sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Anselmo Borges — Livro das férias


Anselmo Borges

1 Não é meu hábito recomendar listas de livros para férias, pois não tenho apetência para condicionar gostos, sobretudo nessa época. Mas tenho a convicção sem hesitações de que é essencial ler livros. Como me dizia em pequenino a minha mãe, "quem quer saber, andar e ler" livros. Porque é que considero tão importante ler livros? Porque um bom livro tem uma estrutura fundamental: uma introdução que anuncia as questões a tratar, o tratamento dessas questões, argumentando, e uma conclusão. E é preciso dialogar com ele, ir, voltar, ler outra vez, concordar, discordar, sempre com razões... E, como dizia Platão no que aos seus diálogos se refere, inicia-se com reticências, porque nunca se começa no zero, no nada, já que há sempre pressupostos, e termina-se com reticências, já que nada está definitivamente acabado, será preciso retomar o diálogo: "Havemos de continuar..."
Hoje não se lê? Lê e muito. Mas não livros. O que se lê e escreve tem a ver sobretudo com comentários, comentários de comentários, tudo muito fragmentado e no quadro do "achismo" (quase toda a gente acha que... sobre tudo, mesmo desconhecendo completamente a matéria; quase todos se pronunciam sobre tudo, mesmo sem a mínima ideia da complexidade das questões). Com as novas tecnologias, a ignorância pode triunfar, pois, como advertiu Umberto Eco, as redes sociais dão voz a uma "legião de imbecis".

2 Um dos meus livros para uns breves dias de férias foi, de Celso Alcaína, Roma Veduta. Monseñor Se Desnuda. Está-se a ver, subentendido, o velho dito: "Roma veduta, fede perduta" (quem vai e vê Roma perde a fé).
Após a ordenação sacerdotal e grande currículo académico, com doutoramentos em Teologia e Estudos Bíblicos, Alcaína passou oito anos (1967-1975) a trabalhar na Congregação para a Doutrina da Fé. O papa era então Paulo VI. O livro, com os seus contactos, o que viu e ouviu, são as suas impressões críticas desses anos. Ficam aí apenas algumas pinceladas da minha leitura.

Georgino Rocha — DAR O PRIMEIRO PASSO E PERDOAR


Georgino Rocha

A viagem do Papa Francisco à Colômbia que termina, hoje, tem como lema: “ Demos o primeiro passo”, lema em grande consonância com a mensagem do Evangelho proclamado na liturgia. A sintonia provém de ambas terem como “pano de fundo” tensões e conflitos que ferem a relação básica na convivência dos cidadãos e no seio da comunidade eclesial. Na Colômbia, uma guerra sem quartel dizimou milhares e milhares de pessoas, fez vítimas sem conta, arruinou laços familiares, queimou bens de primeira necessidade, ia destruindo a “alma” da nação que, a custo, se vem a erguer e a afirmar. E finalmente pode ver assinados os acordos de paz.
Na comunida cristã, a guerrilha tem outros matizes, mas regista sempre a negação da união comum em aspectos fundamentais e, consequentemente, da comunhão que nos irmana, e reflecte, ainda que de forma limitada, a verdade de Deus transmitida por Jesus Cristo. São Paulo apresenta listas de atitudes que ferem a dignidade humana e desvirtuam a beleza do Evangelho. Hoje, destaca o adultério, a morte por assassínio, o furto e a cobiça. E recomenda que seja apenas o amor a única dívida de uns para com os outros. Nós podíamos acrescrentar a corrupção, a ganância, a exploração de migrantes e de trabalhdores, a violência física e mental e muitos mais e afirmar que sem honestidade comprovada e confiança garantida nem a humanidade brilha nem a comunidade cristã se afirma.  

