sábado, 22 de julho de 2017

Ler um livro...


Ler um livro de pensamento exigente
com um forte desejo da verdade
sem avidez em saber
sem pretensão de disputar
mas por gosto, por amor da verdade
Abrir a porta profunda
a todo o pensamento que emerge
e deixá-lo permanecer em paz
de modo que ele venha a dar o seu fruto.


Maurice Bellet
In Cahiers pour croire aujourd'hui, 
Novembro 1993

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Anselmo Borges — O ateísmo libertino


1. Marion Gräfin Dönhoff, uma prestigiada jornalista e intelectual alemã do pós-guerra, co-editora do semanário Die Zeit, escreveu, pouco tempo antes de morrer: "O fixar-se exclusivamente no aquém, que corta o Homem das suas fontes metafísicas, e o positivismo total, que se ocupa apenas com a superfície das coisas, não podem dar às pessoas um sentido duradouro e estável, e, por isso, levam à frustração."

2. Paradoxalmente, Nietzsche, o profeta do ateísmo, é testemunha disso. Aquele que, filho de um pastor protestante, fora uma criança piedosa e estudara Teologia, havia de proclamar publicamente, em 1882, através de um louco, em A Gaia Ciência, a morte de Deus: "Deus morreu! Deus está morto! E fomos nós que o matámos!" E continua: "Conta-se ainda que o louco entrou nesse mesmo dia em várias igrejas e aí cantou o seu requiem aeternam deo. Expulso dos templos e interrogado, ripostou sempre apenas isto: "Que são agora ainda estas igrejas senão os túmulos e os monumentos funerários de Deus?""
Mas, ao mesmo tempo, Nietzsche apercebe-se do afundamento que se segue. De facto, o júbilo perante o "acto mais grandioso da história", que foi a morte de Deus, é atravessado por estas perguntas terríveis: "Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos nós, quando soltámos a corrente que ligava esta terra ao sol? Para onde se dirige ela agora? Para onde vamos nós? Para longe de todos os sóis? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estaremos a sentir o sopro do espaço vazio? Não estará agora a fazer mais frio? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?"
Nietzsche anunciou a morte de Deus, mas fê-lo "sem triunfalismo nem euforia", como observa agudamente o filósofo Manuel Fraijó. De facto, percebeu que, sem Deus, soava "a hora do deserto, do vazio total, no niilismo completo". Serviu-se para isso de três metáforas: o mar esvazia-se, significando com isso que já não temos possibilidade de matar a nossa sede de transcendência e infinito; apaga-se o horizonte, e, portanto, ficamos sem o referente último de sentido; o sol separa-se da terra, isto é, o frio e a noite invadem tudo. E não é aí que estamos?
Nietzsche viverá atenazado entre o Deus que tem de morrer para ser possível o super-homem e a permanente nostalgia do Deus desconhecido. Foi ao Deus desconhecido que o jovem Nietzsche dirigiu esta oração: "Antes de prosseguir no meu caminho e lançar o meu olhar para a frente uma vez mais, elevo, só, as minhas mãos para ti na direcção de quem eu fujo. A ti, das profundezas do meu coração, tenho dedicado altares festivos para que, em cada momento, a tua voz me pudesse chamar. Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras: "Ao Deus desconhecido." Teu sou eu, embora até ao presente me tenha associado aos sacrílegos. Teu sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo. Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servir-te. Eu quero conhecer-te, Desconhecido. Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida. Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero conhecer-te, só a ti quero servir."
O mesmo Nietzsche havia de confessar a Ida, a mulher do seu grande amigo F. Overbeck: "Nunca abandones a ideia de Deus. Eu abandonei-a; quero criar algo de novo, e não posso nem quero voltar atrás. Acabarei por sucumbir a esta paixão que me esfalfa constantemente. Vou-me desmoronando."

