Mostrar mensagens com a etiqueta Um artigo de Anselmo Borges. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Um artigo de Anselmo Borges. Mostrar todas as mensagens

sábado, 16 de janeiro de 2010

O abismo entre os muito ricos e os muito pobres é intolerável


Cassandra

Jonas e Cassandra

1. O livro de Jonas, na Bíblia, enquadra-se no chamado género literário midráshico, portanto, sem pretensão de narrar acontecimentos históricos, mas com intenção didáctica. No caso, essa intenção é a superação do particularismo da salvação e a proclamação do amor e misericórdia universal de Deus. Ficou no imaginário popular e artístico sobretudo por causa dos três dias e três noites que Jonas passou no ventre de um peixe.

Jonas começou por não querer cumprir a ordem de Deus, que o enviou a Nínive: "Levanta-te, vai a Nínive, a grande cidade, e anuncia-lhe que a sua maldade subiu até à minha presença". Mas, depois de o peixe o ter vomitado em terra firme, Jonas foi, entrou na cidade e andou um dia inteiro a apregoar: "Dentro de quarenta dias Nínive será destruída". Ora, diz a Bíblia, "os habitantes de Nínive acreditaram em Deus, ordenaram um jejum e vestiram-se de saco, do maior ao menor. A notícia chegou ao conhecimento do rei de Nínive; ele levantou-se do seu trono, tirou o seu manto, cobriu-se de saco e sentou-se sobre a cinza". E publicou um decreto para que "cada um se convertesse do seu mau caminho e da violência que há nas suas mãos".
Então, "Deus viu as suas obras, como se convertiam do seu mau caminho, e, arrependendo-se do mal que tinha resolvido fazer-lhes, não lho fez". Aí, Jonas sentiu-se atraiçoado, pois a sua profecia não se cumpria. Andara a fazer o quê? "Ficou profundamente aborrecido com isto e, muito irritado, pediu ao Senhor: 'Peço-te que me mates, porque é melhor para mim a morte que a vida'".

Anselmo Borges

sábado, 9 de janeiro de 2010

O que seria a Igreja sem esse Concílio?, sem ele, como seria o próprio mundo?




Libertação e política


Volto ao teólogo flamengo Edward Schillebeeckx, um dos mais notáveis e influentes pensadores católicos do século XX, que morreu, com 95 anos, no passado dia 23 de Dezembro, em Nimega (Holanda), em cuja universidade ensinou. Foi um dos principais mentores do Concílio Vaticano II, acontecimento determinante do século XX. De facto, aos seus críticos é preciso perguntar: o que seria a Igreja sem esse Concílio?, sem ele, como seria o próprio mundo?
E. Schillebeeckx fez parte de uma plêiade excepcional de teólogos - entre eles, M. D. Chenu, H. Urs von Balthasar, Yves Congar, Henri de Lubac, Karl Rahner, J. B. Metz, Hans Küng -, que ousaram pensar e que deram uma nova orientação ao cristianismo e à Igreja. Um dos problemas maiores da Igreja actual é que precisamente essa geração está a desaparecer e não tem substitutos à altura.
Acusado de pôr em perigo a ortodoxia, teve de enfrentar por três vezes a Congregação para a Doutrina da Fé - uma das vezes, porque defendeu que a comunidade poderia designar membros seus não ordenados para presidir à Eucaristia -, e denunciar os seus métodos inquisitoriais, constatando que a Igreja se ia desviando do Concílio e se tornava cada vez mais monolítica, confundindo unidade com uniformidade.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Edward Schillebeeckx, um teólogo feliz



Edward Schillebeeckx
Deus é um luxo

A última vez que o encontrei foi em 1988, em Nimega (Holanda). Recebeu-me na sua cela bem modesta, e, embora a saúde já não fosse particularmente boa, concedeu-me tempo para uma longa conversa. E foi aí que lhe lembrei a sua afirmação de que Deus não é uma necessidade, mas um luxo. Ele confirmou: "Sim. Abusou-se de Deus, da palavra Deus, no sentido de que Deus foi funcionalizado, posto em função do homem, da sociedade, da natureza... Ora, a natureza, o homem e a sociedade não têm necessidade de Deus para serem o que são. Mas, por outro lado, o luxo da nossa vida humana é, por exemplo, poder receber um ramo de flores. Não é uma necessidade. É um gesto completamente gratuito. É essa a grande experiência humana."
Edward Schillebeeckx morreu na véspera de Natal, no passado dia 23, em Nimega. Tinha 95 anos. Frade dominicano, foi um dos teólogos católicos mais prestigiados do século XX. Preparou e inspirou decisivamente o Concílio Vaticano II, concretamente nalguns dos seus documentos mais importantes, referentes à Revelação e ao diálogo da Igreja com o mundo. Ao velho aforismo "Fora da Igreja não há salvação", E. Schillebeeckx contrapunha: "Fora do mundo não há salvação." Co-fundador da revista Concilium, que continua a ser publicada em várias línguas, a sua influência impôs-se muito para lá da Teologia, tendo, por isso, recebido o Prémio Erasmus. Crítico da Igreja oficial, concretamente da política eclesiástica do Vaticano na nomeação dos bispos, para ter de novo uma Igreja uniforme, enfrentou por três vezes a Congregação para a Doutrina da Fé e denunciou os seus métodos. Definiu-se, no entanto, como "um teólogo feliz".

sábado, 26 de dezembro de 2009

Uma breve reflexão sobre o mistério do tempo



O que é o tempo?

No termo de mais um ano e na entrada de outro, são muitos os pensamentos que nos invadem. Mas talvez não seja fora de propósito também uma breve reflexão sobre o mistério do tempo.
Já Pascal se interrogava na perplexidade: porque é que, num passado ilimitado e num futuro igualmente sem limites, me coube viver precisamente neste tempo que é o meu?
Se soubéssemos o que é o tempo, também saberíamos o que somos. Santo Agostinho - volta-se sempre a Santo Agostinho, quando pretendemos meditar sobre o tempo - pergunta: O que é tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; mas, se alguém me puser a questão e eu quiser responder, já não sei.
Há múltiplas experiências e perspectivas do tempo. Aparentemente, tudo vai e tudo volta. As estações do ano repetem-se, sucessivamente: Primavera, Verão, Outono, Inverno, e outra vez Primavera, Verão, Outono, Inverno... Cada ano, o ano velho despede-se e chega o ano novo. Outra vez. Aí está o mito do eterno retorno, como repetiu Nietzsche: "Esta vida, tal como a vives naturalmente, tal como a viveste, é necessário que a revivas mais uma vez e uma quantidade inumerável de vezes, e nela nada haverá de novo, pelo contrário!"

sábado, 19 de dezembro de 2009

Hoje ninguém intelectualmente responsável põe em dúvida que Jesus existiu



A subversão da religião


No meio da vertigem das compras e das prendas, do consumismo, não sei quantas pessoas se lembrarão ainda de que a festa do Natal está referida ao nascimento de Jesus Cristo. Seja-se cristão ou não, crente ou ateu, impõe-se reconhecer que se trata de uma figura determinante da História. Sem ele, a nossa autocompreensão não seria a mesma.