Na sociedade há turbulência e crispação a mais: barulhenta e em surdina, no espaço familiar e nas antenas dos meios de comunicação, em tempos de propaganda eleitoral e de gestão diária dos assuntos públicos. Exemplos típicos surgem no desporto violento, nos comportamentos de certos condutores na estrada, na publicidade agressiva, no controle dos centros de influência e nas tentativas de imposição do pensamento único (gender), em mensagens xenófobas e racistas que intimidam e lançam pânico. A sanidade ética das consciências precisa de uma desintoxicação mental que permita refazer relações “feridas”, reganhar a confiança e criar o respeito para com as diferenças sempre enriquecedoras, desde que convirjam na harmonia do conjunto social, no bem da comunidade eclesial.

A Igreja, qual sentinela vigilante como Jeremias de que fala a primeira leitura, quer oferecer a sua ajuda e apresenta a recomendação de Jesus narrada por Mateus (18, 15-20)  em três afirmações de acção sanadora. Tendo como seiva revigorante o amor, surge o perdão dado e recebido como meio de refazer a relação quebrada. O ponto de partida para o processo do perdão é a liberdade de quem deseja alcançar o bem maior.
Peregrino deste bem, o ofendido parte para a missão a realizar. Pede a bênção de Deus, escolhe o melhor momento, pensa no que será oportuno dizer e vai ter com quem lhe fez a ofensa. Acolhe a reacção e entra em diálogo. Se chegarem a acordo, manifestam a presença de Jesus Cristo, que, de modo discreto e estimulante, acompanha os esforços de reconciliação. Este primeiro passo abre horizontes novos a tantas encruzilhadas atadas por nós que parecem cegos. E pode visualizar-se em ver no outro um irmão, persistir no diálogo, aguardar a resposta, cultivar a liberdade na relação, amar sempre a pessoa, ainda que dominada pelo ciúme e ressentimento.
“O ambiente de crispação que, às vezes, domina as relações sociais deve-se à nossa incapacidade de reconhecer a dignidade do outro e a nossa relação fraterna com ele”, afirma Serna Cruz, na revista Homilética2017/5, p. 553, que acrescenta: “ Queiramos ou não, somos irmãos e só a partir desta identidade comum, podemos ajudar-nos”.

Em caso de recusa da oferta de perdão, o ofendido não desarma, pois o amor é inventivo. Discerne o que lhe parece mais acertado, escolhe pessoas experientes na mediação e retoma o caminho. Sabe o alcance da intervenção das testemunhas, pois a praxe judaica prescreve a sua presença para a questão ficar dirimida. Isto é, alcança dimensão pública. Ousa e, se bem sucedido, o irmão ofensor é reintegrado na comunidade e a alegria de todos torna-se exuberante. Quanta sabedoria, própria de quem aprecia os dons do Espírito Santo, está presente no processo curativo de feridas e de recuperação dos laços de comunhão.
   
Há um outro passo, o recurso à assembleia eclesial e aos seus responsáveis, para que, juntos, possam pedir ao Senhor a luz necessária para tomar a decisão correcta. Esgotados todos os meios, a comunidade vê-se forçada a reconhecer a obstinação do “pecador” que persistentemente se mantém afastado. Mas esta não desiste. Reconhece o facto e continua a amar quem o provoca; por isso, o recomenda ao Senhor na sua oração, “espreita” uma oportunidade para reatar o diálogo e aguarda a hora feliz do reencontro.

Que vai fazer à Colômbia, santo Padre?”, pergunta o jornalista na altura em que o Papa Francisco anunciou a viagem. “Vou rezar com os meus irmãos para que a paz seja reforçada com a reconciliação vivida”. A força da oração é âncora firme da fé da Igreja reafirmada com o seu testemunho. Obrigado, santo Padre!

Que delicadeza reveste cada passo do processo de reconciliação confiado a cada pessoa que ama o bem do outro. Faz parte da nossa humanidade e visa recuperar a dignidade “beliscada”. Faz parte dos membros da comunidade cristã fiéis aos ensinamentos de Jesus e reconhecidos pela fé que reforça os laços comuns e ilumina o seu “papel” reconciliador. A função da autoridade tem alicerces noutras passagens do Evangelho. Agora é a nossa vez. Decide-te e demos o primeiro passo.