3. O pior do nosso tempo é o desinteresse. Já não se ergue a pergunta de abismo. E é como se Deus não existisse. Unamuno não se conformava: "Na ordem da cultura espero muito pouco daqueles que vivem desinteressados do problema religioso no seu aspecto metafísico."
Claro que o homem também vai morrendo, como escreveu Karl Rahner, o maior teólogo católico do século XX: "O homem só existe propriamente como homem quando diz "Deus", pelo menos como pergunta. A morte absoluta da palavra "Deus", uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o homem morreu."
Mas, afinal, será que Deus morreu? Não, Deus não morreu, fez-se Dinheiro, diz, com razão, o filósofo G. Agamben. E metamorfoseou-se de tal modo que agora o que há é o "ateísmo libertino", na expressão do filósofo uruguaio A. Methol Ferré, que, numa conferência em Lima em 1992 - cito a partir da reflexão de N. Tenaillon, em Dans la Tête du Papa François -, perguntava se tínhamos entrado num "interregno global" marcado por uma profundíssima crise dos valores, e respondia que a queda de um dos pólos da diarquia mundial, a União Soviética, e a sua difusão do ateísmo messiânico, tiveram como consequência "fazer ganhar o outro pólo, esse empenhado num empreendimento devastador, o da chegada de uma sociedade niilista". O novo ateísmo "mudou radicalmente de aspecto. Não é messiânico, mas libertino. Não é revolucionário no sentido social, mas cúmplice do statu quo. Não se interessa com a justiça, mas com tudo o que permite cultivar um hedonismo radical. Não é aristocrático, transformou-se num fenómeno de massa". Ao recusar toda a metafísica e, num gesto antiplatónico, ao cair num esteticismo desligado do Verdadeiro e do Bem, favorece um individualismo narcisista sem moral, em que o outro não conta como "pessoa", comenta Tenaillon.
As consequências deste ateísmo libertino na vida pessoal, moral, económico-financeira, procriadora, social, eclesial, militar, política, podem ser devastadoras. Como está à vista de quem quiser ver.

Padre e professor de Filosofia

Georgino Rocha — Diz Jesus: Deixai-os crescer juntos até à ceifa


Jesus quer mostrar à multidão os segredos do Reino que anda a anunciar. E aproveita para dar aos discípulos explicações complementares em ordem a consolidar a sua formação. As parábolas são um recurso pedagógico frequente entre os mestres dos judeus. Oferecem oportunidades únicas que Jesus sabiamente aproveita. O campo onde, juntos, crescem até à ceifa o trigo e o joio, a sementeira de um e de outro, a relação que se estabelece entre ambos, a reacção sensata e oportuna dos servos contrariada pela atitude paciente do dono constituem elementos preciosos que dão rosto à mensagem a transmitir. E pelo rosto se vai ao coração dos segredos de Deus.

O final das parábolas é, normalmente, surpreendente. O desfecho é provocante. A novidade aparece interpelante. A narração vai deixando elementos que despertam os ouvintes para o inesperado e provocador. E surge a pergunta desestabilizadora: O Deus em quem acreditamos é realmente o Deus de Jesus, o verdadeiro “Abbá”, como Lhe chamava? Aquele que manifesta traços de pai ingénuo como no caso do filho pródigo, de proprietário injusto que paga por igual a trabalhadores com horários diferenciados, de pastor com critérios tão estranhos que abandona noventa e nove ovelhas para ir em busca da que se perdeu?
A compreensão das parábolas exige a conversão do coração, sede da sabedoria que vem do Espírito e se manifesta na sintonia de atitudes com as de Jesus de Nazaré. Talvez, por isso, haja muita gente que ouve e não entende ou procura “dar-lhe a volta” para não alterar nada na sua vida e ficar de consciência tranquila. Não estaremos nós também nesta hipótese?

O trigo bom surge na parábola para realçar o papel do joio que simboliza o mal no mundo e as perturbações que desencadeia com o seu cortejo daninho e destruidor. O mal é uma realidade tremenda que perpassa em toda a humanidade. Constitui o maior acicate para a reflexão inquieta do espírito humano. Reveste muitas formas, algumas muito refinadas, e belisca a liberdade de quem busca sinceramente a verdade.
Jesus constata o facto e na parábola introduz o tema dizendo apenas: Um inimigo, enquanto todos dormiam, veio de noite, semeou o joio no campo e foi-se embora. Resumo feliz com os ingredientes principais que nos ajudam a ter uma primeira resposta: O joio/mal é inimigo do homem; a sementeira faz-se de noite enquanto a sonolência adormece os sentidos e sobretudo a lucidez responsável; o campo proporciona-lhe o húmus indispensável ao crescimento, tal como ao trigo; o ir-se embora não significa ausência, mas ocultamento, pois continua muito activo no joio daninho que pretende asfixiar o bom trigo, a seara farta que se deseja para bem de todos e de cada um, que se pressente no pão da família, no dom levado ao altar para ser eucaristia do Senhor.

