domingo, 25 de outubro de 2009

Uma reflexão para começar o domingo


Sobre a polémica causada pelas afirmações de Saramago, a propósito do seu recente livro Caim, Frei Bento Domingues diz, a abrir a sua crónica de hoje no PÚBLICO, o seguinte:

"Seja qual for o interesse literário de Caim de José Saramago, as declarações feitas no seu lançamento foram interpretadas em registo publicitário: o importante não é que se diga bem ou mal; o importante é que se fale."

Nota: Sabido é que a maioria (ainda não suficientemente quantificável) dos católicos não lê a Bíblia com regularidade. Os que participam nas missas, contudo, têm a oportunidade de ouvir leituras bíblicas, com a respectiva adaptação aos dias de hoje, expressa nas homilias. Às vezes os celebrantes esquecem-se disso, mas isso é outro assunto. Com esta polémica, publicitária ou não, estou em crer que, por via dela, haverá muitos que vão pegar no Livro Sagrado dos cristãos, para, enfim, poderem ver quem tem razão.
De qualquer modo, não se pense que é assim tão fácil. Ler o Antigo Testamento fora do contexto da época, atendendo apenas à letra do texto, e não ao espírito do mesmo texto, pode ser não aconselhável. Mas leia-se a Bíblia e quando houver dúvidas, que haverá certamente, então consulte-se quem sabe.

F. M.

TECENDO A VIDA UMAS COISITAS – 154

BACALHAU EM DATAS - 44



D. João Evangelista


A BÊNÇÃO DO INÁCIO CUNHA

Caríssimo/a:

Vem daí comigo ao Estaleiro que o ambiente é de festa... Já lá vão tantos anos, mas vale a pena observar tudo através dos olhos privilegiados de alguém que participa e vive intensamente o momento:

«A BÊNÇÃO DO LUGRE

O cenário é o mesmo do da nau Portugal. Um sopro discreto e fagueiro do vento encrespa e orla de espuma a maré-cheia. Sabem-nos os beiços e a língua a salgado. E dentro da alma, à sua maneira, na sua esfera, sente-se como que a repercussão da frescura que, por fora, nos toca e consola a pele.
Estava tentado a repetir o que ouvi uma vez ao Cónego Pontes, num êxtase, diante de um espectáculo soberbo do Atlântico:
- Há coisas que nos reconciliam com a Natureza!
Eu não ando zangado com a Natureza; ao contrário, eu e ela sempre nos temos entendido perfeitamente. Mas, com efeito, no caso de alguma hora de amuo que nem todas as horas são as mesmas na vida, aquela Gafanha que só tem de esquisito o nome, com a cintura azulada das suas águas, com o murmúrio terno das suas ondas, com aquele ar fino que nos limpa a fronte, se o suor corre penosamente por ela, com aquela agitação das gaivotas, das narcejas e dos maçaricos que parecem doidos de alegria e de fome, só ela bastaria para fazer as tais pazes de que falava, à beira do Oceano, o filósofo Pontes. Não era preciso mais nada.
Os estaleiros eram nessa tarde campo apertado para uma tal multidão de gente. Valia, para os descongestionar um pouco, a linha longa da estrada e da praia e, melhor ainda, o convés dos navios vizinhos, as amuradas, e até as vergas dos mastros, improvisadas para o efeito em camarotes e galerias. Não haveria teatro que se lhes pudesse parecer.
E no meio lá estava ele, o «lnácio da Cunha», ainda preso à terra pelas amarras, ainda seguro por cabos, mas parece que com dois olhos enormes na quilha a cobiçar já as águas e a lamentar a demora do seu bota-abaixo. Lembrava a águia que se quer lançar aos espaços e fitar de frente nas alturas o sol, mas que se sente atada por um laço no pé ao chão.
A Igreja, nestas bênçãos dos barcos de pesca, foi buscar ao Evangelho o que mais próprio poderia parecer para animar e dar confiança e alegria aos homens na sua faina: a tempestade de Tiberíades, quando os apóstolos, cansados de lutar com as ondas, ao fim vencidos, foram acordar o Mestre que dormia tranquilo, como um menino no regaço da sua mãe, à proa da bateirinha; e o Mestre, erguendo-se, esfregando os olhos do sono, disse-lhes com dolente sorriso, que era uma benção:
- Não estava eu aqui? Que medo é esse?
Ou então quando os apóstolos, ainda pescadores, depois de uma noite inteira de labuta infrutífera, tendo-lhes pergunntado o Mestre, ao romper da manhã, vaga silhueta na praia, em pé na areia:
- Moços, foi boa a pesca?
E eles reponderam, abanando os ombros de fadiga e desânimo:
- Nem sequer um!
- Deitai as redes daquele outro lado - apontou o Senhor.
E daí a pouco, ao recolherem o saco, era peixe de estoirar as malhas!
Coisa maravilhosa! - já dizia no seu tempo Montesquieu - A Igreja Católica, que parece não ter outra ocupação senão os destinos eternos do homem, também se interessa, mesmo até estas minúcias de ventos prósperos e pescarias, mesmo até pequenos detalhes de enxalavares e de remos, pelo aconchego material dos seus filhos. E, sem que nenhum mestre de cerimónias indicasse ao povo a liturgia do acto, ele por si mesmo, com uma espécie de instintivo respeito, ministros, soldados, marinheiros, magistrados, arrais, pescadores, operários, crianças, todos se descobriram e perfilaram quando o Pontífice, com o seu raminho de paz, de água benta, aspergiu o costado e o coração da nau e assim a fortaleceu para os dramas e para as conquistas do mar.
- Aquelas duas escoras acompanham o navio até à água - explicava assim ao meu lado uma mulher com a cara tão torrada do sol da Gafanha que já parecia da cor do seu lenço preto.
Não se poderia exprimir por uma forma tão graciosa, tão poética, tão literária, eu ia a dizer tão rítmica, tão musical, um pensamento de pura técnica. O que se aprende a escutar o povo!
O mundo então por um momento parou.
- Em nome de Deus e da Pátria, vai lá!
Ouviu-se a voz do machado que partia as cordas no seu cruzamento e logo a mole, até aí parada, tomou fôlego, deu um arranco e docemente mergulhou na ria, dando em seguida, com uma elegância estranha, meia volta para se mostrar a todos.
O cenário era o mesmo mas desta vez, graças a Deus, a nau não tombou para o lado, com a melancólica resignação da outra, com os mastros estendidos na água como em esquife.
Deus vá e volte contigo, com os seus anjos e arcanjos ao leme, com a Estrela do Mar a guiar-te, adormecida nas ondas, ó nau da Pátria!»
(CV, n.º 731, de 5-5-1945, pg. 1)

in Aveiro-suas gentes, terras e costumes, D. João Evangelista de Lima Vidal, pp. 131-133

Manuel



sábado, 24 de outubro de 2009

A Bíblia não é um ditado divino

Caim e Saramago


"É o primeiro exemplar que vendo", diz-me a jovem da livraria, e parte da passada segunda-feira foi para a leitura do Caim de Saramago. Sinceramente, gostei. O romance escalpeliza um Deus tirânico, arbitrário, imoral, cruel, concluindo que "a história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele".
Um crente reflexivo não precisa de irar--se. Em primeiro lugar, há a liberdade de expressão. Depois, é preciso reconhecer que também há na Bíblia e noutros livros sagrados muito daquilo que Saramago denuncia: violência, crueldade, imoralidade, tirania, arbitrariedade.
Chamei aqui frequentemente a atenção para isso. Quantas vezes, num quadro sádico, se pregou inclusivamente que Deus, para aplacar a sua ira, precisou do sangue do próprio Filho. Neste sentido, os ateus que sabem o que isso quer dizer prestam real serviço a Deus na medida em que obrigam os crentes a purificar a sua imagem. No limite, ai dos crentes, se não houvesse ateus!

No fim do dia, poesia, para dormir melhor



Nunca mais


Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.


Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.


Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser.
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência.
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Nota: Transcrito por Mia Couto em Jesusalém

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Acta da instalação e 1.ª sessão da Comissão Paroquial Administrativa da Freguesia da Gafanha

No mês de Outubro de 1910, tomou posse a Comissão Paroquial Administrativa da Freguesia da Gafanha. Para que se não perca por aí a acta, aqui fica uma cópia, para memória futura.

