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domingo, 23 de junho de 2019

Bento Domingues - Há boas notícias

Bento Domingues

«Está aberta a discussão sobre a ordenação de homens casados e a revisão dos ministérios das mulheres na Igreja. Este tabu acabou.» 

1. Na última quinta-feira, a Igreja católica celebrou a festa do Corpo de Deus, feriado nacional. As origens desta festa estão envolvidas em histórias de muita fantasia. A chamada Lenda Rigaldina (séc. XIV) é a mais divertida. Estava Santo António a pregar, em Toulouse, sobre a presença real de Cristo sob as espécies do pão e do vinho, quando um ateu, chamado Bonillo, o enfrentou com um desafio: só acreditaria no que acabava de ouvir se a sua mula se ajoelhasse diante do ostensório eucarístico. Frei António aceitou e ampliou o desafio. Mandou que deixassem o animal sem comer três dias e, no final, lhe fosse apresentado um monte de erva e, ao lado, o ostensório. 
No fim do terceiro dia, a mula esfomeada foi solta e, passando por um monte de feno e aveia, foi ajoelhar-se em frente da Custódia. Esta lenda deu origem a outra: uma freira agostiniana, Juliana de Mont Carnillon, terá conhecido ecos da pregação do Santo e teve visões de que era o próprio Cristo a manifestar-lhe o desejo de que o mistério da Eucaristia fosse celebrado com mais solenidade. Terá revelado esse desejo ao futuro Urbano IV. Entretanto, na cidade de Bolsena, perto de Orvieto, residência do Papa, aconteceu um espantoso milagre: um padre, ao celebrar a Eucaristia e ao partir a Hóstia consagrada, viu cair sobre a toalha gotas de sangue!

domingo, 3 de março de 2019

Bento Domingues: Vita Mutatur Non Tollitur (1)

Frei Bento Domingues

"O importante não é saber se o Papa vai vencer ou vai ser derrotado, mas se vamos ter ou não quem se apaixone pela paixão do Nazareno"


1. Para o filósofo L. Wittgenstein, acreditar em Deus significa reconhecer que a vida tem sentido. Hoje, vivemos obcecados pelo futuro que a ascensão da inteligência artificial e a biotecnologia nos desenham. O filósofo tem uma observação que, segundo me parece, conserva toda a pertinência: "sentimos que, mesmo que todas as possíveis questões científicas obtivessem resposta, os nossos problemas vitais não teriam ainda sido sequer tocados".
Concelebro, muitas vezes, a Eucaristia. Para mim, não é uma rotina devocional nem uma obrigação. Implica uma comunidade agradecida por acreditar que a morte não é a última palavra sobre o itinerário de uma existência humana. Essa convicção não é da ordem da razão, não é a conclusão de qualquer elaboração científica. Muitos chamam-lhe “fé na ressurreição”. São tantos os equívocos acerca do uso dessa palavra que não insisto muito nela.
Jesus Cristo teve um percurso breve, atribulado e que terminou cravado numa cruz, a morte mais cruel da antiguidade. Não morreu, foi assassinado mediante um julgamento iníquo. Sentiu-se abandonado pelo céu e pela terra e, sobretudo, sentiu o fracasso da sua luta. No entanto, teve folgo para perdoar aos autores da sua morte e para prometer o paraíso a um companheiro de infortúnio. Foi morto, mas, se estivermos atentos às narrativas da Paixão, a sua morte ia carregada com a vida de todos, com esperança para os próprios inimigos. Queixando-se do abandono de Deus, foi nas Suas mãos que lhe entregou o seu destino. A esperança contra toda a esperança foi o seu último suspiro.
Depois, as mulheres vieram dizer, não apenas que ele não estava no sepulcro, onde fora colocado, mas que as convocou para anunciar aos discípulos que estava vivo e era preciso continuar o caminho por ele aberto. As mulheres estão na origem do movimento cristão. São elas as pregadoras do Evangelho na sua novidade contra a morte.
Frei José Augusto Mourão escreveu um belo poema para uma música do Convento de La Tourette, o célebre convento de Corbusier. É cantado muitas vezes na minha comunidade dominicana: "…Ao pé de Deus hei-de sempre viver/ com Deus cheguei e com ele vou partir" (2.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Frei Bento Domingues: Não nos preocupemos com os anjos

Bento Domingues

"Foi para mim um anjo ! São muitas as pessoas, todos conhecem algumas, a quem apetece dizer esta bendita oração."