O joio anda por todo o lado; também no teu coração. E Deus não te arranca o coração, mas perdoa sempre para que possas arrepender-te e tentar reorientar a tua vida. Confia em ti e espera que cresças e amadureças, que abras os olhos e descubras o que não queres ver: a trave que te cega, enquanto vês bem o cisco que limita o olhar do teu vizinho.
O joio anda por todo o lado; também na família e na Igreja, no mundo e  na sociedade, na política e na cultura. Deus não intervém directamente, não inutiliza a liberdade humana, nem a responsabilidade de quem tem funções especiais, seja na área da educação ou da comunicação social, seja na rede virtual ou nos cartazes publicitários.
Crescem juntos até à ceifa. O mal não tem a última palavra. Esta será dada na avaliação final, com a sentença de eliminação radical. “Apanhai primeiro o joio e atai-o em molhos para queimar”, diz o dono do campo, o Senhor da seara. Só ele faz o julgamento definitivo. O trigo bom será recolhido no celeiro de Deus, onde são guardadas as provisões para a sua família. Então ecoará por toda a parte a alegre notícia: “Felizes os que morrem no Senhor, pois as suas obras os acompanham”.

Entretanto, há que combater o mal com o bem e anunciar o valor dos pequenos passos. A agressividade multiplica a violência. E os novos ditadores espreitam constantemente. Os discípulos missionários têm de aprender a arte divina da não-violência activa, o domínio de si e não a cobardia, o diálogo e não a confrontação, a objecção de consciência, a resistência civil, a tolerância ética. Não te deixes vencer pelo mal, vence o mal com o bem porque Deus é assim. Diz o livro da Sabedoria na primeira leitura de hoje: “Agindo deste modo ensinastes ao vosso povo que o justo deve ser humano e aos vossos filhos destes a esperança feliz de que, após o pecado, dais lugar ao arrependimento.”

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Um conto de Valdemar Aveiro — Heróis que o tempo não apaga


“Heróis que o tempo não apaga — Um conto real de vida” é mais um trabalho de Valdemar Aveiro, em edição da Fundação Gil Eanes, com apoio da Jerónimo Martins. Trata-se de uma publicação bilingue (Português e Inglês) destinada, decerto, a leitores e estudiosos da saga dos bacalhaus, de que foram protagonistas muitos dos nossos antepassados, os tais heróis que não podem cair no saco do esquecimento porque o autor, como outros, não deixa que tal aconteça.
A edição, capa dura, papel de luxo e muito ilustrada é um regalo para os olhos e lenitivo para quem ainda transporta na alma as dores da solidão, do trabalho sem horário e sem descanso, da ausência da família, da impossibilidade ao menos de um simples contacto.
José Maria Costa, presidente da Fundação Gil Eanes, na Apresentação, diz que o autor nos descreve «a angústia destes bravos pescadores que, para além de viverem em condições desumanas, com enormes carências, experimentaram a fragilidade dos dóris, rezando para que o número de homens embarcados fosse o mesmo à chegada da campanha». 
No Prefácio, Artur Aguiar, sublinha que, «Conhecer o capitão Valdemar é perceber que existe uma pessoa com diversos talentos» em que sobressai «um dom que é o de saber falar, saber sentir e expor, escrevendo, a alma que invade o espírito de todos, desde o mais nobre ao mais plebeu». 
O capitão Valdemar Aveiro, ilhavense de raiz, mas gafanhão de coração, ou não tivesse ele brincado com crianças da Gafanha da Nazaré, que evoca com frequência e com sentimento, é um artista na arte e escrever, sobretudo quando ao correr da pena nos brinda com cenas dos seus quotidianos, mesclados, quantas vezes!, de ficção saborosa.
Contudo, refere o autor de “Heróis que o tempo não apaga — Um conto real de vida” que «Este conto não tem nada de fantasioso», afiançando que, «apesar de terem já passado sessenta e cinco anos», continua «a ver e a sentir a dureza crua que aqueles homens enfrentaram, todos os dias, na luta estóica que travavam com espírito de missão». E aproveita a ocasião para lembrar que, na sua opinião, «a “Solidão” e o “Isolamento Trágico” não são necessariamente realidades exclusivas de regiões desérticas. Elas encontram-se facilmente no meio de multidões». 
É pertinente destacar a dedicatória que antecede o conto. Diz assim:

«Este pequeno conto de vida, real e não ficcionado, é dedicado com muito respeito e admiração a todas as mulheres que pelos mais diversos motivos, passaram a vida na condição de “viúvas de homens vivos”.»

Nota: Arquivo fotográfico de diversas pessoas e entidades; seleção, edição e composição de fotografia de Rui Bela; tradução de Tim Oswald; Design de Rui Carvalho Design; 

Fernando Martins

Júlio Cirino — Ilha Terceira: Touradas

Toca a fugir

Tourada

Estátua aos Touros

Paixão pelas touradas

Praça de Touros



            Há coisas que se fossem combinadas não correriam tão bem. O tema que escolhi para esta semana foi a “tourada à corda”. O Prof. Fernando Martins pensou no mesmo, por o seu filho Pedro estar de visita aos Açores. Ainda bem, pois um trabalho complementa o outro. Assim sendo, passo a dar a conhecer o que já tinha escrito a este respeito.

Touradas

A ilha Terceira é terra de touros e touradas. Em Angra do Heroísmo existe uma praça de touros frequentada por muitos aficionados. Os irmãos Pamplona, a cavalo, e os “Forcados Amadores da Tertúlia Tauromáquica” (de Angra) e os “Forcados Amadores do Ramo Grande (da Praia da Vitória)” são dos nomes mais sonantes na ilha.
Mas a verdadeira paixão dos terceirenses são as “touradas à corda”, realizadas nas ruas da ilha entre 1 de Maio e 15 de Outubro de cada ano. Durante este período realizam-se mais de 400 touradas que atraem milhares de aficionados à “festa brava”.

O primeiro registo de um evento desta natureza ocorreu em 1622, ano em que a Câmara Municipal de Angra do Heroísmo organizou a primeira “tourada à corda” enquadrada nas celebrações da canonização de S. Francisco Xavier e de Santo Inácio de Loyola.
Numa tourada de rua participam quatro touros, num percurso que ronda os 500 metros. O animal é controlado por uma corda comprida, com cerca de 100 metros, puxada, quando necessário, por sete a doze “pastores” que trajam blusa branca, chapéu preto e calça acinzentada.
A festa arranca logo pela manhã, na pastagem, para escolher os touros para a festa. Segue-se um almoço ao ar livre, muitas vezes acompanhado por música.
Algumas horas antes da tourada, os quatro touros separados são colocados em gaiolas de madeira, sendo o transporte para o local da corrida seguido por uma caravana de carros enfeitados com hortênsias.