FM

CÂMARA DE ÍLHAVO: Oficinas criativas 2009


UMA BOA OPORTUNIDADE
PARA SABER MAIS


No âmbito do seu projecto Oficinas Criativas 2009, a Câmara Municipal de Ílhavo disponibiliza, a partir deste mês de Outubro, um novo leque de oportunidades para alargar ou enriquecer os teus conhecimentos. Até Dezembro decorrerão as Oficinas Criativas de Comunicação e Letras, de Agulhas e Linhas, de Artes Culinárias e de Artes Plásticas. Informa-te acerca destes módulos e inscreve-te já nos teus preferidos! As inscrições são limitadas, por isso não percas tempo!...
As Oficinas Criativas da Câmara Municipal de Ílhavo são espaços de aprendizagem e de troca de experiências que abrangem variados temas, entre os quais a fotografia, a música, a dança, o teatro, a língua gestual, a banda desenhada, as artes plásticas, tendo como principal objectivo o fomento nos participantes do gosto pelo saber.
São constituídas por diversos módulos independentes, abordando cada um deles uma temática específica, funcionando preferencialmente nos Fóruns Municipais da Juventude.

Ver mais aqui

Luz nova que enche de alegria, beleza e verdade a vida inteira



SENHOR, QUE EU VEJA

Este desejo é expresso em público, com voz firme e confiante, por Bartimeu. Dirige-se a Jesus que ia a sair de Jericó a caminho de outras terras. É feito por um cego que estava na valeta, à margem, a pedir esmola.
As suas limitações não o bloqueiam, nem os preconceitos sociais nem a repreensão de alguns acompanhantes de Jesus. O seu gesto manifesta uma “cegueira” lúcida que vê mais longe e uma coragem ousada que rasga horizontes. A sua atitude fica registada como um símbolo para toda a humanidade em todos os tempos.
“Que eu veja, Senhor” – continuam a clamar os que amam, estudam e trabalham pelo progresso que humaniza a vida; os que se dedicam à investigação científica que desvenda os segredos da natureza; os que, incansavelmente e com desvelo, exercem a biomedicina e cuidam da pessoa doente e das circunstâncias em que está envolvida.
“Senhor, que eu veja” - exclamam os que sonham uma ordem política e económica, alicerçada na ética da responsabilidade comum e no destino universal dos bens e querem contribuir positivamente para despertar a consciência social dos cidadãos; os que acreditam na força das organizações e na eficácia das iniciativas que, à maneira de fermento, vão provocando um modo de ser e agir mais humanizados.
“Que eu veja, Senhor” – desejam os que estão constituídos em responsáveis pelo bem público integral e pretendem encontrar vias acessíveis e eficazes para o promover; os que têm a missão de, à maneira de Jesus, procurar as melhores formas de dar a conhecer os valores do Evangelho, de colaborar para que todas as pessoas tomem consciência da sua dignidade e possam caminhar na vida “de cabeça erguida e rosto descoberto”.
Bartimeu, o filho do homem apreciado pela honradez, tal é o significado do seu nome, faz o pedido da visão num contexto de diálogo profundo, depois de aceitar o chamamento e a ajuda que outros lhe ofereciam, de atirar fora a capa do resguardo, de se erguer com vigor e de, confiante, ir ter com Jesus. Gestos humanos indispensáveis para começar a ver com luz nova – a da fé - que enche de alegria, beleza e verdade a vida inteira.

Georgino Rocha

Para começar o meu dia: Outono invernoso



O dia começou mais ou menos; depois virou triste e feio. É um Outono invernoso, daqueles que convidam a estar por casa. Não para olhar para as pareces, mais ou menos decoradas, mas para uma leitura ou releitura tranquilas. Logo conto.
Para já, apetece-me dizer que, se quisermos, de todo o tempo podemos sacar razões para nos sentirmos bem. Assim seja.  

