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sexta-feira, 19 de maio de 2017

O que eu penso sobre Fátima (4)

Crónica de Anselmo Borges no Diário de Notícias


«Concordo com Henrique Monteiro, no último Expresso: "negar que Fátima tem um apelo especial, é negar a evidência, o que só se consegue com teorias estapafúrdias", como as do negócio e vigarice. Mas digo também: uma vez que há experiências religiosas melhores e outras menos boas, é tarefa da Igreja evangelizar Fátima, purificá-la, também com a transparência nas contas.»

1 Para quem acredita verdadeiramente no Deus dos cristãos, Fátima é uma questão ao mesmo tempo simples e tremendamente exigente.
Quem acredita em Deus sabe que Ele é infinitamente transcendente ao mundo; Ele está, é, para lá do espaço e do tempo, sempre para lá do que se possa tentar pensar ou dizer. "Nunca ninguém viu Deus", diz o Novo Testamento. Por outro lado, se Ele é o Criador, melhor, porque Ele é o Criador, é infinitamente presente ao mundo e a todas as criaturas. Ele criou e cria a partir do nada e por amor tudo quanto é; de tal modo é Força infinita de criar que, se Ele se retirasse do mundo, tudo voltaria ao donde veio: o nada. E o que é que Ele quer senão manifestar-se às criaturas, que Ele ama, com amor infinito? O interesse de Deus não é a sua maior honra e glória, mas a plena realização das criaturas. É, pois, infinitamente transcendente e infinitamente presente, Presença infinitamente transcendente e imanente.
Se é Presença infinita ao mundo e às criaturas e se o que Ele quer é manifestar-se, revelar-se, o problema está tão-só do lado das criaturas. Então, há quem se dá conta dessa Sua manifestação, e quem nem sequer está interessado, de tal modo anda distraído. Uns dão-se conta e outros não se apercebem de nada.
Também é claro que cada um se dá conta sempre segundo os seus esquemas de entendimento, no seu horizonte de compreensão, num determinado contexto histórico, cultural, religioso, no quadro da sua história familiar, pessoal, atendendo ao seu carácter, modo de ser e estar no mundo, às suas expectativas...
E as crianças também se podem aperceber dessa Presença? A resposta é: Porque não? Mas, mais uma vez, como crianças, e dentro dos seus pressupostos histórico--existenciais...
É como no amor. Para dar um exemplo simples: vejo os estudantes que chegam no início do ano à faculdade, e todos se vêem, pois aparecem uns aos outros; depois, com o tempo, constato que um estudante anda de mão dada com uma estudante, os dois têm manifestações especiais de afecto e, se a relação se aprofundar e tornar intensa, pode acontecer que se casem e tenham uma vida e filhos em comum... O que é que ele "viu" nela de especial?, o que é que ela "viu" nele de especial? Tudo começa por uma experiência. Na relação com Deus, sem essa experiência interior, que tem que ver com - é talvez a palavra melhor - dar-se conta da sua Presença infinita, transcendente-imanente, experiência sempre pessoal e única, até pode alguém viver da religião, andar em procissões e outras exterioridades religiosas, e ser ateu.
Não custa admitir que as três crianças em Fátima fizeram uma verdadeira experiência religiosa interior. Evidentemente, como crianças e no contexto das suas vivências, incluindo as vivências religiosas da época; enquanto crianças, é natural que essa experiência tenha assumido uma esquematização feminina com a figura materna de Nossa Senhora e, dentro do contexto histórico, com dimensões de exaltação (luz "mais brilhante do que o Sol") e também de pavor ("o fogo do inferno"). Depois, a partir de um núcleo originário, houve arranjos e rearranjos, segundo a história e novos desenvolvimentos e reinterpretações. Neste sentido, pode-se perguntar porque é que o comunismo aparece condenado, não sucedendo o mesmo com o nazismo. De qualquer modo, Fátima tornou-se um acontecimento de influência mundial.

2 A experiência de Fátima tem elementos de valor permanente: a oração, a conversão, a mudança de vida, na luta pela justiça, pela paz, pela dignidade de todos. Os próprios pastorinhos assumiram-na nas suas consequências, e rezavam e testemunhavam e a sua generosidade chegou ao ponto de dar a pouca comida às ovelhas pela conversão dos pecadores. Não acredito que Deus quisesse isso, mas não se pode deixar de admirar esta generosidade.
O Papa veio e procedeu à sua canonização. No meu último livro, Francisco. Desafios à Igreja e ao Mundo, chamo a atenção para as canonizações e os seus perigos, concretamente para a questão da necessidade de milagres como comprovativo de santidade. Para mim, os únicos milagres são os milagres do amor. Pensar que Deus intervém para interromper ou suspender as leis da natureza supõe que Ele está fora do mundo e que, de vez em quando, vem cá dentro e, arbitrariamente, pois vem para uns e não vem para outros. Como já sublinhei, Deus não está fora mas dentro, infinitamente presente como fundamento do milagre da existência de tudo.
Precisamente porque tudo é milagre - o milagre de existir, do ser e de se ser -, não há "milagres", que implicariam ateísmo.
Todas as crianças são santas, porque são puras e inocentes. Assim, apesar das reservas que coloco, só posso esperar que esta canonização sirva para a tomada de consciência de que todas as crianças são mesmo santas, com dignidade divina, tirando-se daí todas as consequências: acabar com toda a violência física e psicológica sobre elas, pôr termo a todas as situações de abuso: tráfico para a exploração sexual e de órgãos, trabalho infantil, soldados para as guerras, e que se ponha fim a essa tragédia que é mais de 10 000 crianças morrerem todos os dias de fome no mundo... Se esta salvaguarda das crianças se concretizasse, esse é que seria um verdadeiro milagre de Fátima.