Às 18H30 é lançado um foguete anunciando o início dos festejos, altura em que o primeiro touro sai da gaiola. Até ao pôr-do-sol sairão os restantes. Cada animal anda na rua perto de 20 minutos.
Entre a lide de cada touro existe um intervalo, que ronda um quarto de hora, aproveitado para dar escoamento ao trânsito e para os homens petiscarem nas “tasquinhas” ambulantes mesmo ali à mão. Por ali também andam vendedores de batatas fritas, pevides, amendoins, pipocas e donuts, para além de outras guloseimas. As touradas são uma excelente fonte de receita para as gentes da região. Basta dizer que os negócios ligados aos touros movimentam quase 40 milhões de euros por ano! Uma particularidade: os que moram na zona do arraial preparam mesas fartas para familiares e amigos e mesmo para alguns forasteiros que são convidados a associarem-se ao repasto.
Qualquer pessoa pode arriscar enfrentar o touro e ninguém paga bilhete para assistir ao espectáculo. É tradição as mulheres ficarem nas varandas, ou nos terraços, enquanto os homens se divertem no arraial. São considerados os mais destemidos aqueles que não se afastam muito do bicho.”
Alguns dos que por ali andam ainda não compreenderam que o peso dos anos já lhes roubou a agilidade de outrora e, por mais voltas que dêem, acabam quase sempre por se ensarilhar nos chifres do touro. Quando chega a hora, os que tiverem pernas para fugir correm até se sentirem seguros. Não havendo tempo, trepam muros, portões, árvores, postes de iluminação ou àquilo que estiver mais a jeito.
Outros, menos ágeis, ao verem as coisas mal paradas, atiram-se para o chão, protegendo a cabeça com as mãos, na esperança de não serem colhidos. Muitas vezes safam-se! Mas, mais cedo ou mais tarde, o touro acaba por atirar alguém contra um muro ou, pegando-lhe pelos fundilhos das calças, lança o desgraçado ao ar provocando-lhe uma queda aparatosa.
Mas nem só os que andam na estrada podem sofrer com a passagem do touro. Há pessoas sentadas nos muros que atiçam o bicho. Ora os muros, às vezes, são de construção frágil, compostos por calhaus soltos, uns por cima dos outros, rematados por uma camada de cimento. O bicho investe com tal ferocidade que esfrangalha aquilo tudo, pondo em perigo quem se julgava a salvo dentro do pátio. Se isto acontecer o pânico é geral, com toda a gente a esquivar-se, esbaforida, para a rua.
Se por um lado há pessoas que saem muito combalidas da refrega, outras há que são verdadeiros artistas na arte de escapar às investidas do touro. São os “capinhas” que, com ares de diestro, toureiam com capas improvisadas, guarda-chuvas abertos, uma peça de roupa, etc.
Há também quem enfrente o bicho completamente desarmado. Homem contra o touro. No campo das “touradas à corda”, luta mais leal não há! A única safa que têm, para não serem colhidos, é correr com passo miudinho, em círculos muito apertados, para vergar o touro, cortando-lhe a investida. Chegam a andar tão perto que roçam com a mão, durante alguns segundos, a testa do bicho.
Após a lide, os animais voltam aos campos para voltarem a ser utilizados quando necessário, mas nunca num período de tempo inferior a uma semana. Nas pastagens os touros têm alimentação saudável. São vacinados pelo médico veterinário que também os assiste em caso de doença.

A realização de corridas de “touros à corda” foi adquirindo um conjunto de regras de cariz popular respeitadas por todos. Estas normas definem, através dos riscos brancos pintados na via pública, até onde o touro pode ir, o lançamento de foguetes que anunciam o início e o fim de cada lide, para além de haver o cuidado de os touros terem as pontas dos chifres cobertas por algo que proporcione alguma protecção dos espectadores. Também as casas, muros, varandas e janelas, são tapados com protecções de madeira para evitar prejuízos quando o animal investe contra as coisas.
As touradas podem realizar-se mesmo em dias de condições atmosféricas desfavoráveis.

No final da tourada, a festa continua com “comes e bebes” ao qual os terceirenses chamam o “quinto touro”, que dizem “pegar mais” do que os touros verdadeiros.

Quem estiver interessado em conhecer melhor o que é uma “tourada à corda”, basta digitar, por exemplo: Imagens da Tourada à corda CAJAF na Feteira de 21 de Agosto de 2014.

Obs.- Fotos extraídas da rede social.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

À memória do diácono José Luís Macedo da Silva



Após uns breves instantes de reflexão sobre a notícia chegada, logo me veio o convite amável da parábola dos trabalhadores do campo a quem o dono da propriedade havia confiado a missão. “Servo bom e fiel… Entra na alegria do teu Senhor”.
De facto assim é. O tempo da labuta e da dor terminou. Foi vivido com paciente espera e grande sofrimento nos últimos anos. O Luís exerceu uma notável diaconia: a do progressivo despojamento e a da entrega confiante na misericórdia do Senhor Jesus. Este longo período veio coroar uma vida de dedicação e serviço. Período em que a esposa nos deu também testemunho admirável.
Muitos de nós o acompanhámos com solicitude. Com ele fomos caminhando na esperança e vendo como a fase dolorosa da vida nos ajuda a burilar as asperezas da cruz sempre prontas a afirmarem-se. Com ele, podemos agora louvar o Senhor da missão e pedir-lhe que interceda pela nossa Igreja Diocesana, especialmente pelas vocações ao ministério ordenado. Com ele, vamos acompanhando a Esposa Graça e sua família, pois a fase do luto real provoca, frequentemente, choques emocionais profundos.
Em comunhão de sentimentos e de esperança teologal, fico unido a todos e a cada um.