Georgino Rocha

terça-feira, 5 de setembro de 2017

SCHOENSTATT — Padre Carlos Alberto está de partida para o Brasil



Santuário de Schoenstatt - Gafanha da Nazaré


O Padre Carlos Alberto Pereira de Sousa, mais conhecido apenas por Padre Carlos Alberto, foi ordenado presbítero por D. António Marcelino em 29 de junho de 1996, na igreja matriz da Gafanha da Nazaré, ficando ligado ao Instituto Secular dos Padres de Schoenstatt, movimento a que pertence, como sempre pertenceu, desde a sua juventude.
A notícia da sua partida para o Brasil, concretamente para o Santuário de Recife-Olinda, da diocese do mesmo nome, que teve um bispo carismático, D. Hélder Câmara, chegou-nos há dias. A sua partida está para breve, mas o Padre Carlos Alberto sabe que as mudanças são sempre desafios de renascimento espiritual e de novos projetos de ação pastoral, num ambiente schoenstattiano que o levou a aceitar o sacerdócio há 21 anos. 
Nascido em Rocas do Vouga, Sever do Vouga, em 1960, cedo se radicou com a família na Gafanha da Nazaré, onde desde menino se identificou com a Igreja Católica, tendo assumido, conscientemente, ações eclesiais, mas não só.
Depois de 13 anos ao serviço do Movimento, como presbítero, no Santuário Diocesano de Schoenstatt, na Gafanha da Nazaré, o Padre Carlos Alberto vai assumir a responsabilidade pastoral daquele Santuário do nordeste brasileiro, iniciando o seu trabalho com uma comemoração marcante, as bodas de prata do Movimento naquela região do imenso Brasil. Trata-se de um Santuário bastante concorrido, que tem uma referência especial para todos os schoenstattianos, em geral, e para o Padre Carlos Alberto, em particular, já que ali foi implementado o “Terço dos Homens”, iniciativa do Padre Miguel Lencastre, que foi coadjutor e pároco da Gafanha da Nazaré. 
No próximo dia 9 de setembro, vai ter lugar na Casa José Engling, junto ao Santuário de Schoenstatt, um jantar de despedida, com inscrições limitadas. Os interessados poderão inscrever-se no referido Santuário ou no Cartório Paroquial da Gafanha da Nazaré.
Daqui desejo ao Padre Carlos Alberto os maiores êxitos pessoais e pastorais ao serviço da Igreja e do Movimento, razões da sua opção de vida em prol da Boa Nova, apostando sempre na construção de um homem novo para uma nova sociedade, alicerçada em Cristo.

Fernando Martins

REVISTA SAÚDA — Vagueira - Entre a Ria e o Mar, um paraíso


Texto de Rita Leça
Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes

«Quando chegamos somos facilmente enganados. A Gafanha da Vagueira parece, à primeira vista, mais uma simples vila de Portugal. Rapidamente compreendemos o erro. Somos guiados por José Giro, proprietário da farmácia com o mesmo nome, a viver aqui há 25 anos. É ele quem nos abre as portas da Natureza de par em par, como se a terra, o verde, a ria e o oceano fossem seus. Uma atitude típica de uma gente habituada ao trabalho árduo, seja na terra, seja no mar. 
Há quem saia para a pesca todos os dias. Duas, três, às vezes quatro vezes por dia. Encontram-se às 4h da manhã e pescam mediante a tradicional arte xávega, com os seus barcos altivos, de madeira e cores fortes, azul e vermelho principalmente. As redes puxam os cardumes, antigamente com a ajuda de bois, hoje com tractores aliados à força braçal de quem construiu sobre este trabalho a sua vida. Uma mão cheia de homens no meio do oceano, a contar com as poucas ferramentas de que dispõem, aliadas ao conhecimento milenar sobre os humores do mar e os seus indícios.»