Nos últimos tempos, a atenção voltou--se para o que não é de modo nenhum central, quando se pensa no que ele é e no seu significado: como e quando nasceu, se a mãe era virgem, se teve irmãos e irmãs... Compreende-se a curiosidade das pessoas, mas estas perguntas não vão ao essencial.
Hoje sabemos que Jesus nasceu alguns anos antes da era cristã (entre 6 e 4) - o erro deveu-se a Dionísio o Pequeno, quando no século VI calculou a data do seu nascimento. Provavelmente nasceu em Nazaré da Galileia, onde se criou. Os relatos dos Evangelhos referentes ao nascimento e à infância servem-se de linguagem simbólica para significar o que mais interessa. Assim, a data de 25 de Dezembro foi adoptada mais tarde pelos cristãos de Roma, para significar que ele é o Sol verdadeiro que a todos ilumina. A presença dos pastores e dos magos anuncia o núcleo da sua mensagem: que Deus se interessa em primeiro lugar pelos mais pobres e que não exclui ninguém.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Contra as previsões, os suíços aprovaram a proibição de construir mais minaretes nas mesquitas


Minaretes


De todos os lados - mundo islâmico, ONU, União Europeia, Governo helvético, líderes das comunidades religiosas: judeus, protestantes, católicos - choveram críticas, pois está em causa o direito fundamental à liberdade religiosa. O Vaticano, através do arcebispo Antonio Maria Sveglio, presidente do Conselho Pontifício para as Migrações, condenou: "Não vejo como se pode travar a liberdade religiosa de uma minoria ou impedir um grupo de pessoas de ter a sua igreja"; e, referindo-se indirectamente às perseguições e limitações da liberdade dos cristãos nalguns países islâmicos, acrescentou: "Há um sentimento de aversão e medo, mas um cristão deve saber ultrapassar isso, mesmo se não tem reciprocidade." O secretário da Conferência Episcopal Suíça declarou que o resultado é "um duro golpe contra a liberdade religiosa e a integração". Na mesma linha se pronunciou a Federação das Igrejas Protestantes da Suíça: trata-se de "um atentado às liberdades fundamentais", que só pode causar novas tensões sociais.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Deus faz o mundo fazer-se e fazer o ser humano


Teilhard de Chardin

O Homem na evolução

A tese da evolução não colide de modo nenhum com a fé. Desde que não vão além dos seus limites e se coloquem na respectiva perspectiva de leitura da realidade, ciência e religião dialogarão com proveito mútuo. Foi assim que o famoso jesuíta Teilhard de Chardin, paleontólogo de renome, pôde, apesar da incompreensão da Igreja oficial da altura, reler a sua fé cristã no quadro da evolução. E também Darwin não viu incompatibilidade entre a criação e a evolução. Termina assim A origem das espécies: "O resultado directo desta guerra da natureza que se traduz pela fome e pela morte é, pois, o facto mais admirável que podemos conceber, a saber, a produção dos animais superiores. Não há uma verdadeira grandeza neste modo de encarar a vida com os seus poderes diversos atribuída originariamente pelo Criador a um pequeno número de formas ou mesmo a uma só? Ora, uma quantidade infinita de belas e admiráveis formas, saídas de um começo tão simples, não cessou de se desenvolver e desenvolve-se ainda." E, em A origem do homem, reconhece que este, a partir de um certo grau de desenvolvimento, foi dotado da "nobre fé na existência de um Deus omnipotente", de um "Criador e Governador do Universo", cuja realidade foi "afirmada por algumas das mais altas inteligências que alguma vez existiram".


Há uma pergunta que o ser humano inevitavelmente põe e a que a ciência não pode responder, pois tem a ver com o fundamento e o sentido último da realidade: porque há algo e não nada? E, para ela, em última análise, só há duas respostas em alternativa.

1. Esse fundamento é a própria natureza na sua força criadora de seres que podem ter ideias de todas as coisas, inclusive da natureza, como escreve o filósofo M. Conche: não a "natureza oposta ao espírito ou à história ou à cultura, mas a natureza omni-englobante, a physis grega, que inclui o Homem nela. Essa é a Causa dos seres pensantes no seu efeito". Nesta linha, Edgar Morin, depois de reconhecer o nosso "duplo estatuto" - transportamos em nós a vida, a sua história e as suas tragédias, mas, por outro lado, desenvolvemos a originalidade da cultura, da linguagem e do pensamento que nos tornam estrangeiros, de tal modo que somos filhos e órfãos da natureza -, apresenta a metáfora do matemático Spencer Brown: para conhecer-se, o universo deveria estabelecer uma distância; portanto, "faria sair de si um braço no termo do qual instalaria conhecimento, consciência. Quando este braço o olhasse, o universo teria ganho e perdido. Porque este braço se tornou demasiado estranho para ser o universo tendo consciência de si mesmo". Somos ao mesmo tempo inseparáveis e separados do universo.

2. Sem colidir com a natureza em processo nem com a evolução, o crente religioso afirma Deus transcendente, pessoal e criador, como fundamento último da realidade, que é contingente. É evidente que o cientista, com o seu método científico, não o encontra, pois Deus, no mundo, é transcendente ao mundo e a criação não é o primeiro elo da cadeia da evolução, mas o nome desta em perspectiva metafísico-religiosa.

Qual é então o lugar do acaso e da necessidade? No quadro de leis totalmente rígidas, só poderíamos contar com a repetição, sem novidade; se houvesse só acaso, reinaria o caos, nenhuma forma ou organização poderia perdurar para atingir identidade e o universo não seria susceptível de indagação racional. Da interacção de ambos - lei e acaso - surge a possibilidade da emergência de modos novos de existência. Para os crentes, no jogo do acaso realizam-se potencialidades inscritas na criação pelo desígnio divino. Assim, se, como escreveu o bioquímico e teólogo A. Peacocke, da Universidade de Oxford, "Deus é o fundamento e a fonte última tanto da lei (necessidade) como do acaso", não é necessária uma intervenção especial divina para o aparecimento do Homem: Deus faz o mundo fazer-se e fazer o ser humano.

Anselmo Borges
 
In DN

sábado, 28 de novembro de 2009

"Só faltava esta: descender de macacos! Se for verdade, rezemos para que ninguém saiba"


Darwin

Darwin e a religião


Ainda no contexto da dupla celebração neste ano de 2009 - 200 anos do nascimento de Charles Darwin e 150 anos da publicação de A Origem das Espécies -, fica mais uma reflexão sobre o tema em epígrafe.

Aquela história repetida - o bispo de Oxford, S. Wilberforce, perante enorme assistência a uma conferência, perguntou a Thomas Huxley, defensor de Darwin, se descendia do macaco pelo lado do avô ou pelo lado da avó; face à resposta, desconfortável para o bispo, uma senhora desmaiou e a mulher do bispo terá murmurado: "Só faltava esta: descender de macacos! Se for verdade, rezemos para que ninguém saiba" - não será completamente verdadeira, mas revela bem o abalo e a perplexidade causados pela tomada de consciência de que descendemos por evolução de outros animais.

Concretamente quanto à religião, é significativo que a obra de Darwin não tenha figurado no Índex (lista dos livros proibidos aos católicos). Por outro lado, Darwin foi sepultado com pompa na Abadia de Westminster, a alguns passos do túmulo de outro gigante da ciência, Newton.

Em 1996, o Papa João Paulo II declarou, perante a Academia Pontifícia das Ciências, que "a teoria da evolução é mais do que uma hipótese". E, para marcar os 150 anos de A Origem das Espécies, realizou- -se recentemente na Universidade Gregoriana de Roma um Congresso sobre "Evolução biológica, factos e teorias", patrocinado pelo Conselho Pontifício para a Cultura. Os organizadores fizeram questão de excluir os partidários do "criacionismo" e mesmo do "desígnio inteligente".

Há evolucionistas materialistas, ateus, mas também os há crentes. As relações só azedam, quando, de um lado e do outro, se ergue o fundamentalismo: cientista ou religioso. Ora, contra esse duplo fundamentalismo, é preciso saber que Deus não é objecto de ciência: cientificamente, não se demonstra nem que há Deus nem que Deus não existe. Deus é objecto de fé e há razões para acreditar como há razões para não acreditar.

