domingo, 8 de abril de 2007

TECENDO A VIDA UMAS COISITAS-18

Capela de Nossa Senhora da Penha, Vista Alegre:
Túmulo de D. Manuel de Moura Manuel


A CAPELA DA VISTA ALEGRE
E O ESCULTOR

Caríssima/o:

Uma tradição e costume dos habitantes da nossa terra era ir à Feira da Vista Alegre. Esta feira, mais conhecida pela “Feira dos 13”, é realizada no espaço da «quinta», nos dias 13 de cada mês. Foi devida a influências de D. Manuel de Moura Manuel, pedida pelo juiz, vereadores e povo das «vilas» da Ermida e Ílhavo, e autorizada por alvará régio de 14 de Junho de 1663.
Também eu um dia lá fui na companhia de minha Mãe em busca de um agasalho: que sobretudo quentinho se comprou em segunda mão! E como me resguardou nos primeiros anos do liceu nas viagens invernosas de bicicleta para Aveiro!...
Ora, Viale Moutinho, em “Lendas de Portugal”, edição de Diário de Notícias, 2003, a páginas 117, fala-nos daquele bispo e da capela da Vista Alegre. Vamos ler:
«Na capela da Vista Alegre, da invocação de Nossa Senhora da Penha de França, há uma notável obra de arte tumular em mármore, em que a figura não se encontra exactamente jacente mas soerguida. Como se visse algo espantoso diante dela, a visão do outro mundo. E o que não poderia ver aquele que, para além de 16.º bispo de Miranda e reitor da Universidade de Coimbra, fora sobretudo pessoa graúda na cruel Inquisição? Trata-se de D. Manuel de Moura Manuel, protagonista de uma lenda, dono da vizinha Quinta do Paço da Ermida. Pois a lenda diz que esse túmulo foi feito pelo próprio Diabo, ainda em vida do prelado. Admiram-se? Já vão saber como.
O bispo de Miranda, quando as obras do templo iam adiantadas, lembrou-se de mandar ali fazer o túmulo em que seriam guardadas as suas cinzas. Concebera o projecto e precisava de um bom artista para o executar. Cismava nisso quando lhe apareceu um jovem desconhecido, que se ofereceu para dar corpo à sua ideia. Era todo um misterioso personagem que evitava falar de si e não trazia recomendações de ninguém.
- Quem lhe disse que eu não encontrava artistas para as obras que desejo fazer?
- Adivinhei-o.
- Então, estou a falar com um adivinho?
- Sim, senhor.
- Pois deixe-me em paz.
- Mas eu nem sei com quem trato...
- Ouça-me, olhe que quem eu sou pouco importa. Precisa ou não de um bom escultor?
- Preciso.
- Então, contrate-me. Eu sou escultor e não dos piores!
O prelado começou por rejeitá-lo, por falta de confiança. Em desespero de causa, o escultor disse que faria uma peça à experiência e lha traria de amostra. Relutante, o bispo aceitou, mas só para se ver livre dele.
Dias mais tarde, o desconhecido procurou D. Manuel e exibiu-lhe uma escultura. Trabalhara nela mesmo ali, ao pé da capela, encerrado numa cabana de palha. Finalmente, acabara a obra. Era um retrato do Diabo. D. Manuel de Moura Manuel ficou deslumbrado com a perfeição e o vigor da escultura. Logo ali entregou a capela e o seu túmulo àquele misterioso desconhecido, afastando todos quantos se lhe ofereceram e por quem tantos e tão altos se interessavam. E ele não só acabou as obras da igreja e o túmulo do bispo, como também de D. Teodora, a filha do prelado.
E o mais misterioso foi que, estando as obras apontadas pela mão do indivíduo misterioso, já não se tornando necessária qualquer sua ulterior intervenção, ele desapareceu. Não faltou quem dissesse que ele tinha pactos diabólicos. Nem sequer se apresentou para receber, e não era tão pouco como isso. Os que não acreditam em lendas, alvitram que o artista poderá ter sido assassinado por ladrões, que decerto lhe roubaram alguma coisa que o bispo lhe tivesse pago. Mas até isso já é ganga da lenda...»

Uma Santa Páscoa, com bons folares.