1. Não escolhemos as perguntas que nos fazem. Na semana passada, uma senhora muito idosa perguntou-me aflita: os anjos existem ou não? Toda a vida rezei ao meu anjo da guarda, mas a minha neta disse-me que, agora, já nem os padres acreditam nisso. 
A erva-das-pampas até pode ser “bonita”, mas não devia estar por todo lado 
Deduzi que não era a sua crença que estava abalada, mas a dificuldade em transmiti-la à nova geração. Não vem ao caso a conversa que tivemos. O imaginário da luta entre os anjos bons a quererem salvar as nossas almas e os demónios a fazerem tudo para nos perderem era a representação religiosa da nossa infância. Lembrei-lhe que, na Eucaristia, o louvor divino é sempre associado à música dos anjos e dos santos! 
Quando a ansiedade serenou, lembrei-lhe duas histórias que me divertiram. Em 1961, à saída de Liège, à espera de uma boleia para Colónia, li, no Assimile de alemão, que um pároco pediu a um pintor que enchesse de anjos as paredes de uma capela recém-construída. Quando foi ver as pinturas ficou irritado: quando é que se viram anjos com tamancos? O pintor observou-lhe: e sem tamancos? 
Em 1962, era assistente da Juventude da Igreja de Cristo Rei (Porto) – a primeira associação católica mista de jovens, em Portugal – quando um rapaz interessado por teologia veio dizer-me que tinha descoberto as razões do mundo andar tão desorientado. Os Anjos não se reproduzem e os seres humanos são cada vez mais. Resultado: há muita gente sem anjo da guarda! 

sábado, 14 de abril de 2018

RUMO AO CONGRESSO EUCARÍSTICO

Georgino Rocha 




ESPERANÇA, EUCARISTIA, MISSÃO

A esperança faz parte da vida humana. É o impulso confiante que dá ânimo à mulher grávida durante a gestação, à noiva que vive a proximidade do casamento, ao atleta que sonha com a vitória enquanto treina esforçadamente, ao estudante que deseja o curso profissional, à equipa médica na mesa de operações, ao lavrador que lança a semente, à pessoa idosa que tem pressa de viver porque o tempo se encurta. Outras referências podem ser feitas. O objectivo está em avivar a importância da esperança, enquanto seiva da vida e força de crescimento para a maturidade. Por experiência, pode afirmar-se: a esperança é o motor da vida, enquanto a caridade é o “óleo de lubrificação” e a fé a certeza de alcançar a meta avançando “como se víssemos o Invisível”.

Nota pedagógica: Seria muito valioso identificar pessoas da nossa terra, de preferência, que sejam rostos de esperança. Sem pretender a perfeição, mas com traços notáveis facilmente reconhecidos.

O Papa Francisco, nas suas catequeses sobre a esperança, no ano 2016-2017, afirma: “Esperar é uma necessidade primária do homem: esperar no futuro, acreditar na vida, o chamado «pensar positivo» ”. E recomenda ser “importante que esta esperança seja posta naquilo que pode deveras ajudar a viver e a dar sentido à nossa existência. É por isso que a Sagrada Escritura nos admoesta contra as falsas esperanças que o mundo nos apresenta, desmascarando a sua inutilidade e mostrando a sua insensatez”.
Os discípulos de Emaús acompanharam Jesus, alimentando sonhos de grandeza. Os relatos evangélicos fazem-se eco desse desejo. E é legítimo querer ser o primeiro, ocupar um lugar importante, fazer render talentos e capacidades. Jesus não o nega nem proíbe, mas redimensiona-o. Ser o primeiro para servir; ocupar um lugar importante para olhar com misericórdia os que não “têm voz nem vez”; fazer render talentos, não para acumular, mas para partilhar. E assim em todas as situações humanas. A esperança é o sentido nobre da acção pessoal e em grupo.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

EUCARISTIA, O AMOR FAZ-SE SERVIÇO

Reflexão de Georgino Rocha


A Eucaristia é a celebração da ceia do Senhor, ceia que Jesus realiza com os discípulos a quem deixa este mandato: “Fazei isto em memória de mim”. É a ceia do lava-pés, da entrega livre por amor que vem a ser consumado no sacrifício da cruz. É a ceia do avental de serviço mantido como distintivo do Mestre que quer ver perpetuado em gestos de humanização progressiva e qualificada: “Felizes sereis se o puserdes em prática”.
A Igreja assume esta missão e vê na eucaristia o centro e o vértice da sua acção pastoral. Como centro, supõe um percurso que une os lados, as “periferias”, e encaminha para esse núcleo. Em linguagem consagrada é a iniciação cristã. O centro ergue-se até ao cimo, em figura de pirâmide ou poliedro. São as subidas à perfeição da vida ética e moral pela construção do “homem interior” e as descidas para o quotidiano do viver cristão marcado pelas bem-aventuranças e pelos sacramentos de serviço.
Esta síntese pode ajudar a configurar a pastoral em torno à eucaristia, e que o programa diocesano se propõe assumir este ano. Sem as virtudes teologais e morais, quer dizer, sem fé-esperança-caridade; sem prudência-justiça-fortaleza-temperança, o humano cristão não tem alicerces seguros nem o exercício da cidadania tem qualquer marca diferenciadora da novidade que brilha nas bem-aventuranças. Sem os dons do Espírito Santo desabrocharem em frutos visíveis de comportamentos éticos adequados, a maturidade espiritual fica longe, muito longe.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Georgino Rocha — Vinde tomar parte! A festa está preparada