Assim, é tão ridículo invocar o livro do Génesis, com o seu mito da criação, lido literalmente, para negar a evolução, como invocar a ciência para provar que não há Deus. O Génesis é um livro religioso e não científico e a ciência nega-se a si mesma, quando pretende pronunciar-se sobre questões da esfera metafísica e religiosa.

A evolução e a fé não são incompatíveis. A ciência responde ao "como" e não ao "porquê" da realidade. Porque há algo e não nada? Qual o sentido último da realidade? A própria afirmação do acaso cego confronta-se com o que se pode chamar o seu paradoxo: como é que por puro acaso surge um ser - o Homem - cuja questão fundamental é a do sentido.

Aliás, há o famoso "princípio antrópico", que não demonstra Deus, mas que dá que pensar. O físico R. Dicke apresentou-o, em 1961, na sua forma "fraca": "Uma vez que há nele observadores, o universo deve possuir propriedades que permitam a existência desses observadores". Depois, Brandon Carter apresentou-o na sua forma "forte": "O universo deve ser constituído de tal modo nas suas leis e na sua organização que não deixa de um dia produzir um observador". Mesmo se é menos justificável nesta forma "forte", há sempre esta pergunta: porque é que o mundo é como é, de tal modo que aparecemos nele, perguntando por ele e pelo seu sentido? De facto, a mínima variação nas suas condições iniciais faria com que não estivéssemos cá a colocar todas estas questões.

O próprio Darwin viveu a questão religiosa em perplexidade. Na sua Autobiografia, escreve que é extremamente difícil, ou melhor, impossível "conceber este imenso e maravilhoso universo, incluindo o homem, como sendo o resultado do acaso cego ou da necessidade. Quando começo a reflectir assim, sinto-me obrigado a recorrer a uma Causa Inicial que possua uma mente inteligente, até certo ponto análoga à mente do homem; e mereço ser chamado Teísta". Mas, depois, "surge a dúvida" e confessa: "Não posso pretender lançar qualquer luz sobre problemas tão abstrusos. O mistério do início de todas as coisas é insolúvel para nós; e por mim contento-me em permanecer Agnóstico."

sábado, 21 de novembro de 2009

A sobrevivência da civilização



O Pensador

"A sobrevivência da nossa herança religiosa
é condição para a sobrevivência da civilização"


«A razão disso está em que os desejos do Homem não têm limites: "Podem crescer incessantemente, numa espiral sem fim de avidez." Mas, uma vez que o nosso planeta é limitado, somos forçados a limitar os nossos desejos. Ora, sem uma consciência dos limites, que "só pode provir da história e da religião", toda a tentativa de limitá-los "terminará numa terrível frustração e agressividade", possivelmente em grande escala. "Todas as tradições religiosas nos ensinaram ao longo de séculos a não nos vincularmos a uma só dimensão: a acumulação de riqueza e ocuparmo-nos exclusivamente com a nossa vida material presente." Assim, "a sobrevivência da nossa herança religiosa é condição para a sobrevivência da civilização".

A mais perigosa ilusão da nossa civilização consiste em o Homem pretender libertar-se totalmente da tradição e de todo o sentido preexistente, para abrir a perspectiva de uma autocriação divina. Esta "confiança utópica" e esta "quimera moderna" de inventar-se a si mesmo numa perfeição ilimitada "poderiam ser o mais impressionante instrumento do suicídio criado pela cultura humana". É que, "quando a cultura perde o sentido do sagrado, perde todo o sentido".»

Anselmo Borges

Leia todo o texto no DN

sábado, 14 de novembro de 2009

Mãe de todas as ciências, a filosofia não é uma ciência no sentido estrito...


O Dia da Filosofia

No próximo dia 19, celebra-se o Dia Internacional da Filosofia. Para chamar a atenção para a sua importância fundamental.

Mas, afinal, o que é e para que serve a filosofia? D. Huisman e A. Vergez, numa bela introdução à sua temática, escrevem, não sem razão, que há duas palavras que fazem do Hamlet "a peça filosófica por excelência". Primeiro, há o famoso solilóquio: "To be or not to be: that is the question" - ser ou não ser: eis a questão -, e, depois, quando Polónio pergunta a Hamlet o que lê, este responde: "Words... words... words" - palavras... palavras... palavras... Alguns pensarão que a filosofia não passa de um jogo de palavras. O que é facto é que a filosofia tem como questão essencial o ser: "Porque há algo e não nada?"
Mãe de todas as ciências, a filosofia não é uma ciência no sentido estrito, como hoje a entendemos. Daí que nenhum dos sistemas filosóficos obtenha consenso universal. Assim, quem não toma atenção, ao olhar para a história da filosofia, pode ter a sensação de um montão de ruínas. Mas o filósofo é isso mesmo: filósofo. Não é sábio, mas amante da sabedoria. K. Jaspers acentuou: a filosofia "trai- -se a si mesma quando degenera em dogmatismo, num saber fixado numa fórmula, definitivo, completo. Fazer filosofia é estar a caminho; as perguntas em filosofia são mais essenciais do que as respostas e cada resposta converte-se numa nova pergunta".

Anselmo Borges

Ler todo o texto aqui


sábado, 7 de novembro de 2009

A questão da homossexualidade...



Homossexualidade e casamento


As religiões, concretamente as monoteístas, condena(ra)m, nos seus textos, por vezes sob ameaça de morte, a homossexualidade.
Assim, lê-se no Levítico: "Se um homem coabitar sexualmente com um varão, cometeram ambos um acto abominável; serão os dois punidos com a morte".
Mas, segundo M. Darnault, em Le monde des religions, o texto que está na base da homofobia cristã é o relato bíblico de Sodoma e Gomorra. Dois homens, enviados de Deus, chegaram a Sodoma e Lot acolheu-os pela noite, mas a população encolerizou-se: "Ainda se não tinham deitado, quando os homens da cidade rodearam a casa e chamaram Lot: 'Onde estão os homens que entraram na tua casa esta noite? Trá-los para fora, a fim de os conhecermos." Avançaram para arrombar a porta, mas os dois homens feriram-nos de cegueira, mandaram Lot fugir com a família e "o Senhor fez cair sobre Sodoma e Gomorra uma chuva de enxofre e de fogo", que tudo destruiu. Aquele "a fim de os conhecermos" é um eufemismo para relações homossexuais e de Sodoma proveio sodomia.
É também sobre esta narrativa do "povo de Lot" que se apoia o Alcorão para reprovar esta "acção infame" e "torpe". A suna prescreve a pena de morte, a maior parte das vezes por lapidação.
O fundamento da estigmatização teológica e canónica da homossexualidade, apoiada por especialistas da teologia moral, como São Tomás de Aquino, encontra-se no desenvolvimento do tema da depravação de práticas consideradas "contra a natureza", como já São Paulo tinha escrito na Carta aos Romanos: "Foi por isso que Deus os entregou a paixões degradantes. Assim as suas mulheres trocaram as relações naturais por outras que são contra a natureza. E o mesmo acontece com os homens: deixando as relações naturais com a mulher, inflamaram-se em desejos de uns pelos outros".
O Catecismo da Igreja Católica diz: "Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves, a Tradição sempre declarou que 'os actos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados'. São contrários à lei natural, fecham o acto sexual ao dom da vida, não procedem duma verdadeira complementaridade afectiva sexual, não podem, em caso algum, receber aprovação. Um número não desprezível de homens e mulheres apresenta tendências homossexuais profundas. Eles não escolhem a sua condição de homossexuais; essa condição constitui, para a maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta".
Parece seguir-se o princípio da condenação do acto, não das pessoas. Também o Dalai Lama, em 2001, declarou que "a homossexualidade faz parte do que chamamos 'uma má conduta sexual'", rectificando depois: "Só o respeito e a atenção ao outro deveriam governar a relação do casal, hetero ou homossexual". Na Igreja anglicana, há debates acesos por causa da ordenação de bispos gays e bênçãos de casais homossexuais.
Entretanto, em 1993, a OMS retirou a homossexualidade da sua lista de doenças mentais.
Recentemente, houve um apelo lançado por 66 países para a despenalização universal da homossexualidade a que se associou o Vaticano. Ainda bem. E não deve haver lugar para discriminação. Julgo também que não há razões para negar a comunhão a quem tem essa orientação.
O Estado deveria encontrar uma forma de união com consequências jurídicas semelhantes às dos casados. Mas, como já aqui escrevi, a questão reside em saber se há-de chamar-se-lhe casamento. O problema é mais do que religioso e as palavras não são indiferentes, pois não pode dar-se o mesmo nome ao que é diferente. Como disse o filósofo ateu Bertrand Russell, "o casamento é algo mais sério do que o prazer de duas pessoas na companhia uma da outra: é uma instituição que, através do facto de dela provirem filhos, forma parte da textura íntima da sociedade, e tem uma importância que se estende muito para além dos sentimentos pessoais do marido e da mulher". Assim, o que a sociedade tem de resolver é se considera o casamento essa instituição ou uma mera contratualização de afectos.

