoar por toda a parte: “quanto vale”, “para que serve”, “só o útil merece a pena” eliminam o gratuito, o dom, o amor solidário e oblativo, isto é, reduzem a pessoa a um objecto prestes a ser substituído por um robot ou um drone. A economia de mercado cresceria em humanidade se tivesse em conta a economia solidária, de comunhão, do dom de Deus que nos é legado. “O Evangelho é norma de sabedoria e critério determinante de humanidade” (J.M. Castillo, La Religión de Jesús, p. 397).

Tens inveja por eu ser bondoso? Pergunta que desafia a mente humana e, sobretudo o coração dorido por tantas vítimas “sobrantes” como os últimos convidados da parábola. O proceder do dono da vinha é justo, segue à risca o que contratou de forma explícita e estende a sua bondade àqueles que, sem o salário da jorna, não tinham o indispensável para o dia seguinte. O contexto ajuda a medir o alcance da parábola: Respeitar a justiça e dar largas à generosidade compassiva. Bela lição!

Georgino Rocha

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Georgino Rocha — A coragem de ser cristão


Georgino Rocha

O diálogo de Jesus com Pedro, em Cesareia de Filipe, é esclarecedor e persuasivo. Manifesta um choque frontal de critérios em relação à missão a realizar. Os de poder e prestígio, típicos ainda do Antigo Testamento. E os da novidade que Jesus anuncia e que convergem no amor que leva à doação total, ao assumir a cruz da morte ignominiosa. Mas afinal, da manhã ressuscitadora, da Páscoa gloriosa.
Ser cristão discípulo exige coragem e ousadia confiante, determinação e coerência. Seguir Jesus é abraçar a sua mensagem na íntegra. Também na luta contra a corrente e na defesa da humanidade, da criação e do ambiente. A nossa fé, diz o Papa Francisco, ensina-nos uma forma de pensar, de sentir e de viver. 
Acredita, ama e dá. Esta é a batalha da vida. O mal ganha, dividindo a pessoa humana nas suas apetências e destruindo a sua harmonia interior. Deixa-a amargurada no vazio, na pobreza da esterilidade, na sensação da derrota. Mas cada um de nós pode revoltar-se contra o mal e preferir seguir caminhos de bem, de verdade que liberta e de amor que irradia. Como Jesus.
Pedro fica perplexo com o que ouve a Jesus. Contrastava tanto com o que havia experimentado. Realmente, era frustrante. Sentia-se desiludido, ele que tinha recebido tão rasgado elogio: Feliz és tu, filho de Jonas, por teres descoberto que eu sou o Messias; ele, o porta-voz, do grupo apostólico, que recebe a promessa de ser o alicerce da construção da Igreja e de ficar com as chaves da entrada no Reino; ele, que deixa o nome de família, e aceita ser chamado de modo novo – o da missão que lhe é confiada. 
Perante o contraste, o impulso do coração leva-o a agir. A simples hipótese do sofrimento anunciado e do enfrentamento, com os chefes religiosos e políticos, poder conduzir à morte de cruz, constituía um verdadeiro tormento. Espontâneo e generoso, como era, resolve aconselhar o Mestre. Toma-o à parte e contesta-o abertamente. A sós, pensava, seria mais fácil dizer-lhe tudo o que entendia ser prudente e sensato, ele que não largava a ideia de um Messias vitorioso, libertador, capaz de desarmar todos os seus inimigos e instaurar a nova ordem anunciada. À medida que fala, dá conta que o semblante de Jesus se altera. Parece que transmite irritação profunda, fúria incontida. E de facto, a resposta ouvida é tão áspera e dura que o surpreende completamente. Fica em silêncio, sabe Deus com que amargura, a “gemer” a reprimenda e a tentar ouvir as instruções que Jesus ia dando aos discípulos. E por quanto tempo estas palavras o hão-de acompanhar: Põe-te no teu sítio, não queiras desviar-me do caminho traçado, tem em conta as coisas de Deus, não sejas ocasião de escândalo, retira-te, Satanás.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Georgino Rocha — Fazer opções sábias. E a tempo



Jesus quer mostrar a urgência de fazer opções sábias e a tempo. Recorre, segundo a versão de Mateus, a três parábolas, acessíveis aos discípulos: a do tesouro escondido no campo; a da pérola preciosa; e a da escolha do peixe apanhado na pesca. Depois de as narrar, pergunta-lhes: “Entendestes tudo isto?” “Entendemos”, respondem, sem hesitar. A comunicação havia resultado em cheio. Que alegria para todos. Nem os discípulos pedem mais explicações, nem Jesus sente necessidade de as dar. Mas acrescenta: “Todo o escriba instruído sobre ”.