Jesus prossegue o anúncio da novidade de que é portador: Deus é diferente do que imaginamos, o seu agir mostra claramente quem ele é. Visualiza o que quer transmitir com a parábola do rei que pretende fazer festa pelo casamento do filho. (Mt 22, 1-14). Envia os convites, prepara com requinte a ementa, espera pela resposta livre de cada um, não desiste perante a recusa nem altera o seu projecto, dirige-se a outros que aceitam prontamente, e o banquete realiza-se na alegria dos comensais que convivem em igualdade e se alimentam com as iguarias confeccionadas com primor e dignidade. A parábola é dirigida aos sumos-sacerdotes e anciãos do povo, isto é, aos responsáveis pela situação religiosa vivida e que desfigurava o rosto de Deus.

Mateus, hábil narrador, tem como “pano de fundo” os acontecimentos ocorridos em Jerusalém, pelos anos 70, aquando da destruição do Templo pelas tropas romanas. E realça a acção generosa do rei que selecciona cuidadosamente a lista dos convidados. Segundo a praxe, o convite é dirigido a amigos e a pessoas estimadas. São estas que projectam a sua imagem social, constituem como que o espelho da sua reputação, do reconhecimento público que lhe era dispensado, da gala de ilustres figuras que o rodeiam e acompanham. Estava em jogo o bom nome, a sua honorabilidade. 

O Papa Francisco ao comentar esta parábola afirma: “Pobre Rei que tinha bem presente cada um dos que desejava ver no seu palácio. Desejava com o seu coração abrir os braços e receber o seu hóspede esperado, mas este não quis vir, simplesmente assim: não quis, não soube, ou nem quis saber”. Pobre rei que, apesar da insistência, se vê recusado sem qualquer explicação e pelas mais diversas razões. Não lhe dão a menor atenção. Indiferentes, uns; violentos e agressivos, outros. Todos recusam entrar em comunhão fraterna com ele. Dir-se-ia que estavam bem na situação em que se encontravam. “Os que se negam a ir à boda, explica J. M. Castillo (La religión de Jesús, ciclo A, p. 422) são gente de alta posição social e de muito dinheiro. Têm terras e negócios. Os que entram na boda são gente que não tem nada, os vagabundos dos caminhos”. Aqueles estão satisfeitos, acomodados, com seus privilégios e distinções. Deus não os suporta mais. Os outros acabam por ser os preferidos. Isto os fariseus não aguentam e maquinam a trama final da vida de Jesus.

O retrato dos chefes interlocutores saía em relevo. Mas a narrativa continua com novos requintes. “A festa de casamento está pronta, mas os convidados não a mereceram. Portanto, ide à encruzilhada dos caminhos e convidai para a festa todos os que encontrardes”. E a sala ficou cheia. Quem imaginaria o palácio real ocupado por esta gente tão diversa e desprezada: os marginalizados e excluídos sociais e religiosos, os maltrapilhos e deformados, os esfomeados e sedentos, os sem-abrigo nem protecção. A sala coloriu-se com todos eles, que simbolizam os membros do novo povo de Deus. Os primeiros, os responsáveis religiosos dos Judeus recusam e vêem-se preteridos; os segundos aceitam e são contemplados com os bens messiânicos, os do banquete oferecido.

A parábola contém outros elementos de grande significado. Faz, como que em antecipação, o relato do que vai acontecer. O filho é Jesus que celebra a ceia de despedida com os discípulos antes da paixão e da morte que o elimina e abre a porta à sua ressurreição. Os enviados foram os profetas e agora são os cristãos animados pelo Espírito Santo congregados em Igreja e prontos para a missão. O rei é Deus que persiste em levar por diante o projecto de salvação, respeitando a liberdade humana, mas exigindo comportamentos responsáveis. O tempo coincide com a história que, em género de livro da vida, regista o percurso de cada um de nós. No fim será consumada a festa do banquete em que todos participam, uma vez que se apresentam com o traje do bem feito em obras de justiça, misericórdia e perdão, de graça e benevolência, sobretudo em favor dos que estavam nas encruzilhadas dos caminhos e nas bermas da sociedade e das religiões. (Apoc. 19, 8).

