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terça-feira, 6 de junho de 2023

RAUL BRANDÃO - Quando passei pela Gafanha

«Quando passei na Gafanha [1922], vi as cachopas da beira-rio, todas molhadas, sempre metidas na água a rapar o moliço. Feias e ingénuas. A uma calculei-lhe: – Tem para aí treze ou catorze anos. – Tenho vinte e um, e três filhos, respondeu. – Outra tinha ficado a olhar para mim com olhos inocentes de bicho e as mãos postas sobre os seios redondinhos – sobre aquilo, como diz a Ti Ana, que o Senhor lhe deu e ela precisa…
A ti Ana Arneira, com cuja amizade me honro, é um dos meus melhores conhecimentos da Gafanha. Mulher capazona, como por lá se diz. Acompanha-me pelo areal, e conta-me logo à primeira a sua vida. Tipo atarracado e forte, de grossos quadris, vestida de escuro, chapéu na cabeça e aguilhada em punho. O homem foi para o Brasil há muitos anos (— É o rei dos homes!... —), ficou ela e os filhos por criar. Criou-os todos. Netos, doenças, lutos. Nunca desanimou. A força que a sustenta é admirável, profunda e radicada, como a de quase todas as mulheres do povo que conheço. Deitou-se à vida — lavrou campos. Vieram mais aflições e outras mortes.

domingo, 12 de março de 2023

RAUL BRANDÃO NASCEU NESTE DIA

12 de Março de 1867



"Se eu fosse pintor, passava a minha vida a pintar o pôr do Sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espetáculo extraordinário.
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte com um ar de ameaça, e outros doirados e verdes, com o crescente fino da Lua no alto e do lado oposto a montanha enegrecida e compacta. Tardes violetas, neste ar tão carregado de salitre que torna a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados ...
Um poente desgrenhado, com nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do norte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que boia nas águas – e não quer morrer... "

Raul Brandão, 
in " Os Pescadores"

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Raul Brandão andou pela Ria de Aveiro

 Neste número do nosso jornal propomos a leitura de um livro de Raul Brandão — Os Pescadores — que visitou e passeou pela Ria de Aveiro em 1922, escrevendo, com sensibilidade e arte, sobre o que viu, sentiu e soube apreciar. Valorizou o trabalho do homem "que junta a terra movediça e a regulariza" e "semeia o milho na ria", sublinhando que "Ninguém aqui vem que não fique seduzido, e noutro país esta região seria um lugar de vilegiatura privilegiado". E acrescenta: "É um sítio para contemplativos e poetas... É um sítio para sonhadores e para os que gostam de se aventurar sobre quatro tábuas, descobrindo motivos imprevistos."
Raul Brandão fala dos campos verdes da Gafanha, das mulheres vestidas de escuro, "com grandes molhos de erva à cabeça" e da Costa Nova com os seus palheiros, mas também da arte xávega e do mar impetuoso que rebenta sobre o areal, com "os homens e bois que saem a correr do vagalhão de espuma... ", acrescentando que "Foi diante de um quadro assim que Ferdinand Denis exclamou, assombrado: — Que estranho país é este onde os bois vão lavrar o próprio oceano?!"
Quando passou na Gafanha conheceu a ti Ana Arneira, "com cuja amizade me honra", como faz questão de sublinhar. "O homem foi para o Brasil há muitos anos (— É o rei dos homes!...), ficou ela e os filhos por criar. Criou-os todos. Netos, doenças, lutos."

Fernando Martins

Nota: Sugestão de leitura para os leitores do TIMONEIRO

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

RETALHOS: Raul Brandão

Pequenas notas 

Pôr do sol (Foto de Ângelo Ribau)

PORES DO SOL 

"Se eu fosse pintor passava a minha vida a pintar o pôr do sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espetáculo extraordinário.
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte com um ar de ameaça, e outros doirados e verdes, com o crescente fino da Lua no alto e do lado oposto a montanha enegrecida e compacta. Tardes violetas, neste ar tão carregado de salitre que torna a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados ...
Um poente desgrenhado, com nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do norte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que bóia nas águas – e não quer morrer... " 

Raul Brandão,
em " Os Pescadores" 

Página 47 da edição Grandes Clássicos da Literatura Universal

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Bois que lavram o mar...