O comentário esclarecedor de Jesus valoriza a sabedoria do pai de família que conserva “o novo e o velho” do seu património, a liberdade de dispor dos bens guardados e o horizonte aberto a que os destina à luz dos critérios provindos do reino dos Céus, do Evangelho que ia sendo anunciado. É a sabedoria que brilha na oração de Salomão, após a sua coroação de rei, sendo ainda jovem. Um sonho descreve esta atitude primeira. “Dai, Senhor, ao vosso servo um coração inteligente, para governar o vosso povo, para saber distinguir o bem do mal”. E a oração do jovem rei agradou ao Senhor que lhe concede o que havia pedido e ainda mais. Que encanto de oração para o nosso tempo tão necessitado da sabedoria que sabe discernir a fim de tomar decisões acertadas e a tempo. Que realismo de compreensão do que está em causa: o bem do povo e a necessidade de bem servir. Que abertura a Deus que sempre quer o melhor para todos, em todos os tempos; sempre “concorre em tudo para o bem daqueles que O amam” como garante Paulo na carta aos cristãos de Roma, hoje proclamada na celebração.

A liberdade de tomar decisões e dispor dos bens está clara nas parábolas do tesouro e da pérola preciosa. Com efeito, quem as encontra quer possuí-las, ainda que para isso tenha de vender tudo quanto tem. Atitude corajosa. Mas quem deseja sinceramente arrisca. E o protagonista das parábolas foi ousado e confiante. A opção pelo bem maior “falava” mais alto. Não se pôs a fazer conjecturas, nem se deixou alarmar por infundadas suposições. Do género: E se o dono do campo não o quer vender ou o da pérola não pretende aliená-la? Ou, se entretanto, sou assaltado ou mudam “as regras do jogo”?... Confiante, ousa e alcança. Que belo exemplo para tempos, como os nossos, em que a liberdade de tomar decisões sábias parece estar francamente ausente em muitos âmbitos onde a vida humana corre perigo, e a saúde e a educação estão raquíticas e enviesadas.

O horizonte aberto ao uso dos bens é iluminado pelo reino dos Céus, pelo Evangelho de Jesus, pelo magistério da Igreja e pelo pensamento social de homens e mulheres, amigos da humanidade. O Papa Francisco tem-se feito intérprete fiel dos critérios que surgem nestas correntes da história, não apenas do ocidente, mas universal; não somente da Europa, mas de outros continentes. A arca dos bens é património da humanidade e não apenas de quem teve acesso ao desenvolvimento material que a revolução industrial despoletou e fez avançar, muitas vezes à custa de medidas desumanas, de exploração e fraude. Tendo a situação mundial como horizonte e olhando com amor compassivo a legião de famintos e o bem estar de minorias afortunadas, como não reclamar por uma nova economia, uma outra cultura, uma nova ordem internacional, já proclamada por Paulo VI na sua encíclica sobre “O Desenvolvimento dos Povos”, em 1967? Ao ver o ritmo do avançar na história, facilmente se reconhece s sua lentidão para a maioria e a obstrução deliberada para quem se apoderou do que é comum.

O tesouro e a pérola, diz José M. Castillo, expressam “o que mais enche os humanos” e exemplifica: “um âmbito e um ambiente humano de respeito, tolerância, estima, carinho e segurança, em que damos e recebemos felicidade, com a convicção de que isso é ( e será) para sempre. Só isso pode significar o que, tal como somos humanos, Jesus oferece e afirma”.

A sabedoria toma o rosto do pescador que, tendo a rede cheia de peixes, a puxa para terra, se senta e escolhe pacientemente os bons dos maus. Imagem persuasiva e bela que nos lança um desafio constante: Sei parar para discernir o que está na rede da minha vida? Advirto na qualidade do que ando a fazer com as minhas atitudes? Estou a construir um futuro promissor, ancorado nos valores do Reino, ou a satisfazer necessidades efémeras, ainda que legítimas? Um dia brilhará o alcance das minhas escolhas. Sem qualquer dúvida.

O Papa Francisco ao comentar a passagem do evangelho de hoje, afirma: “Quem encontra o Reino de Deus não tem dúvidas, sente que é isso mesmo que buscava, que esperava, que responde às suas aspirações mais autênticas. E é verdadeiramente assim: quem conhece Jesus, quem o encontra pessoalmente, fica fascinado, atraído por tanta bondade, tanta verdade, tanta beleza, e tudo numa grande humildade e simplicidade. Buscar Jesus, encontrar Jesus: este é o grande tesouro”.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Georgino Rocha — Divorciados recasados