Manuel

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Santa Páscoa

Neste início do tríduo pascal, quero desejar a todos os meus leitores e amigos uma Santa Páscoa.
Aproveito para sublinhar que tenho estado um pouco ausente deste meu espaço por razões, muito simples, de algum cansaço.
Espero retomar, em breve, a dinâmica habitual, com mais atenção ao mundo que nos cerca e que temos o dever de o tornar mais fraterno.

Mensagem pascal do Bispo de Aveiro

TESTEMUNHO DE VIDA,
A GRANDE MENSAGEM PASCAL

Em Aveiro, cidade e diocese, fui descobrindo, nestes primeiros meses de vida e ministério, através de tantas pessoas que encontro, dos movimentos apostólicos e grupos cristãos com que reúno, das comunidades cristãs que visito e das iniciativas pastorais que acompanho e incentivo, um modo peculiar e belo de celebrar a fé com alegria, de viver a Quaresma com intensidade e de preparar a Páscoa com entusiasmo.
Cada paróquia teve os seus dias de confissões, oferecendo a cada crente momentos únicos de celebração sacramental da reconciliação. Cada paróquia fez a sua caminhada quaresmal e proporcionou oportunidades próprias ou de índole arciprestal de formação teológica, espiritual e pastoral.
O testemunho de vida e de fé dos sacerdotes, diáconos, religiosos e leigos de Aveiro e a proposta de iniciativas pastorais e de acções litúrgicas das comunidades cristãs e dos movimentos apostólicos da diocese são a grande mensagem pascal que, na comunhão da Igreja que somos, acolho, assumo e transmito a todos os Aveirenses.
Importa ter presente que a Páscoa não é apenas o Domingo da Ressurreição. A Quaresma termina na manhã de Quinta-feira Santa com a Missa Crismal. Com a Celebração do Senhor inicia-se o Tríduo Pascal; na Sexta-feira Santa celebra-se a Paixão e a Morte de Jesus; no Sábado Santo vive-se um longo dia de silêncio e de meditação na expectativa do Domingo e na esperança do anúncio solene da Ressurreição. Este Domingo começa com a maior de todas as vigílias: a Vigília Pascal.
Por seu lado o tempo pascal prolonga-se até ao Pentecostes e a celebração da Páscoa tem lugar em cada Domingo, que é o dia do Senhor Ressuscitado, e em cada Eucaristia em que anunciamos a morte de Jesus, proclamamos a sua ressurreição enquanto aguardamos a sua vinda.
Na Eucaristia, sacramento de amor compreendemos que Aquele que volta à vida é Aquele que dá a vida.
Se em alguma época ou circunstância a Igreja for tentada pelo desânimo, pelo medo, ou pelo pessimismo tudo isso se deve desvanecer à luz da Páscoa. Aqui renasce em cada ano e em cada tempo o dinamismo redentor da fé, a certeza inabalável da esperança cristã e a garantia serena de que toda a vida tem sentido indeclinável e valor eterno.
É dando a vida que Jesus vence a morte. É ressuscitando que Jesus nos reconduz à vida e à graça de sermos filhos de Deus, salvos do medo, do pecado e da morte.
Este é o mais denso e santo mistério que a Páscoa nos oferece e que nos chama a viver, a celebrar e a testemunhar.
São múltiplas as manifestações de alegria, de festa, de vida e de esperança que envolvem a celebração da Páscoa nas nossas terras cristãs.
Devemos saber cultivá-las e mantê-las na medida em que são expressão pública da fé no Ressuscitado, dão colorido à vida humana, familiar e social e emprestam interioridade espiritual e beleza aos nossos ambientes. Procuremos impregnar de forma criativa estas manifestações de conteúdo doutrinal e de aprofundamento formativo para que sejam gestos evangelizadores e instrumentos de diálogo com o mundo e pontes de sadia articulação entre a fé e a cultura.
Voltada para a família como prioridade pastoral, a Igreja de Aveiro conhece a urgência que as famílias sentem de descobrir na Páscoa a força da reconciliação, o segredo da harmonia e da fidelidade, a fonte do amor santo e feliz, a alegria do acolhimento da vida e da educação religiosa dos filhos, o encanto da oração em comum, o sentido da disponibilidade para o bem e para a missão apostólica e o sabor saudável da festa e da esperança cristãs.
Dirijo esta mensagem pascal, com particular afecto pastoral, a todas as famílias da diocese para que encontrem na Páscoa de Jesus Cristo, que a Igreja renova e celebra, a fortaleza do amor e a alegria da felicidade e ajudem os que vivem em provação a manterem vivas a fé, a esperança e a fidelidade.
Santa e Feliz Páscoa.