De passagem por S. Jacinto, no domingo, onde tomei o Ferry Boat para regressar a casa, apreciei,  sobremaneira, o arranjo urbanístico da marginal. Muita gente por ali gozava a tarde acolhedora que dava vida e alegria àquele espaço para turistas e moradores se cruzarem, num vaivém contínuo. Outros esperavam como eu a hora da partida do Ferry.
Enquanto cirandava à procura de rostos conhecidos e de ângulos para a fotografia, verifiquei que havia frases escritas no chão da marginal. E uma muito próxima de outra que eu já conhecia.

A de S. Jacinto diz assim:

"Estranha gente esta onde os bois lavram o mar"

Penso que a ideia foi boa, mas trata-se de um lapso em relação à original, publicada no livro de Raul Brandão, "Os Pescadores". Diz o grande escritor, citando Ferdinand Denis:

"Que estranho país é este onde os bois vão lavrar o próprio oceano?!..."

A ser reescrita a frase, é fundamental que ela seja acompanhado do nome do autor, que não foi Raul Brandão, como muita gente pensa e diz. Ele limitou-se a citar...

terça-feira, 5 de julho de 2016

Ribeira Grande vista por Raul Brandão e por mim

Matriz ao longe
«A estrada sobe, a estrada desce, e a vegetação é cada vez mais impetuosa e forte. Já ao longe reluz uma brancura — Ribeira Grande. O panorama alarga-se, mas as nuvens começam a forrar o céu e o cheiro da humidade a entrar-me pelas ventas. Todo este ar lavado e amplo se emborralha. O calor amolece. Mais um lanço de estrada que sobe, e tenho diante de mim a rica planície da Ribeira Grande, largo quadro de tons variados, desde o loiro do trigo até ao verde-escuro do milho. Ao fundo, a toda a largura do céu, uma nuvem recortada e imóvel, estendida como um toldo, deixa um feixe de sol iluminar o oceano, enquanto o campo se conserva envolto em claridade esbranquiçada e magnética até à linha cinzenta dos montes.»

Raul Brandão, 
1924, 4 de agosto

Matriz de outro ângulo. Árvore secular marca presença
Jardim anexo à ribeira
Outro aspeto da ribeira
As árvores com idade avançada
As nuvens, sempre as nuvens
Na ponte, os nossos interlocutores

Ao volante do seu carro, que chiava a cada curva apertada e roncava em cada subida íngreme, com montes teimosamente no horizonte e mar em múltiplas esquinas, o meu João Paulo não se cansava de nos indicar povoações, miradouros, culturas e gentes. Trigo e milho jamais. Casas bonitas, bem caiadas e asseadas, flores e verdura a ornamentarem a paisagem. Vacas aqui e ali. E nas aldeias, de ruas estreitas desafiando a perícia dos condutores, lá estavam monumentos singelos com evocações histórias.
As nuvens de Raul Brandão a forrarem o céu e a humidade abafada a envolverem-nos eram presença assídua e incomodativa. Depois o largo, a Ribeira Grande, a maior da ilha, segundo o testemunho de três ribeirenses que cavaquearam connosco na ponte. De conversa simpática. A Ribeira Grande afinal trazia pouca água. E explicaram. — Quando chove bem, a água escorre dos montes e o caudal cresce bastante e com força; depois vem a normalidade, mas nunca seca.
E continuaram: — As árvores enormes são como monumentos; ninguém as pode cortar; quando éramos meninos já cá estavam e gostamos muito de as ver sempre bem tratadas. 
Depois falaram da prisão que estava num lado do largo, numa espécie de torre quadrangular. E orgulharam-se das ruas ajardinadas e limpas, das casas pintadas sob fiscalização da Câmara, dos jardins com arte. E um acrescentou: — Um dia um morador abusou, pintando a sua casa com uma cor esquisita; a Câmara resolveu o problema; as leis são para ser cumpridas.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Escritores e a Ria de Aveiro - 1



«A ria é um enorme pólipo com braços estendidos pelo interior desde Ovar até Mira. Todas as águas do Vouga, do Águeda e dos veios que nestes sítios correm para o mar encharcam nas terras baixas, retidas pelas dunas de quarenta e tantos quilómetros de comprido, formando uma série de poças, de canais, de lagos e uma vasta bacia salgada. De um lado o mar bate e levanta constantemente a duna, impedindo a água de escoar; do outro é o homem que junta a terra movediça e a regulariza. Vem depois a raiz e ajuda-o a fixar o movimento incessante das areias, transformando o charco numa magnífica estrada que lhe dá o estrume e o pão, o peixe e a água de rega. Abre canais e valas. Semeia o milho na ria. Povoa a terra alagadiça, e à custa de esforços persistentes, obriga a areia inútil a renovar constantemente a vida. Edifica sobre a água, conquistando-a, como na Gafanha, onde alastra pela ria, aduba-a com o fundo que lhe dá o junco, a alga e o escasso, detritos de pequenos peixes…»