Anselmo Borges

sábado, 31 de outubro de 2009

Deus não é "objecto" de ciência, mas uma esperança...



SERIA INJUSTO NÃO HAVER DEUS


As nossas sociedades científico-técnicas, comandadas pe-la razão instrumental, pelo progresso, o êxito e o consumo, hedonistas, nas quais a fé se obnubilou, são as primeiras da História a fazer da morte tabu. Este tabu, acompanhado da perda da fé no Além e da eternidade, é essencial para o entendimento do que se passa. Porque já não há eternidade, o tempo não faz texto, ficando reduzido a instantes que se devoram. Como pode então ainda haver valores e futuro num tempo que se dissolve na voragem de instantes?

De qualquer modo, estas nossas sociedades permitem a visita dos mortos dois dias por ano: 1 e 2 de Novembro. Os cemitérios enchem-se e, de forma mais ou menos explícita e funda, num silêncio ao mesmo tempo vazio e opaco, plúmbeo, há o confronto com a ultimidade, aí onde verdadeiramente se é Homem. Afinal, qual é o sentido da existência e de tudo? O que vale verdadeiramente? M. Heidegger chamou a atenção para isso: a diferença entre a existência autêntica e a existência inautêntica dá-se nesse confronto. Se tudo decorre na banalidade rasante e na gritaria oca, a explicação está aqui: no último tabu.

Para onde vão os mortos? Para o Silêncio. O mistério da morte é esse: dizemos que partiram, mas o que abala é não deixarem endereço. Na morte, a evidência é o cadáver. Mas quem se contenta com o cadáver? Por isso, a morte é o impensável que obriga a pensar e, enquanto formos mortais, havemos de perguntar por Deus.

Deus não é "objecto" de ciência, mas uma esperança, sobretudo quando se pensa nas vítimas inocentes. Como escreveu o agnóstico M. Horkheimer, um dos fundadores da Escola Crítica de Frankfurt, "se tivesse de descrever a razão por que Kant se manteve na fé em Deus, não saberia encontrar melhor referência do que aquele passo de Victor Hugo: uma anciã caminha pela rua. Ela cuidou dos filhos e colheu ingratidão; trabalhou e vive na miséria; amou e vive na solidão. E no entanto está longe de qualquer ódio e rancor, e ajuda onde pode... Alguém vê-a caminhar e diz: Ça doit avoir un lendemain!... Porque não foram capazes de pensar que a injustiça que atravessa a História seja definitiva, Voltaire e Kant postularam Deus - não para eles mesmos".

A curto, a médio, a longo prazo, todos foram estando mortos. A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos, todos irão estando mortos, e lá, no final, só há uma alternativa.

Claude Lévi-Strauss conclui assim o seu L'homme nu: "Ao homem incumbe viver e lutar, pensar e crer, sobretudo conservar a coragem, sem que nunca o abandone a certeza adversa de que outrora não estava presente e que não estará sempre presente sobre a Terra e que, com o seu desaparecimento inelutável da superfície de um planeta também ele votado à morte, os seus trabalhos, os seus sofrimentos, as suas alegrias, as suas esperanças e as suas obras se tornarão como se não tivessem existido, não havendo já nenhuma consciência para preservar ao menos a lembrança desses movimentos efémeros, excepto, através de alguns traços rapidamente apagados de um mundo de rosto impassível, a constatação anulada de que existiram, isto é, nada".

A Bíblia, no último livro, Apocalipse, conclui assim: "Vi então um novo céu e uma nova terra. E vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém. E ouvi uma voz potente que vinha do trono: 'Esta é a morada de Deus entre os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo e o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as primeiras coisas passaram.'"

No meio da perplexidade, fico com Kant: "A balança do entendimento não é completamente imparcial, e um braço da mesma com o dístico 'esperança do futuro' tem uma vantagem mecânica, que faz com que mesmo razões leves, que caem no seu respectivo prato, levantem o outro braço, que contém especulações em si de maior peso. Esta é a única incorrecção que eu não posso eliminar e que eu na realidade não quero abandonar."


sábado, 17 de outubro de 2009

Pecado original e política


Mistério de uma liberdade
humana ferida

Já várias vezes tentei aqui explicar que o chamado pecado original tal como habitualmente é interpretado - um pecado de Adão e Eva, de origem sexual e transmitido sexualmente - foi sobretudo obra de Santo Agostinho e não tem raiz bíblica.

Mas há uma verdade no pecado original: quer referir-se ao mistério de uma liberdade humana ferida. Porque é que a vontade não é sempre boa? Há um lado obscuro da liberdade. Somos seres morais, mas não fazemos sempre o bem, de tal modo que R. Niebuhr afirmou que o pecado original é a única doutrina cristã empiricamente verificável. E o filósofo agnóstico M. Horkheimer também disse que era um dogma que ele aceitava.

Três impulsos fundamentais movem o ser humano: o prazer, o ter e o poder. Provavelmente, o mais forte e abrangente é o do poder, de tal modo que Adler poderá ter mais razão do que Freud. No limite, o homem sonha com a omnipotência, porque ela o libertaria da morte, e aí está a razão por que o poder é a tentação maior. Como escreveu E. Canetti, "Dos esforços de uns tantos para afastar de si a morte surgiu a monstruosa estrutura do poder. Para que um só indivíduo continuasse a viver, exigiu-se uma infinidade de mortes. A confusão que surgiu disso chama-se História".

Nunca estaremos suficientemente gratos aos gregos pela invenção da democracia, segundo a qual todos os cidadãos têm direitos políticos iguais. Ninguém está acima da lei, que deve ser obedecida por todos. Que mandem todos não é natural. Natural é que mandem os mais fortes, os mais espertos, os mais ricos, os que estudaram mais, os astutos, os santos. Como escreveu Fernando Savater, "que o poder seja coisa de todos, que todos intervenham, falem, votem, elejam, decidam, tenham ocasião de equivocar-se, procurem enganar ou permitam que os enganem, protestem... isso não é coisa natural, mas um invento artificial, uma aposta desconcertante contra a natureza e os deuses. É uma obra de arte. Os gregos foram grandes artistas: a democracia foi a obra-prima da sua arte, a mais arriscada e inverosímil, a mais discutida".

A política é actividade nobre e são de saudar sempre aqueles que generosamente se entregam à causa pública. Mas há a advertência de Churchill: "A democracia é a pior forma de governo, exceptuando todas as outras." Também para avisar que não é perfeita e que tem defeitos. A ameaça maior é o poder e o seu exercício.