+ António Francisco dos Santos
Bispo de Aveiro

terça-feira, 3 de abril de 2007

Um poema de João de Deus


CRUCIFIXO


– Minha mãe, quem é aquele
Pregado naquela cruz?
– Aquele, filho, é Jesus...
E a santa imagem dele!

– E quem é Jesus? – É Deus!
– E quem é Deus? – Quem nos cria,
Quem nos manda a luz do dia
E fez a terra e os céus;

E veio ensinar à gente
Que todos somos irmãos
E devemos dar as mãos
Uns aos outros irmãmente:

Todo amor, todo bondade!
– E morreu? – Para mostrar
Que a gente pela verdade
Se deve deixar matar.

:

Foto: Crucifixo de Salvador Dalí

Um artigo de Alexandre Cruz


Será Páscoa,
será um tempo novo!


1. Não é um simples cumprir de calendário social, nem é meramente um tempo que marca alguns dias de férias na primavera que floresce, nem é somente o assinalar da transição para um novo período lectivo. Páscoa não rima com hábito repetitivo, Páscoa quererá ser “Passagem” sempre criativa a uma vida melhor! Todos os sinais, gestos e pausas escolares vêm, precisamente, deste festejar uma nova alegria que se foi construindo ao longo do tempo da sua preparação (sim os grandes acontecimentos preparam-se!). Só assim tudo fará sentido; vendo ao contrário, esquecendo a razão de ser da festa e do encontro, tudo correrá o perigo de se esvaziar. A Páscoa (tal como o Natal) quererá marcar na história da vida pessoal e social um tempo novo, onde a esperança que se renova será o lema de ordem permanente.
2. É admirável a pedagogia dos séculos que nos precederam e que fazem chegar até nós um significado englobante de toda a realidade que nos envolve. A “tradição” que chega até nós (e as boas tradições serão sempre de continuar) dando-lhe sempre mais sentido, mostra-nos que com a irrupção da natureza primaveril, com o progressivo surgir das primeiras colheitas, haverá que dar um sentido espiritual, virtuoso, de ideal absoluto, a tudo aquilo que está a acontecer. A Páscoa (judaica da antiguidade de Moisés) aperfeiçoada existencialmente na histórica Páscoa da entrega dedicada e decisiva de Jesus Cristo, transmitiram criativamente ao longo dos séculos um sinal esperançado de que A VIDA VENCE toda a morte e de que tudo quanto existe quererá participar desse luminoso projecto de vida.
3. A autenticidade do acontecimento pascal – na sua celebração de Semana Maior – coloca diante de nós tudo quanto nos acontece e faz parte da nossa própria humanidade pessoal e social. A Páscoa não esconde o (sofrimento) que tantas vezes a sociedade da “estética” oculta; o horizonte da beleza pascal, contrariando tantas misérias e menoridades egocêntricas, quererá oferecer um sinal universalista de “ética” como caminho de (re)conciliação entre os povos; o sentido festivo pascal propõe, desmontando caminhos de individualismo asfixiante, uma sincera abertura ao outro, ao grupo, à dimensão social de festa que seja um “sinal” plural de frescura do “novo encontro” de uns com os outros. Que seria de nós sem (o Natal e) a Páscoa?! Um repetitivo contínuo, fotocopiado sem novidade, sem um sentido novíssimo a dar ao tempo e à vida!
4. A Páscoa não vem por si mesma sem um “acolhimento”; a Páscoa não se compra nem se vende; a Páscoa, no seu verdadeiro sentido de “passagem” desejará fortalecer o encontro, gerar maior proximidade, na tomada de consciência que o “tempo histórico” é sempre provisório e que o essencial da vida será a nossa abertura de espírito ao outro e ao “tempo do absoluto” divino. A Páscoa quer-nos fazer parar e pensar mais um pouco, olhar para a vida, não nos deixarmos afogar nas preocupações que ela contém (e que estão sempre garantidas!); propõe-nos que “repousemos” um pouco no sentido de nos renovarmos na nossa própria identidade de “pessoas” que somos e aí abrirmo-nos à (re)criação humilde de todas as novas possibilidades e horizontes, desejando envolver um mundo de paz em tudo o que somos e sentimos. Só um “coração do tamanho do mundo” verá a verdadeira Páscoa! Mas esse não dependerá tanto do número de “horas de religião” mas sim bem mais da autenticidade de vida, sendo um “coração puro”...
5. Será Páscoa na medida em que a preparamos! Não só o cuidar da casa para receber a festa, mas o cuidar da “paz interior” para acolher de modo mais vivo um sentido de paz espiritual. Haverá tanto mais harmonia, sentido para a vida e equilíbrio na gestão diária quanto mais aquilo que não os ritmos do sentir humano (espelhados nestes tempos fortes) forem acolhidos de modo feliz e gratificante na liberdade pessoal. São muitos os caminhos, mas… se não se colocar ao caminho, se não se ligar ao que “acontece”, tudo não passa de um clonado ficar na mesma, perdendo-se a frescura e passando ao lado do maior acontecimento do tempo da história humana que, na Páscoa, se abre ao tempo novo absoluto. E tanto que o mundo precisa de vidas com sentido pascal que dêem paz e esperança a cada momento de vida!
6. Que em algum tempo de “pausa” destes dias seja dado ao “Senhor do Tempo” mais um pouco de espaço. Será mais Páscoa, nesta identificação pessoalíssima com o ideal maior da perfeição a atingir; na Páscoa que celebramos a breve condição humana recebe o tesouro de uma dignidade (humana) que é divina, acolhendo em Jesus Cristo essa ponte da “passagem” do “tempo” para a eternidade. Grandioso mistério, acima de toda a tecnologia…, que inscreve em cada pessoa humana um desígnio e uma vontade de paz, felicidade e amor intermináveis. Que toda a Páscoa traga toda a frescura (re)criadora e livre para este tempo novo que se abre! Precisamos da Páscoa, recriemos ponte (“link”) para aceder à grandeza de tamanha (mas tão simples) oferta. Seja bem-vindo, apreciado e vivido esse tempo novo!