Aveiro, 19 de Julho de 2017

P. Georgino Rocha

NOTA: A Eucaristia exequial realizar-se-á amanhã, quinta-feira, 20 de julho, às 17h00, na Igreja de Salgueiro, e será presidida pelo nosso bispo,  D. António Moiteiro.

75 anos da Obra das Famílias em Schoenstatt


No domingo, 16 de julho, no Santuário de Schoenstatt, na Eucaristia das 18 horas, foi evocada a fundação da Obra das Famílias, que ocorreu há 75 anos, numa época em que, na Igreja Católica, não havia atividades para casais. «No próprio Movimento, as pessoas casadas só podiam integrar-se separadamente: o marido no ramo dos homens e as mulheres no ramo das mães.» Isto mesmo foi lembrado antes de se iniciar a celebração eucarística para situar a realidade humana e eclesial daquele tempo.
No mesmo texto, salienta-se que o fundador do Movimento de Schoenstatt, Padre Kentenich, sentia que faltava «uma estrutura que pudesse ajudar cada casal a crescer», no sentido de os esposos serem mais santos. «Ele estava convicto de que uma nova sociedade humana e um novo tipo de homem passavam pela criação e multiplicação de sólidas famílias schoenstattianas», foi também frisado na abertura da celebração.
A missa foi presidia pelo padre Carlos Alberto Pereira de Sousa, dos Padres de Schoenstatt, que à homilia recordou os passos dados pelo Fundador, no sentido de levar por diante a sua iniciativa de criar a Obra das Famílias, precisamente na altura em que estava preso no Campo de Concentração de Daschau, por se opor ao nazismo. «O momento-chave deu-se a 16 de julho de 1942, às 16 horas, na barraca número 14 (…), quando o Padre Kentenich conversou com Frederico Kühr sobre a possibilidade de iniciar um instituto de famílias». Foi precisamente esta data que foi evocada pela Obra das Famílias, nascida num campo de concentração nazi.
Quando o Movimento se instalou entre nós, com a abertura do saudoso Padre Domingos Rebelo à espiritualidade schoenstattiana, preconizando a vinda do também saudoso Padre Miguel Lencastre para seu coadjutor, muitas pessoas da nossa paróquia e da região aderiram aos ensinamentos do Padre Kentenich. E a partir daí, assumiram o culto à Mãe e Rainha, aceitaram o Santuário como espaço «onde é bom estar» e lugar de oração e de meditação, tendo como horizontes a construção de um «homem novo para uma nova sociedade». 
A semente schoenstattiana germinou e irradiou por terras e gentes, tendo como um dos seus princípios básicos estimular a participação dos seus membros nas mais diversas tarefas eclesiais das paróquias e dioceses.
A Obra das Famílias surgiu com toda a naturalidade entre nós, mantendo viva a chama e a luz que aquece e ilumina os caminhos matrimoniais de muitos casais. E isso mesmo constatámos no domingo, 16 de julho, dia da fundação da Obra das Famílias, no longínquo ano de 1942, quando reencontrámos casais que não víamos há bom anos. 