Afinal, o que fará correr tanto tantos políticos? Lá andam eles e elas a palmilhar o país de cima abaixo, de lés a lés. Dormirão bem e o suficiente? Têm de ouvir o que ninguém gosta. Beijam quem lhes não agrada, enrugadas e mal cheirosas. Apertam mãos sujas. Nas famosas arruadas - que palavra que tão mal soa! -, esbanjam sorrisos, têm de sorrir, sorrir sempre, mesmo sem vontade. Têm de fazer promessas que sabem não poder cumprir. Em vez de esclarecerem os cidadãos, tentam tantas vezes enfeitiçá-los com discursos de sofistas. Claro que a política também é jogo, mas há tanta intriga e inveja e cilada que o espectáculo é, por vezes, pícaro e deplorável...

O poder traz prestígio, mesmo que suposto. E benesses de todo o género. E sedução e luxos e exposição e fama. E precedências e continências nas paradas e guardas de honra. E dinheiro e convívio com os grandes deste mundo. E a ilusão de que se deixa uma marca na História. E a imposição da própria vontade. E a aparência da imortalidade pelos feitos. O poder - quem o repetiu foi um político nosso, famoso - é o maior afrodisíaco.

Não é sempre assim, mas o perigo espreita. O risco é servir-se em vez de servir. Ou servir alguns apenas e não o bem comum. Corromper e deixar-se corromper. Não respeitar a separação de poderes e, concretamente, a independência do poder judicial. E que acontecerá quando o poder, mesmo conquistado legitimamente, se exerce sem competência intelectual, moral e técnica?

A tentação é tamanha que mesmo na Igreja se esqueceu a revolução única do cristianismo: Deus não se revelou como omnipotência abstracta, mas força infinita do amor criador. E Cristo disse: "Não vim para ser servido, mas para servir."

Anselmo Borges

In DN



sábado, 10 de outubro de 2009

Neurociências e liberdade




Com a biotecnolgia o novo continente científico é o cérebro, e a pergunta é se, com os avanços neste domínio, o enigma do homem será finalmente superado ou se, pelo contrário, ele permanecerá. Grandes debates se travam entre as neurociências e a filosofia, precisamente por causa de temas candentes e incendiários, como a subjectividade, a autodeterminação, a vontade livre.



Sobre estas questões, o conhecido filósofo e professor da Universidade de Tubinga Manfred Frank acaba de dar uma longa entrevista ao alemão DIE ZEIT. O que aí fica reflecte esse debate.



A questão da subjectividade pertence ao núcleo da reflexão humana. Embora algumas correntes filosóficas falem da sua dissolução, penso que o sujeito é ineliminável. Argumento, mostrando que a condição de possibilidade de objectivar - no caso do homem, de objectivar-se - é o sujeito, de tal modo que, por mais que objective de si mesmo, o homem nunca se objectivará completamente, já que continuará a ser o sujeito que (se) objectiva.



M. Frank também afirma que nunca será possível reduzir a consciência e o espírito a processos neuronais, e isso "por razões de princípio". Há uma questão de princípio: como explicam as neurociências a passagem de processos físicos inconscientes a processos mentais conscientes? "Não é possível substituir o saber sobre nós mesmos por um saber objectivo sobre o mundo." A subjectividade cai fora do mundo, não pertence ao mundo dos objectos.



O "eu" do autoconhecimento não é redutível àquilo a que nos referimos com nomes ou caracterizações. "A autoconsciência é um conhecimento único, reflexivo, no qual uma pessoa se refere conscientemente a si mesma, mas a si mesma em posição objectiva. Como poderia ela, porém, captar este eu-objecto como ela mesma enquanto sujeito, se, antes desta apresentação objectiva, não tivesse tido uma consciência inobjectiva de si?" Esta consciência inobjectiva quer dizer vivida, pré-reflexiva.



Permanece uma questão: "Quando identifico espírito com matéria, não identifico matéria com matéria." Trata-se como que dos dois lados de uma moeda, mas as condições de verdade do neuronal não se identificam com as do espírito: as primeiras encontram-se num tratado de fisiologia enquanto as dos estados mentais são verificadas introspectivamente, como viu Descartes. Isso é experienciado também ao nível do vocabulário, que é diferente para descrever o psíquico e o estado físico correspondente: não teria sentido exprimir a inclinação amorosa por alguém, descrevendo os processos electromagnéticos no cérebro.



A tese de neurocientistas que afirmam não haver, por detrás do alegado livre arbítrio, senão processos neuronais, que determinam a vontade, contradiz não só a compreensão jurídica de responsabilidade mas também a nossa própria autocompreensão: queremos ser autores racionais de mudanças no mundo - tentamos "tomar decisões racionais".



Para lá dos sistemas jurídico-penais, que pressupõem a liberdade, um exemplo. Suponhamos que alguém tropeça, sem querer, e, ao cair sobre outra pessoa, esta é apanhada por um carro e morre. Distinguimos muito bem esta situação daquela em que alguém empurra intencionalmente outra pessoa. E há esta virtude admirável: resistir moralmente à maioria. Os opositores ao Terceiro Reich "merecem o nosso sumo respeito", precisamente porque foram poucos e capazes de enfrentar a morte. Aí, "os neurocientistas têm muito para justificar no sentido de dar conta do correcto normativamente dessas decisões a partir de processos neuronais".


Tudo o que é essencial, quando pensamos na humanidade, "vinculamo-lo ao pensamento da subjectividade e não à nossa representação do cérebro. São sempre pessoas, sujeitos, que consideramos como criadores de literatura, cultura ou religião". Afinal, "temos cérebros e somos eus". Daí poder formular-se o imperativo categórico de Kant nestes termos: "Nunca trates os seres humanos como coisas, mas sempre como sujeitos e pessoas." Se o mundo consistisse só em objectos, não haveria ninguém a quem dirigir o preceito: "Porta-te decentemente com os outros sujeitos."



sábado, 3 de outubro de 2009

OS CRISTÃOS E A CRISE


Consumo irracional


Impõe-se construir uma nova ordem social


Frente a este título, temos, logo à partida, de reconhecer que é nos países de maioria cristã que estão os responsáveis maiores pela crise. Não foi no hemisfério Norte que começou? Por outro lado, é na Europa que se encontra hoje o melhor nível de vida da história, e o modelo social europeu é invejado. Mas há uma pergunta, aparentemente cínica, para a qual não é fácil encontrar resposta definitiva: somos ricos à custa do Terceiro Mundo? Eles são pobres porque nós somos ricos?

Depois, é preciso perceber que há, nesta questão, níveis ou esferas a distinguir, como escrevi aqui, no artigo "O capitalismo é moral?". À economia não se pede que seja moral, mas eficiente. Por isso, não há uma moral da economia ou da empresa, mas deve haver moral na economia e na empresa.

No Evangelho segundo São Mateus, há um texto terrível - o da parábola dos talentos. Um servo recebeu cinco e conseguiu outros cinco; outro, dois e ganhou outros dois; o terceiro recebeu um só talento e, com medo, guardou-o, para poder entregá-lo ao senhor, quando voltasse. Resposta do senhor: "Devias ter levado o meu dinheiro aos banqueiros e tê-lo-ia levantado com juros. Tirai-lhe o talento e dai-o ao que tem dez. Porque ao que tem será dado e terá em abundância; mas ao que não tem até o que tem lhe será tirado" O dito "ao que tem mais será dado e ao que não tem até o que tem lhe será tirado" ficou conhecido na sociologia como "o efeito de Mateus".

É certo que a parábola deve ser lida à luz do texto seguinte, referente ao Juízo Final, portanto, à verdade última da História: "Vinde, benditos de meu Pai, porque me destes de comer, de beber, de vestir..." O critério de salvação é a bondade e o bem-fazer aos preferidos de Deus, os pobres. Mas isso não nega a necessidade de eficiência da economia.