Ler reportagem na Revista Saúda 

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Revista Saúda — Farmácia Ribau tem Mulher de Ferro


Texto de Rita Leça
Fotografias de Miguel Ribeiro Fernandes

«É conhecida pela sua exigência extrema. Junta 3,8 quilómetros de natação com 180 quilómetros de bicicleta e 42,195 quilómetros em maratona. Desde 2013, Teresa Cardoso participa nesta prova, conhecida como Ironman (“homem de ferro”, na tradução literal) e, dois anos depois, já conquistou o segundo lugar da prova na competição feminina, na Galiza, Espanha, com o tempo de 11 horas e 13 minutos. «Foi uma vitória muito importante. Fui para a Galiza com os meus pais e a minha irmã. Senti o apoio deles e isso deu-me muita força», lembra a directora-técnica da Farmácia Ribau, na Gafanha da Encarnação, perto de Aveiro. «Um ano depois, a minha mãe faleceu subitamente. Isso aumentou, ainda mais, a importância que teve para mim o facto de ela ter estado lá e ter-me visto fazer esta prova tão exigente»»

Ler mais na Revista Saúda 

Nota: Valores das nossas terras e gentes que temos de conhecer e aplaudir. Os meus parabéns.

Piódão vence grupo das Aldeias Remotas










Ontem à noite, fiquei satisfeito ao assistir à vitória de Piódão no grupo das Aldeias Remotas, num concurso promovido no âmbito das 7 Maravilhas de Portugal – Aldeias, com o objetivo de promover a identidade nacional. Gosto deste género de programas que nos permitem viajar no tempo com os pés assentes na atualidade.
Gosto, fundamentalmente, de todas as aldeias com história, preservadas no que é possível, havendo espaço para o presente. Quando as visito, aprecio o cuidado das suas gentes que se orgulham das joias que possuem e mostram a quem as visita. E tudo isso se sentiu nas manifestações de regozijo dos representantes das aldeias que participaram no concurso. 
Quando visito aldeias com identidades ancestrais, procuro os museus, se os houver, para além do museu vivo expresso no casario, monumentos, ruas e ruelas, igrejas, cruzeiros, pelourinhos e casas de pedra que resistiram ao passar dos séculos, suportando ventos agrestes, chuvas torrenciais, gelos invernais e calores infernais. Daí o prazer que senti quando fui a Piódão em 15 de julho de 2005. 
Tenho para mim que o viajante não pode fixar-se apenas na tipicidade do casario, no empedrado das ruelas e monumentos. Importa conhecer as pessoas, falando quando possível com elas, e ler o que sobre elas se escreveu com traços de realismo identitários. E em Piódão, para além do museu que visitei e onde fui autorizado a fotografar o que quisesse, comprei um livro — Dr. Vasco Campos – Obras completas — cuja leitura me ofereceu retratos belíssimos sobre as suas andanças como médico por aquelas bandas. «Vasco Campos foi o amigo que pegou na mão deste povo, ajudou-o e amparou-o em comunhão com ele. E fê-lo tocando o coração daqueles que tiveram a honra de ser por ele servidos», diz-se no Prefácio assinado por A. J. Rodrigues de Campos. 
Poesia em vários tons, relatos de um «compromisso solene de consagrar» a sua vida «ao serviço da Humanidade», na Serra do Açor e suas redondezas. Cartas, agradecimentos, recordações, estórias  e dedicações aos mais desfavorecidos e abandonados nas serranias perdidas. E aqui fica um naco de uma estória "O parto da Moleira": «Senhor doutor, nem de rastos como as cobras posso pagar o que lhe devo! E sobre todos os favores ainda quero pedir-lhe mais um: — Há-de ser o padrinho do cachopo.» E foi realmente o padrinho e sua mulher a madrinha. Referia-se Vasco Campos a um parto em que salvou uma criança de morte certa. A mãe estava em coma e o médico levou a criança  para sua casa até a parturiente recuperar.
Como curiosidade história, aponta-se o facto de Diogo Lopes Pacheco (estes apelidos ainda hoje existem na aldeia), conselheiro de D. Afonso IV e que contribuiu para o assassínio de D. Inês de Castro, se ter refugiado em Piódão. Também se diz que o célebre salteador e assassino João Brandão, que atacava de noite os povos da região, se escondia de dia em casa do pároco.
O Núcleo Museológico do Piódão é lugar de passagem obrigatória para o turista que preza a cultura.