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O FIO DO TEMPO: O erro de Saramago

Há erros e erros

1. Todos têm erros, todos temos erros. Claro que há erros e erros. O próprio cientista António Damásio ao falar de «O Erro de Descartes» está a falar não de erros de ortografia mas de abordagens erróneas, descontextualizadas, desfocagens de princípio nas premissas dos pontos de partida que podem conduzir a determinadas conclusões menos verdadeiras. Também, ainda, serão de considerar os erros involuntários e aqueles que são intencionais. Ainda bem que nas sociedades ocidentais é possível conviver publicamente com as diferenças de opinião (e o direito ao erro!). Mas à liberdade de opinião haverá de presidir a delicadeza da prudência e da ética de quem sabe que não basta dizer-se que se é frontal atirando para a frente esta ou aquela ideia, esta ou aquela inverdade provinda de desconhecimento da densidade do que está em causa…

2. A polémica está instalada, mas como hábito daqui a umas semanas tudo volta ao normal. Se ao menos a polémica servisse para uma procurada clarificação, um debate (ao jeito daquele de há breves anos entre D. José Policarpo e Eduardo Prado Coelho) que o vento não leve, um aprofundar da procura da verdade em assuntos tão sérios. Na matéria em causa (religião) e na sociedade mundial actual, para vender mais ainda será facílimo, bastará trazer de modo simplista religiões como o Islamismo. Vale a pena responder alargando o nível da reflexão com pensadores como Eduardo Lourenço, um (quem sabe, merecedor!) futuro prémio Nobel da Literatura. Na sua seriedade sublinha o cuidado a ter em juízos precipitados nestas questões pois que as religiões são a resposta mais profunda da busca de sentido para a vida. O entrar no mundo do simbólico como reflexo do existencial profundo não é, efectivamente, tarefa prática…

3. Como na história da humanidade, no caminho da perfeição, infelizmente as guerras pertencem à viagem humana, estando presentes em alguns textos do AT… Abrindo os olhos da maturidade humana, Deus veio anunciar, dar-se pela paz (Shalom)!


Parece que o Outono se despediu mesmo


Dos destroços, brota novamente a vida


Primavera tardia


Estava condenada à morte, já ouvira a sentença, na observação minuciosa da sua dona. O instrumento de tortura e execução, jazia ali mesmo ao pé dela, mudo, à espera do movimento que lhe desse vida. Um serrote velho, ferrugento, iria por termo àquela árvore que morrera de pé, ali no pomar.
O calor excessivo do Verão que terminara, mais o seu prolongamento pelo Outono fora, até aos princípios de Outubro, tiveram muita culpa naquele desfecho. A juntar a isso, alguma incúria na assistência húmida que lhe era devida, haviam persuadido a dona, que aquela árvore tinha estiolado.
Puro engano! Após as primeiras e fortes chuvadas da estação, aquilo que parecia um esqueleto de ramos secos e enegrecidos pelo tempo, parece ter ressuscitado.
Quando ia para lhe desferir o derradeiro golpe e olha para a árvore como que em despedida, é acometida da maior surpresa do mundo. Havia rebentos verdes, minúsculos, nos ramos ressequidos e negros daquela árvore. Teve um baque, na sua atitude demolidora e, imediatamente, depôs armas. Aquela árvore ressuscitara, estava a mostrar como, lá no seu interior, ainda corria a seiva vital. Precisou da fonte de vida, da água que lhe havia sido negada na época estival, para renascer! Foi-lhe dada uma segunda oportunidade e agora é vê-la com flor e os frutinhos em embrião. Que maravilhosa forma de mostrar aos humanos que a vida vegetal ou outra, pode estar enclausurada, mas não aniquilada.
Assim, num paralelismo com a vida humana, também, por vezes nos surpreendemos com a recuperação que se dá, após os reveses e os infortúnios com que a vida nos põe à prova; nos reerguemos com determinação e pujança das duras batalhas da nossa peregrinação pela terra. Dos destroços, brota novamente a vida com mais força e intrepidez!
Fiquei fascinada com esta prova de confiança e resistência, deste ser vegetal que agora irá enfrentar as agruras da nova estação. Pelo que nos é dado observar, parece que o Outono se despediu mesmo, da sua afastada prima Vera e do seu parente próximo – o Verão.

M.ª Donzília Almeida