Onde está então um sistema novo a unir liberdade e justiça, política e moral, amor e eficiência? De qualquer modo, há uma nova tomada de consciência, sintetizada nesta afirmação contundente de um especialista em economia, Jacques Attali: hoje, "coabitam duas tendências: a selvajaria absoluta, que vai fazer com que tudo expluda, se não se agir rapidamente; e a tomada de consciência do interesse de um Estado de direito global, que tudo pode salvar".

No contexto da crise, realizou-se de 3 a 6 de Setembro, em Madrid, com 700 participantes, o XXIX Congresso de Teologia sobre o tema "O cristianismo perante a crise". Ficam aí algumas conclusões.

A crise de 2008 e 2009 é "uma prova de fogo não só para os dirigentes mundiais, mas também para a consciência de muitos cristãos, ao questionar o seu nível de solidariedade comprometida".

Trata-se de "uma realidade de injustiça económica que exclui os mais necessitados e vulneráveis da sociedade", tornando-se patente a fragilidade de uma sociedade que substituiu os valores cristãos pelo "enriquecimento fácil e a ostentação sem limites". Assim, quando "não só a economia e a política, mas também a fé e a ética estão em crise, é hora de solidarizar-se com os grupos mais frágeis da humanidade e recuperar alguns valores cristãos, como a opção preferencial pelos pobres".

"Embora consideremos que o responsável pela crise é o sistema capitalista, que permite que alguns enriqueçam à custa do empobrecimento das maiorias populares, denunciamos a apatia e a falta de compromisso social das confissões religiosas, que se preocupam mais com questões de poder e com continuar a defender situações de privilégio no campo económico e social do que em denunciar as injustiças de um sistema que atenaza os sectores mais necessitados."

Impõe-se construir "uma nova ordem mundial - política, económica, jurídica - alternativa ao neoliberalismo, baseada na cooperação, na solidariedade e capaz de levar a cabo controles efectivos do actual sistema financeiro".

No plano pessoal, "como cidadãos e crentes", temos de assumir compromissos concretos, "renunciando ao consumo irracional e insolidário, vivendo com austeridade, solidarizando-nos de modo efectivo com as vítimas da crise".


Anselmo Borges

In DN

sábado, 29 de agosto de 2009

A tentação do cristianismo

Na França, talvez o país europeu mais laico, não há receio de debater, ao mais alto nível e publicamente, com a participação de alguns dos filósofos hoje mais influentes, a questão da religião e, concretamente, do cristianismo. Assim, realizou-se na Sorbonne, em 2008, um debate sobre o tema em epígrafe, de que resultou um livro, acabado de editar, com o mesmo título: La tentation du christianisme. É que - lê-se na introdução - não se pode esquecer que "a religião foi durante muito tempo a nossa cultura e continua a sê-lo, mesmo sem darmos por isso. Sem uma reapropriação lúcida e esclarecida dessa herança, é grande o risco de ver ressurgir os demónios do passado": os fundamentalismos e "um materialismo hiperbólico". A filosofia leva consigo três perguntas fundamentais, como disse Kant: Que posso saber?, que devo fazer?, que me é permitido esperar? No fundo, o que as atravessa é a questão do Homem e do sentido da existência. Há uma teoria, que responde à pergunta pela realidade global enquanto lugar onde se joga a existência humana. Há uma ética, que pergunta pelas regras do jogo. A terceira pergunta tem a ver com a finalidade do jogo e a salvação: o quê ou quem nos salva da finitude e do temor da morte? Segundo Luc Ferry, antigo ministro da Educação da França, para perceber como é que o cristianismo se tornou chave da cultura ocidental, não há como compará-lo com a filosofia grega e, nomeadamente, o estoicismo, no quadro das três interrogações apontadas. De facto, o cristianismo operou uma revolução nos três aspectos: teórico, ético e soteriológico. Em primeiro lugar, uma revolução no plano da teoria. Na perspectiva grega, o cosmos é theion, isto é, divino, e também Lógos, "lógico", racional, derivando daí a ética: o bem, para os estóicos, era a justeza, isto é, estar ajustado à ordem do cosmos. Na perspectiva cristã, o Lógos divino encarna numa figura humana, Jesus, como diz o Evangelho segundo São João: "No princípio era o Lógos, o Lógos era Deus e o Lógos fez-se carne (Homem)". Deparamo-nos então com uma dupla revolução, ontológica e epistemológica: "O ser supremo, o divino, deixa de ser uma estrutura anónima e cega para tornar-se uma pessoa; o modo de apreensão ou de conhecimento do divino já não é essencialmente a razão, mas a fé." É fundamentalmente com a fé-confiança que se vai ao encontro das pessoas. Daqui, deriva uma revolução ética. A cosmologia grega implicava um mundo hierarquizado e aristocrático, confundindo-se a dignidade moral com os talentos naturais. O cristianismo apresenta o escândalo de um Deus encarnado numa figura humana frágil e, agora, o valor moral já não provém dos dons naturais, mas da liberdade: pense-se na famosa parábola dos talentos - afinal, o decisivo não são os talentos recebidos, mas o que deles se faz. Assim, a infinita dignidade da pessoa humana e a igualdade radical de todos vieram ao mundo pelo cristianismo e "todas as morais democráticas, sem excepção, são directamente suas herdeiras". Finalmente, uma revolução soteriológica. Se o divino já se não confunde com a estrutura cega e anónima do mundo, mas encarnou, identificando-se com uma pessoa concreta, a salvação muda de sentido, tornando-se uma promessa e um compromisso de Cristo, de uma pessoa com outras pessoas, portanto, "um assunto de intersubjectividade, não de mundanidade". Deus em Cristo "ocupa-se de cada um em pessoa e pessoalmente" e dá-lhe a vida eterna, na ressurreição: "Poder reviver e reencontrar depois da morte os que amamos - vamos reencontrar a pessoa amada com o rosto do amor. A promessa é, evidentemente, grandiosa. É aqui que se encontra o coração do coração da tentação cristã, da sedução que o cristianismo exercerá sobre os homens." Luc Ferrry não crê, porque "é demasiado belo para ser verdade". Outros, porém, acreditaram e acreditam, precisamente porque o cristianismo mostra a sua verdade na sua correspondência com o dinamismo mais fundo do ser humano. Cabe a cada um decidir. Anselmo Borges