Imagens de Aveiro


ARQUEOLOGIA INDUSTRIAL REQUER
ENQUADRAMENTO MAIS ASSEADO
:
A ideia de preservar uma marca da nossa arqueologia industrial foi muitíssi-mo boa. Por isso, é de louvar que, da fábrica demolida, tenha ficado, ali a caminho do Centro de Congressos, para memória futura, a chaminé que foi familiar a tantos aveirenses. Penso, no entanto, que ela bem merecia um enquadramento mais arejado, mais bonito, mais limpo, mais adequado. Que os responsáveis pensem nisso, são os meus votos.

João Paulo II


A HUMANIDADE
JÁ O CANONIZOU HÁ MUITO

O Papa que porventura mais impressionou o mundo no século XX morreu fez ontem dois anos. Impressionou o mundo porque o seu entusiasmo apostólico chegou a toda a gente, numa ânsia de a todos levar a Boa Nova de Jesus Cristo, percorrendo os caminhos dos homens, crentes ou não crentes. Cristãos e de outras religiões. Mas o seu sorriso inefável e fraterno, esse foi mesmo, ainda, para os indiferentes à força do divino e sobretudo para os perseguidos, marginalizados e feridos da vida.
Bateu-se pelos valores da fé que o animava, mas também foi um incansável arauto dos valores da justiça, da verdade, da liberdade, da paz e do amor. Encantava jovens e menos jovens, indicava metas do bem e do belo, recebia gente dos mais diversos quadrantes políticos, patrocinava encontros ecuménicos e inter-religiosos, estava atenta à vida do mundo, rezava e ensinava a rezar, deixou-nos inúmeros documentos que continuam a ser um apelo à reflexão e ao diálogo entre todos, homens, mulheres, culturas e religiões. Está a caminho da beatificação, exigindo a Igreja um milagre para isso. Depois mais um milagre para a canonização.
Para mim, contudo, os seus milagres são bem conhecidos de todos nós, católicos, de outras confissões religiosas, ateus ou agnósticos. Os seus milagres estão no exemplo de vida, nos testemunhos e na acção apostólica que marcaram o seu extraordinário pontificado. Tudo o mais que buscarem para a sua beatificação e canonização será sempre secundário. A Humanidade já o canonizou há muito.