3 Concordo com Henrique Monteiro, no último Expresso: "negar que Fátima tem um apelo especial, é negar a evidência, o que só se consegue com teorias estapafúrdias", como as do negócio e vigarice. Mas digo também: uma vez que há experiências religiosas melhores e outras menos boas, é tarefa da Igreja evangelizar Fátima, purificá-la, também com a transparência nas contas.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

O Calvário do mundo



1- Perante o horror todo do mundo, guerras e cidades a desmoronar-se, crianças a jorrar sangue e a gritar de dor ao colo de pais perdidos e a fugir não sabem para onde, violações, crucifixões, fome e mortes, terror e impotência, a palavra que sobe à mente: "Um calvário!" Às vezes, vêm ter comigo pessoas destroçadas e contam e contam e contam... destroçadas: "Sabe? A minha vida tem sido um calvário." E parte-se-me a alma.

2- Hoje, Sexta-Feira Santa, o que se lembra é o calvário de Cristo e, nele, os calvários todos da história. Perante o horror da morte a aproximar-se, diz o Evangelho que Jesus "começou a sentir-se apavorado e a angustiar-se" e rezava: "Meu Pai, tudo te é possível, afasta este cálice de mim. Mas faça-se não o que eu quero, mas sim o que Tu queres." E morreu, gritando esta oração: "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?"

3- Segundo a fé cristã, não faz sentido lembrar a Sexta-Feira Santa sem a esperança da Páscoa. Os discípulos viveram na perplexidade e angústia o calvário de Cristo. Foi lentamente que, reflectindo em tudo quanto tinham vivido com Jesus, e meditando sobre a sua vida, a sua mensagem, o modo como se dirigia Deus - Amor incondicional, Pai e Mãe -, o modo como se relacionou com todos, o modo como se dirigiu para a morte, fizeram a experiência de fé de que esse Jesus não morreu para o nada, mas para dentro da plenitude da vida em Deus. Deus não é um Deus de mortos, mas de vivos e da Vida. Essa experiência foi tão intensa e avassaladora que disso deram testemunho até à morte.

sexta-feira, 31 de março de 2017

Trans-humanismo e pós-humanismo (3)

Crónica de Anselmo Borges 


As novas tecnologias, que têm que ver com as NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, informática, ciências cognitivas, isto é, ciências do cérebro e inteligência artificial), não deixam de nos surpreender constantemente, de tal modo que transformar e melhorar a espécie humana deixou de ser ficção. A identificação do processo CRISPR/Cas9 permite modificar o mapa genético, escrevendo a este propósito a investigadora Maria do Carmo Fonseca: "Pode ser que pela primeira vez o homem seja capaz de mudar o seu próprio código genético e a longo prazo concretizar o sonho de melhorar a nossa espécie. Não vamos ser imortais, mas poderemos ser super-homens." E criar uma nova espécie, com a bifurcação da humanidade?
Os êxitos da computação são igualmente estrondosos nas suas inovações. Assim, por exemplo, já se estreou o primeiro filme escrito por um robô e ninguém deu conta; um robô foi dando aulas online durante um semestre e ninguém se apercebeu; um computador bateu o campeão do jogo GO e outro, programado pela IBM, bateu o campeão de Jeopardy, um jogo no qual são apresentadas as respostas sobre os mais variados temas - história, literatura, ciências - e os concorrentes têm de formular as perguntas correspondentes. As capacidades dos computadores aumentarão incomensuravelmente a cada dia. Em Fevereiro de 2017, cientistas de vários países anunciaram que está em marcha uma nova revolução tecnológica, com o projecto de construção do computador mais poderoso de sempre, um computador quântico.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Quem era a serpente do Paraíso? (2)

Crónica de Anselmo Borges 


Na continuação do livro de Ariel Álvarez, 
com a pergunta acima e mais 19 sobre a Bíblia

1. "Porque é que Noé amaldiçoou o filho que o viu nu?" Uma cena estranha: Noé, que aparece na Bíblia a cultivar a vinha, "a mais preciosa e nobre de todas as plantas da Bíblia", adormeceu por causa de uma bebedeira e acaba por amaldiçoar o filho Cam, que entrou na tenda e o viu nu. O que se passou realmente? Neste caso, não se trata de homossexualidade.
Este relato tem sobretudo uma finalidade política, passando-se o mesmo com a narrativa das duas filhas de Lot, que, para não ficarem sem filhos, embebedaram o pai para terem relações com ele. Cam é o pai de Canaã e Noé não amaldiçoa Cam, mas o seu neto Canaã, porque será um filho gerado num incesto: o texto diz que Cam viu a nudez do pai, o que significa que dormiu com a esposa do pai, ou seja, com a sua própria mãe. Quem é maldito é Canaã. O texto amaldiçoa os cananeus escravizados e quer explicar as relações tensas entre Israel e os moabitas e os amonitas, também filhos de um incesto.
Havia três irmãos: Sem, Cam e Jafet. Um terminou escravo e os outros dois, livres. E "é a primeira vez que a Bíblia fala de escravidão, a instituição mais horrenda que o ser humano inventou, na qual alguém é um morto em vida, não pode decidir por si mesmo, nem fazer aquilo de que gosta, nem ir aonde quer, nem ter amigos nem ser feliz". A Bíblia falará muitas vezes do tornar-se escravo pelo pecado.