sábado, 22 de agosto de 2009

Gripe A e teologia

Médicas e médicos amigos que muito considero e prezo pediram-me que escrevesse um artigo sobre a gripe A e a comunhão na Missa. Seria um contributo para a saúde pública. É o que vou tentar, consciente de que se trata, paradoxalmente, de um tema melindroso para alguns, dado o facto de os católicos ao longo de tanto tempo terem sido educados no quadro do preceito eclesiástico estrito de comungarem na boca. Uma prova do melindre está em que, apesar de ter tentado delicadamente levar as pessoas a comungar na mão, não tive ainda êxito pleno. Em primeiro lugar e referindo-me ao tema de modo genérico, penso que a questão da gripe A deve ser encarada com responsabilidade, o que significa, em termos simples, sem leviandade, portanto, seguindo as normas da OMS (Organização Mundial da Saúde), mas também sem histerismo. E não me passa pela cabeça que alguém cometa a infâmia de contagiar seja quem for intencionalmente. Espera-se que o Ministério da Saúde continue operante, eficaz e gerindo o problema com dignidade responsável. Será neste quadro da responsabilidade que há-de situar-se uma colaboração sadia dos bispos e do Ministério no referente a grandes ajuntamentos religiosos, como Missas ou peregrinações. É neste âmbito também, embora indo para lá dele, que apelo vivamente à comunhão na mão. De facto, é preciso reconhecer que a comunhão na boca está sujeita a grande perigo de contágio, como qualquer pessoa minimamente atenta pode constatar. Assim, devendo os católicos ser responsáveis e exemplos de responsabilidade, não podem pôr em perigo a saúde dos outros nem a própria. Todos reconhecerão, pois, facilmente que é um dever moral todos comungarem na mão e não na boca. Aliás, não faltará - e bem - quem associe, no caso, ética e estética: quem duvida que é mais estético receber a hóstia na mão aberta do que na língua estendida? Mas, aqui, surgem debates aparentemente teológicos. Por exemplo: que comungar na boca é sinal de respeito pela presença de Cristo na hóstia consagrada. Mas eu pergunto: será porventura a língua mais digna do que as mãos? As pessoas pecam com as mãos: desvio dos bens alheios, assinaturas falsas ou indevidas, tráfico de drogas, armas assassinas, toques de traição... E com a língua não pecam? Ai!, as maledicências, as calúnias, os perjúrios, as promessas incumpridas, as palavras de amor-ódio, aquelas palavras que derrotam e matam o outro, contratos imorais e mortais... Afinal, tão digna é a mão como a língua. É com a língua que falamos, e a linguagem duplamente articulada é característica específica humana. Mas foi quando o nosso antepassado se ergueu sobre os dois pés que se libertou a mão e se desenvolveu o cérebro e surgiu o que se chama Homem. Saudamo-nos falando e também apertando-nos as mãos. Depois, vem o que é teologicamente mais significativo. Quem nunca reparou que só damos de comer na boca às crianças e às pessoas impossibilitadas de o fazerem elas próprias? E é um enorme gesto de afecto e ternura. Mas é também um sinal de dependência. Os adultos, em princípio, levam a comida à boca com as suas próprias mãos. Neste sentido, não quereria ir tão longe como aqueles e aquelas que dizem que com a comunhão na boca a Igreja hierárquica acabou por infantilizar os fiéis. Ora, a Igreja deve ser a assembleia dos fiéis a Cristo, daqueles e daquelas que viram e vêem nele o enviado de Deus e o salvador e se entregam por ele confiadamente a Deus como sentido último da sua vida. Todos igualmente responsáveis, embora com ministérios e tarefas diferentes. Não se pode infantilizar os fiéis e a seguir queixar-se pela sua falta de responsabilidade e participação na vida da Igreja e na transformação do mundo, como Cristo quer. Aliás, Cristo, na primeira Eucaristia, na Última Ceia - celebração da Palavra e do Pão -, tomou o pão e partiu-o, dizendo: "Tomai todos e comei, isto é o meu corpo, a minha vida, entregue por vós." E neste sinal os discípulos souberam que Deus é amor. Como ainda hoje, nalgumas casas, o pai ou a mãe partem o pão, distribuindo-o por todos, comendo cada um com a sua própria mão: é a partilha da vida. Anselmo Borges
In DN

sábado, 15 de agosto de 2009

O padre espião

Conheci-o na minha juventude como professor de Teologia Moral. Mas não sabia, como acaba de revelar em entrevista a José Manuel Vidal para o EL Mundo, que trabalhou para os serviços secretos vaticanos e o Mossad, que a CIA quis contratá-lo e que esteve detido pelo KGB. Aos 90 anos e nas vésperas de morrer - tem um cancro terminal -, o Padre redentorista Antonio Hortelano faz, antecipando um livro de memórias, quase pronto, revelações surpreendentes. Embora irritantes para alguns, não faltando mesmo quem o considere um infiltrado e narcisista, valerá a pena uma aproximação de quem se aproxima da morte com imensa dignidade. Acabado de chegar do México, levaram-no ao hospital por causa da gripe A. E o médico: que não tinha a gripe A, mas um cancro do pulmão em fase terminal. Antonio Hortelano: "Vou morrer. Restam-me uns dois meses de vida. Mas não quis químio nem radioterapia. Só cuidados intensivos." Formou parte dos serviços secretos vaticanos. "Com missões especiais e de forma eventual", diz. O cardeal Montini, então secretário de Estado do Vaticano e futuro Papa Paulo VI, encomendou-lhe várias dessas missões. Foi assim que, por exemplo, viajou com passaporte italiano até à Hungria comunista, por causa do cardeal Mindszenty. Cumprida a missão, de regresso a Viena, foi apanhado pelo KGB, interrogado durante horas e acusado de espionagem. Após 48 horas de interrogatório, "mexidos os pauzinhos adequados" - Vaticano e Israel -, soltaram-no, podendo regressar. Confessa que trabalhou mais com o Mossad do que com o Vaticano. Porquê com os judeus? Casa bem o sacerdócio católico com ser espião judeu? "Perfeitamente. Jesus foi judeu de raça e religião. E nunca saiu do judaísmo. Não se pode ser cristão sem ser judeu." Através do Vaticano e do Mossad, tem o privilégio de imensa informação de tipo religioso e político. Até aprendeu as técnicas subversivas. Conhece particularmente os problemas da América Latina e a história da Teologia da Libertação, com a qual aliás tem diferendos. Foi neste contexto que a CIA o pretendeu contratar. "Pensaram que era o candidato ideal para denunciar os teólogos radicais. Mandei a CIA pelo cano de esgoto abaixo, com o que ganhei muitos inimigos." "O Muro de Berlim caiu graças a João Paulo II, aliado com Reagan." Mas censura Wojtyla pela troca de informações diárias com Reagan: "Todas as manhãs, Reagan mandava as suas informações ao Papa e este enviava-lhe a informação mais quente que recebia de todas as nunciaturas." "Foi um grande erro." Pior, porém, foi o escândalo do IOR, o Banco do Vaticano, e ter confiado as finanças da Igreja a monsenhor Marcinkus. "Foi o arcebispo de Baltimore que lho recomendou, mas já nos Estados Unidos Marcinkus estava relacionado com a Máfia. Por isso, quando se deu a queda do Banco Ambrosiano, que deixou um buraco no IOR de mais de mil milhões de dólares, Marcinkus quis tapá- -lo negociando a dívida com a Máfia. No fim, depois de vários mortos, o Vaticano pediu aos religiosos que se encarregassem da dívida. Aceitaram, mas com a condição de ficarem com a gestão das finanças vaticanas. O Papa não quis e então apareceu o Opus Dei, que, através de Rumasa, tapou o buraco de Roma em troca da prelatura pessoal e da canonização do fundador da Obra." A Igreja enquanto instituição "precisa de mudanças estruturais, mas sem dinamitá-la". Ousa escrever uma "última carta ao Papa", na qual propõe "com humildade" algumas medidas. Que a Igreja seja "mais equilibrada e mais feminina". Com padres casados e mulheres ordenadas. Com bispos eleitos por 9 anos e a supressão do colégio cardinalício, já que o Papa seria eleito por "uma representação de todo o Povo de Deus". Não tem medo de morrer? "Nenhum. Tenho fé e acredito no Além." Sente-se orgulhoso por ter trabalhado pelos outros, não esquecendo que também foi "egoísta e muito teimoso". Mas Deus conta com isso. "Em breve chegarei à sua presença e dir-lhe-ei: 'Aqui está o Antonio'." E o epitáfio? A frase do filósofo Zubiri: "Penso, logo existo e existo, não entregue ao nada, mas a Deus." Anselmo Borges
In DN

sábado, 8 de agosto de 2009

O capitalismo é moral?