Fernando Martins

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Gaspar Albino partiu sem avisar





Gaspar Albino partiu sem avisar. Serenamente, como sempre viveu. Serenamente, mas nunca indiferente à vida, à sua cidade e suas gentes. Deixou-nos órfãos da sua riquíssima e multifacetada sensibilidade. Desde muito jovens se fez homem no pensar, no agir, no estar em sociedade, no assumir responsabilidades, no enfrentar desafios. 
O seu percurso de vida, por mais notas de vários tons que acrescentemos à lista longa do que sonhou e fez ficará sempre incompleta e muito pobre, face aos modestos contributos de todos nós na luta por um mundo mais belo, mais solidário, mais fraterno.
Homem de sete ofícios e saberes, nunca deixou a humildade de lado como timbre que se projetou na sociedade aveirense que ele tanto amou e dignificou. Tão saborosas eram as suas recordações de infância como sábias se mostravam as suas considerações sobre o que era justo ou injusto para que Aveiro saísse honrada. 
Neste momento de dor pela sua partida, resta-nos a certeza de que a sua memória, a sua sorridente bondade, a sua simplicidade, a sua cultura e a sua serenidade permanecerão connosco. E ainda fica connosco a convicção de que o Gaspar Albino já está no seio maternal de Deus.

Nota: A foto do Gaspar Albino é do meu arquivo: As duas imagens são do catálogo "Homenagem ao Pescador Manuel"

domingo, 16 de julho de 2017

Um poema para a aridez que nos envolve às vezes


Francisco D’Eulália

Leio as tuas cartas que não existem
mas leio sempre até à última linha
precisamente naquela em que educadamente
te despedes
depois torno a dobrar exactamente
pelos mesmos vincos
sem jamais os virar ao contrário
e meto no sobrescrito
ah! já se não diz
meto no envelope
e com cautela e meticulosidade
rasgo-as
e os pedacinhos como folhas sem sentido caem
no cesto dos papéis
que também não existe

como eu gosto de ler as tuas cartas

Francisco D’Eulália, ‘Lelo’,
In “Canto Longo & Outros Poemas”,
Modo De Ler
setembro de 2015


NOTA: Por sugestão do Caderno Economia do EXPRESSO

Bento Domingues — Livro de reclamações na Igreja



1. Li, não sei onde, que o Vaticano anda preocupado com a falta de exorcistas em Portugal. Ao comentar essa notícia com um amigo, ele acrescentou logo que, onde faltam, de certeza, é no próprio Vaticano.
Não desejo voltar à conversa dos pseudopreocupados com o Papa: está velho para poder realizar as reformas em que se meteu e a revolução que tentou desencadear não é tão irreversível como alguns supõem e desejam. Os que se julgam mais realistas e radicais acrescentam: não basta a Bergoglio ter encontrado um refúgio fora dos antigos aposentos dos papas; ou fecha o Vaticano para longas obras, ou continuará a espantar-se com surpresas de onde menos seriam de esperar.
Há, de facto, rumores de poucas-vergonhas, que estão a passar para a imprensa, de que os infiltrados, velhos e novos, são como as baratas: quando se abrem as gavetas, desaparecem rapidamente, mas não morrem. Esperam sempre uma nova oportunidade. Haverá alguma empresa capaz de eliminar, de forma eficaz, esses parasitas da chamada “Santa Sé”? Ou será que os diabos do Vaticano já se riem da fábrica de ritos dos seus exorcistas?
Tudo isso pode ter sentido, mas não vai além do anedotário romano. Como diz o Papa, os cristãos de parlatório, que conversam sobre como andam as coisas na Igreja e no mundo, sem paixão por transformar as suas vidas, continuam a flutuar nas suas espreguiçadeiras, enquanto debitam sentenças sem consequências.
Ele próprio, ainda no mês passado, lembrou aos novos cardeais que o caminho é seguir Jesus que os chama a olhar para a realidade, não se deixando distrair por outros interesses, por outras perspectivas: “Não vos chamou para vos tornardes ‘príncipes’ na Igreja e para vos sentardes à sua direita ou à sua esquerda. Chama-vos para servir como Ele e com Ele.” [1]
Quem seguir de perto as intervenções do papa Francisco — homilias, discursos, cartas pastorais, etc. — fica espantado com o grande livro de reclamações, onde vai escrevendo, em nome do Evangelho, o que exige dos padres, dos bispos e dos cardeais.
 Luta por um clero não clerical, confessando-se membro de um povo consagrado a Deus e ao serviço de toda a humanidade pelo sacerdócio comum a todos os baptizados. A função do clero não é a de mandar na Igreja de todos, mas a de ajudar a desenvolver a vocação de todos à santidade. Os padres, os bispos, os cardeais, o Papa, centrados em si mesmos e nos seus títulos de carreira eclesiástica, tornam-se traidores da Igreja.
Bergoglio, no dia em que deixasse de lhes pedir contas, tornar-se-ia conivente dessa traição. Não é por acaso que ele, em vez de se proclamar infalível e Santo Padre, se confessa pecador e pede a oração dos fiéis.