Raul Brandão 

“Os Pescadores”

sábado, 22 de novembro de 2014

A ria é um enorme pólipo



«A ria é um enorme pólipo com braços estendidos pelo interior desde Ovar até Mira. Todas as águas do Vouga, do Águeda e dos veios que nestes sítios correm para o mar encharcam nas terras baixas, retidas pelas dunas de quarenta e tantos quilómetros de comprido, formando uma série de poças, de canais, de lagos e uma vasta bacia salgada. De um lado o mar bate e levanta constantemente a duna, impedindo a água de escoar; do outro é o homem que junta a terra movediça e a regulariza. Vem depois a raiz e ajuda-o a fixar o movimento incessante das areias, transformando o charco numa magnífica estrada que lhe dá o estrume e o pão, o peixe e a água de rega. Abre canais e valas. Semeia o milho na ria. Povoa a terra alagadiça, e à custa de esforços persistentes, obriga a areia inútil a renovar constantemente a vida. Edifica sobre a água, conquistando-a, como na Gafanha, onde alastra pela ria, aduba-a com o fundo que lhe dá o junco, a alga e o escasso, detritos de pequenos peixes…»

Raul Brandão
“Os Pescadores”

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Um livro de Raul Brandão: “As Ilhas Desconhecidas”





Andava há muito com vontade de ler “As Ilhas Desconhecidas — Notas e Paisagens”, um livro escrito por Raul Brandão na década de 20 do século passado, concretamente, entre junho e agosto de 1924. A primeira edição viu a luz do dia em 1926 e a presente, da QUETZAL, tem data de março de 2011. Dir-se-ia tratar-se de uma obra clássica, com lugar próprio nos estudos de especialistas da literatura de viagens. Afinal, pelo que tenho lido, de críticos e apreciadores deste género literário, a obra continua a valer por tudo quanto Raul Brandão disse e como disse. 
As minhas leituras tinham-se circunscrito a simples passagens, mas este ano tive a sorte de poder comprar a mais recente edição de “As Ilhas Desconhecidas”, que tenho andado a ler com calma. E o prazer da leitura, que tenho sentido quando lhe dedico algum tempo, já que apostei em saborear este livro de viagens como quem se serve de um excelente petisco com a preocupação de o reter na boca o necessário para dele se usufruir tudo, mas mesmo tudo, quanto for possível, dá razão a quantos continuam a afirmar, quase um século depois de ter sido publicado pela primeira vez, que a obra “As Ilhas Desconhecidas” «permanece no nosso património literário como a mais completa das homenagens aos arquipélagos atlânticos». 
O autor diz, “Em Três Linhas”, que «Este livro é feito com notas de viagens, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões. Tinha ouvido a um oficial de marinha que a paisagem do arquipélago valia a do Japão. E talvez valha… não poder eu pintar com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nos leitores o desejo de os verem com os seus próprios olhos!...».

Excerto do livro 

«Mas hoje acordo, subo ao convés e tenho uma alegria frenética. Tudo isto, todo este azul, toda esta frescura, me entra em jorros pelos olhos dentro e pela alma dentro. A tinta azul não só ondula — estremece em pequenos grãos vivos, duma acção extraordinária, e o mundo sempre novo que me rodeia penetra-me do seu bafo e comunica-me a sua vida.» 

E a chegada a Cascais 

«… A noite de 29 de Agosto passo-a no tombadilho, sempre à espera, numa sofreguidão de luz — e toda a noite é de trágica tempestade. No convés, só vejo negrume agitando-se num clamor. Mas de manhã a borrasca aplaca-se dentro da baía de Cascais — e a luz irrompe, uma luz alegre, uma luz que vibra toda, uma luz em que cada átomo tem asas e vem direito a mim como uma flecha de oiro. No céu imenso, azul e livre, o Sol bóia como num grande fluido. Portugal!»




segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Despedimo-nos uns dos outros muitas vezes

"Anjo" de Lourdes Castro

«Nós não vemos a vida – vemos um instante da vida. Atrás de nós a vida é infinita, adiante de nós a vida é infinita. A primavera está aqui, mas atrás deste ramo em flor houve camadas de primaveras de oiro, imensas primaveras extasiadas, e flores desmedidas por trás desta flor minúscula. O tempo não existe. O que eu chamo a vida é um elo, e o que aí vem um tropel, um sonho desmedido que há de realizar-se. E nenhum grito é inútil, para que o sonho vivo ande pelo seu pé.»