Fernando Martins

Georgino Rocha — Aliança de amor e harmonia conjugal


“A Igreja deve ser e parecer mais séria no seu agir pastoral, sobretudo em relação ao matrimónio”, diz-me sem floreados e com ares de grande convicção um amigo que se vem dedicando a situações complexas de harmonia conjugal. Escuto-o com muita atenção porque também estou preocupado e o assunto envolve a vida de tantas pessoas, a credibilidade da mensagem cristã e a honestidade de agentes pastorais. E surgem, ora dele ora de mim, ditos do Papa Francisco, de D. António Marcelino, de párocos e de outras vozes autorizadas pela sua dedicação a promover a educação para a sexualidade no homem e na mulher, a beleza do casamento entre estes e a “desatar nós” quando o amor sonhado se dilui e desaparece.

A conversa faz desfilar a caminhada de preparação para a relação entre jovens e sua evolução para o casamento, a fase do noivado, o amadurecimento da opção pelo matrimónio alicerçada no propósito sincero de viverem a felicidade conjugal mútua. Recordei, com sentido de oportunidade, o testemunho ouvido no programa “Porque hoje é Domingo” da Radio Renascença que dizia: “Quero fazer-te feliz na medida das minhas possibilidades e das tuas necessidades”. Ficou encantado o amigo advogado, corroborando a minha percepção de que aqui estaria uma formulação acertada do propósito a viver pelo casal ao longo da sua história familiar. A viver e a alimentar. A alimentar e a transmitir.

sábado, 2 de setembro de 2017

Região de Aveiro é uma pequena Holanda



«A região de Aveiro é uma pequena Holanda em clima e luz ocidentais. Provavelmente pela extensa superfície de evaporação de centos de hectares de água salgada, toda esta região se distingue no norte do país pela luz irisada que a banha e de momento a momento muda de tom. Por vezes julgamo-nos aí transportados a uma região ideal.»