Fernando Martins

Um artigo de António Rego


O itinerário da paz

Foi salutar ouvir Jean-Yves Calvez falar sobre a "Populorum Progressio". Uma espécie de ressonância da esperança há quarenta anos enunciada por Paulo VI na senda das grandes encíclicas sociais que alimentaram a vida apostólica de muitos cristãos. Veio ao de cima o sentido da espiritualidade no plural, ligada ela própria à existência concreta dos povos de todo o mundo, no abraço que o Concílio Vaticano II já propusera, ao anunciar a presença do Espírito nos grandes pólos da Igreja e do mundo contemporâneo.
Daí para cá muitos novos sinais surgiram. Mas também alguns se perderam, diluídos em tantos movimentos estreitos, voltados apenas para a zona etérea do abstracto e do individual, com ligeiros tons em acções isoladas e sem perspectiva de mudança estrutural. Dizendo por outras palavras: consentindo que alguns se salvem, dentro do pecado organizado pela injustiça e desigualdade do próprio mundo.
Com a presença, na mesa, do Cardeal Patriarca de Lisboa e do Dr. José Carlos Sousa - um dos grandes peritos em Doutrina Social da Igreja - Calvez recapitulou o essencial do texto e contexto, o espírito que o Papa Montini tão bem expressou sobre a palavra chave do momento: o desenvolvimento, como desiderato de todos, possibilidade para todos, obrigação de todos. De tal forma, disse Paulo VI, que "o desenvolvimento é o novo nome da Paz... E um apelo ao progresso do homem todo e de todos os homens."
O Patriarca de Lisboa chamaria à encíclica "intuição profética" na abordagem das grandes questões que, quarenta anos, depois nos atingem. E concluiu: "aos cristãos compete mergulhar permanentemente nos sinais dos tempos e aí descobrir sinais de esperança".
Não foi um acontecimento revivalista mas de integração dum passado recente com um presente que lança à Igreja novas questões no seu compromisso social. E relembra algumas já esquecidas.

domingo, 1 de abril de 2007

Um artigo de Anselmo Borges, no DN


O sacramento do amor


"Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como o bronze que ressoa ou como o címbalo que tine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que possua a fé em plenitude, a ponto de mover montanhas, se não tiver amor, nada sou. O amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, não procura o seu interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. O amor nunca acabará." Esta é uma breve citação do hino célebre ao amor, de São Paulo aos Coríntios.
Este amor corresponde à única tentativa de definir Deus no Novo Testamento: "Deus é amor", escreveu São João. Na companhia de Jesus, os discípulos perceberam que a essência de Deus é amar, e foi esse Evangelho que eles foram anunciar, dando dele testemunho até à morte. Foi essa notícia boa e inaudita que levou à conversão.
Um ano depois da publicação da sua primeira Encíclica Deus é amor, Bento XVI publicou, com a data de 22 de Fevereiro, uma Exortação Apostólica sobre a Eucaristia enquanto "sacramento do amor", que deveria ser eco da XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que decorreu em Outubro de 2005 no Vaticano.
:
Leia mais em DN

TECENDO A VIDA UMAS COISITAS-17


A LÂMPADA DE ÍLHAVO

Caríssima/o:

A primeira saída oficial da nossa terra era à sede do concelho, onde fomos pelo bilhete de identidade e, poucos dias depois, para o exame da 4.ª classe. É verdade, parece que ainda foi ontem! Como o tempo corre e quantas mudanças! Vejam só que para ir a tão importante acto, ou íamos a pé, ou apanhávamos boleia de bicicleta ou então táxi. Pela lógica, este era proibido e, no nosso caso, fomos algumas vezes no quadro da bicicleta puxada pelo Hortêncio e o Oliveiros no porta-bagagem! Mas isto era um luxo: o vulgar era calcorrear correndo pelos caminhos que atravessavam a floresta.
Diniz Gomes empresta-nos a sua escrita de «Costumes e Gentes de Ílhavo», p. 57 ss., de 1941, para nos elucidar sobre a tal estória da lâmpada:

“Poucas serão as terras do nosso país, de grande ou pequena categoria, a quem a lenda popular não tenha atribuído uma anedota ou história ridículas, de que muitos se servem, por graça, para arreliarem os naturais das localidades atingidas.
Ílhavo, está bem de ver, não podia deixar de ter, também, a sua historieta jocosa, direi mesmo, um pouco vexatória para os brios do seu povo, bastante cioso do seu bom nome e honrosas tradições.
O leitor, estou certo disso, conhece-a de sobra, tanto ela se popularizou e correu mundo.
Trata-se do pretenso roubo de uma lâmpada de prata que se diz ter existido na matriz da vila, e que, em certo dia, foi levada para limpar por um espertalhão de marca maior que por aqui abordou, e que teve artes de praticar a audaciosa façanha sem ser incomodado, e, precisamente na ocasião em que ali se rezava missa, estando o templo repleto de fiéis. [...]
Ora as coisas, segundo me contaram quando eu era menino e moço, passaram-se assim:
Era domingo de festa na terra. [...]
Iria a missa em meio quando, por uma das portas laterais da igreja, entrou um indivíduo de boa aparência mas desconhecido na terra, que se dirigiu vagarosamente para junto da Capela do Santíssimo, em cujo limiar se encontrava suspensa do tecto, uma aparatosa lâmpada de prata lavrada com o peso dalguns arráteis, que ao tempo ainda não havia gramas nem quilos.
O homem, depois de ajoelhar e de se benzer, levantou-se e foi poisar, sobre um dos degraus de pedra do púlpito, um grande saco de linhagem de que vinha munido. E, olhando, com certa curiosidade a soberba lâmpada, murmurou desalentado:
- Quem te há-de limpar por semelhante preço?! O negócio que eu fui fazer!...
Todos os que o rodeavam, e ouviam a missa, inquiriram, em voz baixa entre si, se era realmente verdade a lâmpada ir ser limpa desta vez, como há muito era mister, tão suja e azebrada ela se encontrava.
E a boa nova correu ligeira de boca em boca, procurando todos ver de perto o artista encarregado pela Senhora Junta da Paróquia de executar o trabalho.
Mas o homem é que não manifestava interesse algum por isso, visto permanecer ali parado e indeciso, sem querer tomar qualquer resolução, repetindo a miúdo:
- Mas quem te há-de limpar por semelhante preço?!...
E o melhor da passagem é que o seu aspecto triste e acabrunhado chegou a inspirar relativa compaixão entre os assistentes.
Mas, a certa altura, pareceu encher-se de coragem, dizendo resoluto:
- Pois se justei, está justo! Venha a lâmpada abaixo!
E logo a corda que a segurava correu na roldana, fazendo descer vagarosamente a lâmpada que o desconhecido guardou dentro do saco que trouxera. Em seguida, saiu lentamente da igreja pela mesma porta por onde tinha entrado.

Findara a missa. Pouco a pouco os fiéis vão abandonando a igreja[...].
Arrumados, à pressa, os paramentos nos pesados armários da sacristia, e apagada as discretamente as velas de cera dos altares, o solícito sacristão foi, pressuroso, à residência paroquial, saber do senhor prior porquanto fora justa a limpeza da lâmpada do Santíssimo, e quem era o artista encarregado desse serviço.
Esta curiosidade, que sempre foi atributo de todos os sacristães havidos e por haver, causou surpresa e alvoroço no bom do padre, que de nada sabia nem se apercebera enquanto rezava a sua missa. E logo previu que a igreja fora sacrilegamente roubada pelo que mandou, imediatamente, tocar os sinos a rebate, ordenando a saída de homens resolutos em perseguição do audacioso larápio. Infelizmente, este, já não foi possível ser apanhado. [...]
Este estranho e nunca visto acontecimento causou, está bem de ver, profunda consternação na nossa terra. Por esse motivo, os sinos da igreja dobraram em sinal de luto durante três dias e fizeram-se orações de resgate e desagravo. Realmente o caso não era para menos.
E aqui tem o leitor, contada como eu a sei, a história do roubo ardiloso da lâmpada da igreja de Ílhavo. O facto, pela sua originalidade, tornou-se notório, popularizando-se. A ponto tal que ainda hoje nos surge, às vezes, um gracioso que maliciosamente nos diz:
- Ah! Você é da terra da lâmpada?»

Afinal, esta brincadeira da lâmpada algumas vezes serviu quando a rapaziada de Ílhavo nos atacava:
- Vai cavar batatinhas para a Gafanha!
Ai, sim, diz então onde puseram a lâmpada?
E funcionava...

Manuel