A IGREJA EM MOVIMENTO DE AJUDA

“Vamos levar connosco a «Alegria do Amor» para, em férias, revisitarmos toda a exortação do Papa Francisco que, durante o ano, andámos a ler com um grupo de casais amigos”. E adiantam que “não se pode deixar passar, sem especial cuidado, mensagem tão importante.” Agradecia-lhes a informação, felicitei-os pela decisão tomada e anunciei-lhes que também eu a estava a reler e a tomar notas que, de vez em quando, dava a conhecer. Algumas dessas notas versam sobre os divorciados recasados que, sendo cristãos praticantes, querem viver a comunhão possível na Igreja.
“Não é a «Amoris laetitia» que põe a família em crise. É a crise da família que põe a Igreja em movimento.” Esta afirmação pertence ao cardeal José Farrell, prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida. E constitui uma chave de leitura que ajuda a ver com atenção o que vem a público sobre a recepção da “Alegria do Amor”, sobre a relação entre a família e a Igreja, sobre a clara opção estratégica pastoral do Papa Francisco para a tão desejada saída missionária, a conversão, a compreensão da Igreja a partir “de baixo” onde o Espírito Santo lança continuamente as sementes do Reino de Deus. De facto, a alegria da família é o júbilo da Igreja. E a inversa também se pode afirmar. A reciprocidade é clara e interpelante. Por isso, a resposta à vocação da família é única e insubstituível, tanto para a Igreja como para a sociedade (AL 88).
As pessoas existem dentro de restrições, observa o cardeal Schonborn ao falar nas sessões preparatórias do Encontro Mundial das Famílias a realizar na Irlanda em 2018. E lembra que o Papa Francisco “frequentemente volta ao que disse na “A Alegria do Evangelho” em que um pequeno passo em direção ao bem feito sob circunstâncias difíceis pode ser mais valioso do que uma vida moral sólida sob circunstâncias confortáveis”.
Define assim os três pólos a ter em conta na atenção às famílias: A beleza do amor conjugal heterossexual, vivido em situações concretas e os passos a dar numa caminhada a realizar em casal. De permeio, como elemento aglutinador, está o discernimento espiritual e o acompanhamento pessoal e conjugal ou familiar. E a convicção forte de que um pequeno passo na direcção certa tem um valor enorme, pois condensa a realização possível do ideal apontado doutrinalmente.
“A Igreja deve estar de pé e em caminho, escutando as preocupações da gente e sempre na alegria”, exorta o Papa Francisco numa das suas homilias na Casa Santa Marta. E indica o exemplo do diácono Filipe (Act Ap 8) salientando os passos a dar: Prepara-te e vai; aproxima-te desse carro e acompanha-o; ouve as inquietações das pessoas; anuncia a Boa Nova desejada; vive a alegria de ser cristão. Passos que podem servir de referência para um agir pastoral solícito respeitoso.
A situação do novo casal, depois da experiência dolorosa do fracasso matrimonial, será semelhante, em metáfora, à de um precioso vaso de porcelana, cheio de fissuras cobertas pela finura do artista que sabe juntar em harmonia os pedaços partidos, aplicar-lhes a cola adequada e recobri-los com a tinta correspondente, fazendo brilhar o oiro sobre um atraente azul-escuro. Apreciar e valorar esta nova situação constitui um sólido ponto de partida para o desejado processo de integração eclesial.
Seguem-se outros passos como a revisitação da experiência anterior, a verificação das relações com as pessoas envolvidas, designadamente os filhos (se os há), o ex-cônjuge e os pais, a consistência da nova situação e propósito de caminhar gradualmente no rumo certo.
“A casa se desmoronará um dia se não se vigiar o vigamento.” Esta advertência é feita pelo Padre Henri Caffarel aos casais das Equipas de Nossa Senhor, em 1945 e destaca a necessidade do «dever de sentar» ou seja de namorar a relação e a vida, de dialogar com simplicidade e franqueza.
O casal em nova situação é sempre o protagonista da caminhada a que se propõe. Ajudado, sem dúvida, mas nunca substituído na sua consciência. Por amigos experientes e aceites. Pelo padre acompanhante por missão ou por escolha. Por grupos que se organizem nesse sentido. As possibilidades são muitas quando a criatividade faz brilhar a caridade que nos impulsiona.
E surgem iniciativas e projectos que testemunham a coragem de quem avança e sonha com uma Igreja em movimento. A título de referência, mencionam-se alguns, apenas: O recente encontro do Papa Francisco com mulheres divorciadas pertencentes ao grupo Santa Teresa, na diocese de Toledo; o serviço de Reliance organizado pela diocese de Lille e implementado pelas Equipas de Nossa Senhora; a integração de iniciativas várias em planos de pastoral a nível diocesano, como Santarém, e em catequeses familiares em paróquias; a divulgação de critérios de orientação pastoral elaborados por Bispos, como os da região pastoral de Buenos Aires que inspiram muitos outros, designadamente o documento dos Bispos do Centro de Portugal; os grupos de informação e sensibilização sobre a problemática que comporta a situação canónica dos cristãos divorciados recasados na Igreja.
“Não se deve deixar de acompanhar e educar a comunidade para que cresça no espírito de compreensão e de acolhimento… A comunidade é instrumento da «misericórdia que é imerecida, incondicional e gratuita» refere o mencionado documento dos nossos Bispos, apoiando-se na “Alegria do Amor”.