Raul Brandão, 
citado por Tolentino Mendonça 

sexta-feira, 8 de julho de 2005

Ainda as Mulheres da Gafanha

Mulheres gafanhoas da década de 40 do século passado 


Retrato “pintado” com muita ternura

Raul Brandão foi para mim o escritor que melhor retratou a Ria de Aveiro e as gentes ribeirinhas, quando por aqui andou em 1922, para depois publicar no seu muito badalado livro “Os pescadores”. Já tenho falado e escrito deste escritor que se apresenta assim: “Este tipo esgalgado e seco, já ruço, que dorme nas eiras ou sonha acordado pelo caminhos, sou eu. Sou eu que gesticulo e falo sozinho, envolto na nuvem que me envolve e impregna. Que força me guia e impele até à morte?” 

Quando relembra o seu regresso do mar, das muitas viagens que fez, para depois descrever, com arte e poesia, o que viu e sentiu, diz que vem sempre “estonteado e cheio de luz” que o trespassa. Depois pega nos “apontamentos rápidos”, em “meia dúzia de esboços afinal, que, como certos quadradinhos, do ar livre, são melhores quando ficam por acabar”. E acrescenta com nostalgia de poeta da prosa: “Estas linhas de saudade aquecem-me e reanimam-me nos dias de Inverno friorento. Torno a ver o azul, e chega mais alto até mim o imenso eco prolongado… Basta pegar num velho búzio para perceber distintamente a grande voz do mar. Criou-se com ele e guardou-a para sempre. – Eu também nunca mais o esqueci…” 

Mas, para esta brochura que o Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré organizou para o Festival de 2005, quero apenas transcrever o quadro que Raul Brandão “pintou” sobre as mulheres da Gafanha, em que figura como personagem principal a Ti Ana Arneira. Foi um retrato feito com muita ternura por um escritor que não pode ser esquecido. Diz assim: “Quando passei na Gafanha, vi as cachopas da beira-rio, todas molhadas, sempre metidas na água a rapar o moliço. Feias e ingénuas. A uma calculei-lhe: – Tem para aí treze ou catorze anos. – Tenho vinte e um, e três filhos, respondeu. – Outra tinha ficado a olhar para mim com olhos inocentes de bicho e as mãos postas sobre os seios redondinhos – sobre aquilo, como diz a Ti Ana, que o Senhor lhe deu e ela precisa… 
A Ti Ana Arneira, com cuja amizade me honro, é um dos meus melhores conhecimentos da Gafanha. Mulher capazona, como por lá se diz. Acompanha-me pelo areal, e conta-me logo à primeira a sua vida. Tipo atarracado e forte, de grossos quadris, vestida de escuro, chapéu na cabeça e aguilhada em punho. O homem foi para o Brasil há muitos anos (– É o rei dos homes!...), ficou ela e os filhos por criar. Criou-os todos. Netos, doenças, lutos. Nunca desanimou. 
A força que a sustenta é admirável, profunda, e radicada, como a de quase todas as mulheres do povo que conheço. Deitou-se à vida – lavrou campos. Vieram mais aflições e outras mortes. – Então de que lhe morreram os filhos? – Sei lá, a morte não se quer culpada. Era preciso sustentar a família. Pegou nos bois e no carrinho e começou a transportar sal da Gafanha para Mira. Fez mais: antigamente no Arião também havia companhas, e quando faltava um pescador a Ti Ana agarrava-se ao remo como um homem e ia ao mar no barco. – Nem do diabo tenho medo. Só tenho medo aos cães loucos. – A extensa planície que atravessa, duas, três vezes por dia, é um deserto. A Ti Ana vai e vem de noite, sozinha, com os bois que lhe fazem companhia. Agora tem um campo, barcos para o moliço, novos netos para criar – e olha cara a cara o destino sem esmorecer. A sua vida é uma grande lição de energia.” 

Fernando Martins