António Arroio, 
engenheiro e crítico, Porto, 1856; Lisboa, 1934

"Origens da Ria de Aveiro”, de Orlando de Oliveira

MaDonA — João Marquinhos


O Ensino Recorrente integrou a Educação de Adultos, que visava proporcionar uma segunda oportunidade de formação, conciliando os estudos com o exercício de uma atividade profissional. 
Foi nesta modalidade de ensino que conheci pessoas gradas da nossa terra. Pessoas de origem humilde, mas cujo percurso de vida as fez chegar ao topo dos seus sonhos. 
Neste âmbito, recordo um aluno, de idade já avançada, mas de espírito jovem que frequentou as minhas aulas. De seu nome João Marquinhos é uma referência na nossa terra, com a provecta idade de 83 anos, 38 como ele refere, gracejando. Oriundo de Aveiro, desde tenra idade veio para a Gafanha da Encarnação, adotando-a como sua terra natal. 
Concluiu o e ensino primário, com distinção, a menção honrosa dada aos alunos que sobressaiam no seu desempenho, numa época em que não havia, nas escolas, o Quadro de Honra e Excelência. Partilha o orgulho que sinto de ambos meus progenitores, que também concluíram a 4.ª classe com distinção. Uma façanha para a altura, em que o ensino primário não era obrigatório. Alguma coisa, por osmose, terá passado para esta humilde criatura? 
Desde muito cedo se lançou na vida de trabalho, tendo começado com apenas onze anos, na bilheteira do cais de embarque, na Costa Nova. Eram as barcas que faziam o transporte dos banhistas na Gafanha da Encarnação, ancoradouro da Bruxa, para a praia. Apesar da sua tenra idade, não foi alvo da CPCJ (Comissão de Proteção de Crianças e Jovens) por exploração de trabalho infantil. A ociosidade, como dizia o meu progenitor, é a mãe de todos os vícios...e o pai? Será mãe solteira, provavelmente! 
Nesse tempo eram poucos os que prosseguiam estudos e a maioria das crianças ajudava os pais nas atividades agrícolas ou da pesca. O trabalho que o menino João ia desempenhar não lhe exigia esforço físico, mas apenas mental – fazer contas, matéria em que era um ás. Dada a sua pequena estatura, precisou, certamente de um banquinho, para chegar ao guichet. 
A sua vida foi decorrendo sem sobressaltos, tendo passado pelo comércio, onde se terá iniciado nos meandros dessa atividade, até aos dezassete anos.
Nessa idade, já começava a “olhar para a sombra”, isto é a pensar nas “cachopas” e a querer catrapiscar alguma sua favorita. Com o intuito de comprar cerejas para oferecer a uma que tinha debaixo de olho, foi à festa da N.ª S.ª de Vagos, onde se deu o primeiro grande revés da sua vida. Uma derrapagem na areia, com o seu Cucciolo de estimação, levou-o às portas da morte...mas não chegou a entrar! A recuperação do coma em que esteve dois dias e a sua reabilitação física levaram o seu tempo e originaram o handicap da sua mobilidade: a locomoção com duas canadianas, imagem que sempre o acompanhou pela vida fora. Se fisicamente ficou debilitado, a sua força anímica redobrou, vindo à tona e a partir daí foi ver este homem mexer-se, a um ritmo quase vertiginoso. 
Não ficou de braços cruzados, à espera da compaixão do próximo, e fez-se à estrada da vida, cheio de energia e vontade de vencer. Já que a vida lhe dera um limão, ele haveria de fazer a sua limonada!
Assim, começou a idealizar uma profissão que se coadunasse com a sua limitação física e surgiu a ideia de ser alfaiate. Aprendeu com os melhores mestres, tendo feito uma formação em Lisboa que lhe haveria de mudar o rumo da vida. Ainda se lembra do n.º 852, na Rua da Prata. 
Iniciou-se na vida de alfaiate e depressa viu a sua clientela aumentar exponencialmente, chegando a ter dez costureiras no seu atelier. 
Como qualquer jovem que se preza, foi namoradeiro e teve os seus devaneios amorosos, como ele conta com um sorriso brejeiro “Ainda eu namorava com a Celeste, veio uma rapariga e enfeitiçou-me. Fui atrás dela até Amarante. Levava a motoreta no comboio até ao Porto...” 
Dado o seu dinamismo e uma vontade férrea de contribuir para o desenvolvimento da sua terra, hoje vila da Gafanha da Encarnação, ocupou lugares de relevo na administração local. Na autarquia, participou ativamente na Assembleia Municipal. Na Junta de Freguesia, desempenhou as funções de secretário, tesoureiro, tendo declinado o cargo de Presidente, por motivos de conciliação de agenda.
A sua paixão pelo futebol granjeou-lhe o cargo de presidente, do clube da terra, o NEGE (Novo Estrela da Gafanha da Encarnação). 
O Sr. João Marquinhos é o protótipo do self-made-man, o homem empreendedor, que não tendo ganho a meia-maratona, alcançou o podium na maratona da vida. 
Nas aulas, marcava a sua presença assídua e vestígios do seu trabalho, pousavam na sua roupa – as linhas com que costurava a vida. 
Foi um Homem que a pulso e com horizontes largos, construiu um império, um modelo de tenacidade e auto superação. Um exemplo a seguir pela juventude hodierna, que apesar dos dotes que a natureza lhe dá, anda à deriva, num desnorte confrangedor. 
O bichinho da profissão de alfaiate ainda não esmoreceu, pois criou um estaminé, adjacente ao banco, onde ainda dá uns pontos e atende a solicitação de algum cliente/amigo. 
Sempre que vou levantar dinheiro ao Totta (Quem quer dinheiro vai ao Totta!), situado no rés-do-chão do prédio onde habita, dou dois dedos de conversa ao Sr. João Marquinhos. Recebe-me sempre com um sorriso amistoso e não se cansa de elogiar a “sua professorinha” que um dia o teve, como aluno atento, na sua sala de aula. 
Que a vida lhe sorria e, quem sabe? a vila da Gafanha da Encarnação, um dia, lhe dê o tributo que merece este filantropo – um topónimo... para a posteridade. 