2. Para quem se reconhece na liderança deste Papa, mas perde o sentido da sua própria responsabilidade na reforma actual e concreta de dioceses, paróquias, movimentos, congregações religiosas, a pretexto de que o governo da Igreja, ao mais alto nível, está bem entregue, ainda não percebeu nada do desígnio de Bergoglio.
Quando invoco um livro de reclamações nas igrejas, não é para registar o descontentamento com o funcionamento da cúria diocesana, das secretarias, dos cartórios e dos conselhos paroquiais, da celebração dos mandamentos e da organização da catequese. Por mais importante que seja essa burocracia e o seu bom funcionamento, estaríamos apenas no âmbito do que se deve exigir a qualquer outra organização e que a Igreja não pode dispensar. Se assim fosse, a vida eclesial só precisaria de recorrer às escolas de gestão.
O que pretendo sugerir com o livro de reclamações é uma forma de responsabilização de toda a comunidade. Não é o registo da má-língua. Quem reclama deve estar empenhado na mudança, na reforma da paróquia ou do movimento. Deve reclamar, pois todos os fiéis têm direito à celebração da Palavra, da Eucaristia e dos outros Sacramentos, a não confundir com a leitura escalonada dos livros litúrgicos e de homilias intragáveis ou apenas sofríveis.
Não se pode esquecer que, hoje, em Portugal, as assembleias litúrgicas são compostas por pessoas com muitas competências profissionais e culturais que nunca tiveram oportunidade de oferecer os seus préstimos para a festa dominical. Outras foram-se afastando. Não conseguem suportar a falta de qualidade das celebrações, a começar pelas homilias e acabar nos cânticos: não tenho nada que ver com aquilo nem aquilo tem nada que ver comigo. Repete-se a cena evangélica: porque estais aí o dia todo sem fazer nada? Porque ninguém nos convocou.
 O livro de reclamações deve registar que há muitas pessoas que podem, querem e devem contribuir para que as celebrações recolham as alegrias, as esperanças, as preocupações, as frustrações e os desejos da assembleia celebrante, mergulhando-a na Palavra, na Eucaristia, no canto, na oração transfiguradoras do passado. O primeiro dia da semana é o domingo, o renascer da esperança.

3. O livro das reclamações não regista apenas o que falta. Reclama, de cada um, o que pode dar à comunidade para que ela forme pessoas responsáveis pela sociedade, vendo o mundo a partir dos excluídos e não dos instalados. A celebração tem de formar uma Igreja de saída e não um concentrado de beatos e beatas, preocupados em reconduzir as celebrações e as devoções ao estilo pré-Vaticano II. Não passam de sabotadores do movimento desencadeado pelo bispo de Roma.
Pelo que foi dito, não devia existir nenhum grupo, movimento ou paróquia, sem um livro de reclamações para manter o bom desassossego, a não confundir com o registo dos azedumes, das invejas e, sobretudo, das lutas pelo poder, em nome do serviço, terra de oportunistas.
As comunidades cristãs devem ser um exemplo de perdão e de misericórdia, o que parece incompatível com um livro de reclamações, caderno de encargos, exigências e avaliações.
Não esqueçamos, porém, o que escreveu Tomás de Aquino: “Iustitia sine misericordia crudelis est, misericordia sine iustitia mater est dissolutionis.” (A justiça sem misericórdia é cruel, a misericórdia sem justiça é a mãe da degradação.) [2]
Talvez haja quem pergunte: como realizar esse livro de reclamações?
A imaginação humana e cristã tem sempre alguns recursos.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO 

 [1] Cf. Alocução do Papa Francisco,
28 de Junho de 2017.

[2] Cf. S. Tomas Aquinas, Expositio in Matthaeum S. Thomas Aquinatis Catena Aurea in quatttuor Evangelia. Roma-Taurini, vol. I, 5, 7