Há um passo célebre da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de Immanuel Kant, sobre o "comerciante avisado", para mostrar o que é realmente moral. O comerciante avisado e prudente não engana os seus clientes, pois a honestidade é necessária para o bom andamento do negócio. Ele age de modo conforme ao dever - não enganar os clientes -, mas isso não significa que aja moralmente. A acção só é moral, se agir por dever e não com uma intenção egoísta, isto é, porque o seu lucro o exige. Em A República, Platão apresenta o famoso anel de Giges, que, colocado numa certa posição, tornava o seu possuidor invisível. Com o anel e os seus poderes mágicos de invisibilidade, Giges, que era um homem honesto, entregou-se a uma série de crimes. Colocado nesta situação de poder tornar-se invisível, pode alguém fazer o teste da sua moralidade, verificando que só é verdadeiramente moral quem, mesmo invisível, continuasse a agir por dever e não por interesse ou por medo do juízo dos outros. À pergunta em epígrafe, que constitui também o título de uma obra de André Comte-Sponville, o conceituado filósofo responde: "Não. O capitalismo não é moral, mas também não é imoral; é - total, radical, definitivamente - amoral." Assim, por exemplo, aos protestos compreensíveis de quem se revolta porque o preço de determinado produto está acima do que a decência pode tolerar, observa: "A decência, que eu saiba, não é uma noção económica." Para perguntas e respostas correctas, é necessário distinguir as ordens, os níveis ou domínios. A primeira ordem é a ordem tecnocientífica - no caso da economia, a ordem económico-tecnocientífica -, estruturada, interior- mente, pela oposição do possível e do impossível. Esta fronteira interna entre o possível e o impossível é incapaz de limitar a ordem tecno-científica, porque se desloca constantemente: pense-se no que era antes impossível e hoje possível no domínio da biologia e do progresso tecnológico em geral. Mas precisamente estas novas possibilidades e suas consequências - manipulações genéticas, poluição...; no caso da economia, as variações do mercado... - podem pôr em causa o futuro da Humanidade ou afectar dramaticamente a vida de milhões de pessoas. Assim, uma vez que esta ordem é incapaz de limitar-se a si mesma - não há limite biológico para a biologia, limite económico para a economia, etc. -, é preciso limitá-la do exterior, com a ordem jurí- dico-política, a lei, o Estado, ordem estruturada interiormente pela oposição do legal e do ilegal. O legal pode, porém, não respeitar a dignidade humana: pense-se na legalização do esclavagismo ou do racismo. Não se vota o bem e o mal: "O indivíduo tem mais deveres do que o cidadão." Assim, a ordem jurídico-política é limitada do exterior pela natureza e pela razão, pela ordem moral (o dever, o interdito). Quer dizer, há o pré-jurídico e pré-político. Por último, a ordem moral é "completada", abrindo-se ao divino, que é a ordem do amor e da gratuidade. O capitalismo é, pois, amoral. Não funciona pela virtude nem pelo desinteresse ou pela generosidade, mas pelo interesse pessoal ou familiar, pelo egoísmo. Se funciona bem, é precisamente porque egoísmo é coisa que não falta, mas, também por isso, não basta. O mercado, que mostrou ser o sistema mais eficaz, não tem a capacidade de regulação socialmente aceitável e a moral também não consegue. Então? "Entre o poder cego da economia e a fraqueza da moral, só a política e o direito nos permitem fixar limites não-mercantis ao mercado, regulá-lo, a fim de que os valores morais dos indivíduos dominem, pelo menos em parte, a realidade amoral da economia. O problema, hoje, é que se cavou um desfasamento entre a escala mundial dos problemas económicos e a escala nacional dos nossos meios de acção sobre esses problemas." É aqui que se mostra a urgência de uma política mundial, o que implica compromissos entre Estados, para que o capitalismo seja limitado nos seus efeitos perversos e dramáticos. "Quanto mais lúcido se é quanto à força da economia e à fraqueza da moral mais exigente se deve ser quanto ao direito e à política."
.

sábado, 1 de agosto de 2009

O futuro: sem futuro?

Eles também nascem. E crescem. Também amam e esperam. São seres humanos como nós. Também sorriem, mas tristes: a alma afunda-se na negrura da impotência, da dor e da tristeza. Tentam trabalhar. Sofrem demais. Morrem cedo, demasiado cedo. De desnutrição, de falta de água e de higiene e de remédios. De fome. Faltou-lhes tudo. Eles são os pobres. Aos milhões, cada vez mais. E é uma vergonha para a Humanidade que, quando há possibilidade do mínimo para todos, tantos morram ao abandono da fome. E Deus a perguntar, como no princípio a Caim: "O que fizeste do teu irmão?" Como se pode tolerar que ao mesmo tempo que aumenta a riqueza mundial seja cada vez maior o fosso entre os ricos e os pobres, cujo número, com a crise, não cessa de crescer? São homens e mulheres, aos milhões - muitas crianças -, a quem foi negada a dignidade humana. Este é que é o problema maior da Humanidade, que tem de ter uma solução. Esperamos numa boa solução. Porque, se não for a bem, será a mal. De facto, quem julga que o tempo das revoluções acabou está enganado. Vem aí a revolução dos pobres e desesperados. Na sua última encíclica, Caritas in Veritate (A caridade na verdade), Bento XVI tentou dizê-lo, mas, segundo alguns, sem a força necessária. Daí, a par do merecido aplauso, as justas críticas ao documento. Que é demasiado longo, num amálgama para todos os gostos, o que é verdade. Que, ao falar a partir de um lugar soberano de pureza moral, ignora a necessária autocrítica da Igreja, o que também é verdade. Que a crítica do mercado e do universo financeiro tinha de ser muito mais severa e concreta. Que é equilibrista e tem míngua de análise crítica e denúncia e anúncio proféticos. Se há desafio gigantesco para a Humanidade, é o de encontrar um modelo económico que alie liberdade e justiça. De facto, com o comunismo, o que se queria era implantar a justiça, mas o resultado foi uma sociedade sem liberdade nem justiça. Com o capitalismo desenfreado, a liberdade é só para alguns e opressora. Como acaba de escrever o famoso bispo Pedro Casaldáliga, "impõe-se também uma recusa crítica do suposto 'triunfo' do capitalismo neoliberal. Porque nós, pelo menos, não vemos em lado nenhum esse triunfo, se nos referimos à imensa maioria da Humanidade. Acrescendo que o próprio capitalismo neoliberal triunfante não se sente tão seguro de si, frente às suas contradições internas. Mas, mesmo que esse triunfo do egoísmo estrutural se tivesse dado, seria um fracasso ético da família humana, pois estar-se-ia a evidenciar, mais uma vez, a impossibilidade de uma política e uma economia honestamente fraternas; ter-se-ia imposto outra vez, como única possível, a 'ética dos lobos'". A encíclica, inesperadamente, refere-se à necessidade de mais Estado, critica o neoliberalismo e diz que urge uma Autoridade política mundial reconhecida por todos. Mas não houve ousadia profética. Continua a inscrever-se, ainda que o seu fio condutor seja o do desenvolvimento humano integral, no horizonte do desenvolvimento aparentemente sem limites. Como escreveu J. Ignacio Calleja, não se colocou a questão do "decrescimento" como forma de mudar os estilos de vida. Eu próprio há muito tempo me pergunto se não continuamos inconscientemente instalados na ideia de um progresso ilimitado. Mas a pergunta é: é possível um desenvolvimento sem limites num mundo limitado? Por outro lado, não é verdade que se torna cada vez mais claro que o "trabalho" se tornou definitivamente um bem escasso e que é preciso partilhá-lo, com todas as consequências? Cá está o tal "decrescimento". Afinal, a questão é simples. O presente modelo de desenvolvimento não é universalizável. Quem tiver dúvidas pergunte o que acontecerá, quando, por exemplo, os quase três mil milhões de chineses e indianos quiserem e obtiverem os padrões de vida e consumo ocidentais. A contradição é esta: por um lado, impõe-se promover os pobres, que têm direito ao desenvolvimento, mas, por outro, no quadro do nosso modelo, isso é problemático, porque o planeta não aguenta ecologicamente. Então? Anselmo Borges