Mª Donzília Almeida 

29 de agosto de 2017

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Georgino Rocha — A coragem de ser cristão


Georgino Rocha

O diálogo de Jesus com Pedro, em Cesareia de Filipe, é esclarecedor e persuasivo. Manifesta um choque frontal de critérios em relação à missão a realizar. Os de poder e prestígio, típicos ainda do Antigo Testamento. E os da novidade que Jesus anuncia e que convergem no amor que leva à doação total, ao assumir a cruz da morte ignominiosa. Mas afinal, da manhã ressuscitadora, da Páscoa gloriosa.
Ser cristão discípulo exige coragem e ousadia confiante, determinação e coerência. Seguir Jesus é abraçar a sua mensagem na íntegra. Também na luta contra a corrente e na defesa da humanidade, da criação e do ambiente. A nossa fé, diz o Papa Francisco, ensina-nos uma forma de pensar, de sentir e de viver. 
Acredita, ama e dá. Esta é a batalha da vida. O mal ganha, dividindo a pessoa humana nas suas apetências e destruindo a sua harmonia interior. Deixa-a amargurada no vazio, na pobreza da esterilidade, na sensação da derrota. Mas cada um de nós pode revoltar-se contra o mal e preferir seguir caminhos de bem, de verdade que liberta e de amor que irradia. Como Jesus.
Pedro fica perplexo com o que ouve a Jesus. Contrastava tanto com o que havia experimentado. Realmente, era frustrante. Sentia-se desiludido, ele que tinha recebido tão rasgado elogio: Feliz és tu, filho de Jonas, por teres descoberto que eu sou o Messias; ele, o porta-voz, do grupo apostólico, que recebe a promessa de ser o alicerce da construção da Igreja e de ficar com as chaves da entrada no Reino; ele, que deixa o nome de família, e aceita ser chamado de modo novo – o da missão que lhe é confiada. 
Perante o contraste, o impulso do coração leva-o a agir. A simples hipótese do sofrimento anunciado e do enfrentamento, com os chefes religiosos e políticos, poder conduzir à morte de cruz, constituía um verdadeiro tormento. Espontâneo e generoso, como era, resolve aconselhar o Mestre. Toma-o à parte e contesta-o abertamente. A sós, pensava, seria mais fácil dizer-lhe tudo o que entendia ser prudente e sensato, ele que não largava a ideia de um Messias vitorioso, libertador, capaz de desarmar todos os seus inimigos e instaurar a nova ordem anunciada. À medida que fala, dá conta que o semblante de Jesus se altera. Parece que transmite irritação profunda, fúria incontida. E de facto, a resposta ouvida é tão áspera e dura que o surpreende completamente. Fica em silêncio, sabe Deus com que amargura, a “gemer” a reprimenda e a tentar ouvir as instruções que Jesus ia dando aos discípulos. E por quanto tempo estas palavras o hão-de acompanhar: Põe-te no teu sítio, não queiras desviar-me do caminho traçado, tem em conta as coisas de Deus, não sejas ocasião de escândalo, retira-te, Satanás.