A festa está pronta. Vinde tomar parte. Ouvimos na celebração da Eucaristia: “Felizes os convidados para a ceia do Senhor”. Aceita o convite e prepara-te para comungar dignamente.

domingo, 30 de julho de 2017

Bento Domingues — Jesus não gostava de broa? (2)


1. Vivemos, hoje, um momento de extraordinárias possibilidades na Igreja Católica e o Papa Francisco é, a muitos títulos, uma bênção mundial.
Os participantes no G20, em Hamburgo, nos dias 7 e 8 de Julho, tinham um tema: “Dar forma a um mundo interligado.” Na sua mensagem, o Bispo de Roma lembrou quatro princípios de acção, recolhidos da sabedoria multissecular, para a construção de sociedades fraternas, justas e pacíficas: o tempo é superior ao espaço; a unidade prevalece sobre o conflito; a realidade é mais importante do que a ideia; o todo é superior às partes.
Já tinha assumido essa sabedoria no seu programa pastoral Evangelii gaudium, pois a Igreja não deve aprender apenas na escola da Bíblia e das suas tradições, mas na de todos os povos e culturas, do passado e do presente. Para poder ser “mãe e mestra”, tem de ser filha e aluna atenta a todos os mundos. Antes de falar é necessário ouvir, como indica o ritual do Baptismo.
Na sua mensagem aos mais ricos e poderosos, Bergoglio abordou cada um desses temas de forma extremamente rigorosa e concreta, mas sempre com um objectivo muito preciso: dar prioridade absoluta aos pobres, aos refugiados, aos sofredores, aos deslocados e aos excluídos, sem distinção de nação, raça, religião ou cultura e rejeitar os conflitos armados.
Possibilidades semelhantes tinham sido abertas pelo Papa João XXIII, ao convocar o concílio Vaticano II (1962-1965), uma espantosa Primavera traída por algo que ainda hoje é inquietante: o adiamento da reforma das mediações concretas e a sua substituição por remendos de pano velho e irrecuperável.
A decepção criou gerações de católicos decepcionados, “não praticantes”, periféricos e um catolicismo do abandono da Eucaristia, cuja gravidade está ainda longe de ser reconhecida. Pela longa cegueira e medo de se tocar na Cúria, foi impedida a reforma radical dos ministérios ordenados que continua a ser uma urgência adiada.
Foi-se pronto a impedir a ordenação das mulheres, invocando razões teológicas ininteligíveis. Para os homens casados, dizem que não há nenhum obstáculo teológico, mas o resultado é o mesmo. Como o actual modelo de acesso a esses serviços está falido, os dons ministeriais de serviço sacramental da Igreja não têm quem os possa receber.
Em várias dioceses, o clero das Congregações religiosas vai procurando tapar o sol com a peneira, traindo a sua vocação específica. Certas Congregações femininas, multiplicando retiros e cursos de formação, ao rejeitarem as transformações das suas estruturas, estão em progressiva e inútil agonia.

2. A Igreja Católica não pode prescindir das mediações sacramentais e litúrgicas. Fazem parte das celebrações existenciais da Fé. O modo como celebra não é indiferente. Celebrar mal é pior do que não celebrar: fomenta alergias inúteis. O domingo, na linguagem cristã, não pertence ao “fim de semana”, mas à grande festa do seu primeiro dia. Nasceu como possibilidade, muito bela, de rejuvenescer e transformar a vida, resistindo às tendências negativistas e niilistas.
A religião ética é uma forma de resistência à alienação e ao pessimismo. É um protesto para abrir caminhos na floresta dos enganos. Por isso, a experiência da finitude é caminho de abertura à transcendência, que se exprime, sobretudo, na linguagem simbólica de gestos e palavras.

3. Tomás de Aquino, na primeira fase do seu ensino, estava marcado por uma concepção dos Sacramentos como causas da graça. Na Suma Teológica abandonou essa perspectiva e situou os Sacramentos no mundo da simbologia. São essencialmente signos, sensíveis, terrestres da graça actuante de Cristo. É uma mudança radical que ainda hoje está longe de ser assumida em todas as consequências. O primeiro cuidado com a sua celebração não é a fidelidade às rúbricas de um ritual, mas a realização de uma festa significativa da Fé pelo envolvimento de todos os participantes, mulheres e homens, grandes e pequenos.
É tríplice a sua significação: remetem para todo o percurso de Jesus Cristo até ao dom do Espírito Santo à Igreja, mas não são uma romagem de saudade, não fixam a comunidade naquele tempo. Cristo ressuscitado não pode ser amputado da sua vida terrestre, mas é celebrado como presença actual e transformante da comunidade, abrindo-lhe um futuro de esperança.
Seria engano ver nesta estrutura simbólica — causam o que significam — apenas actos de Cristo, como um automatismo ritual. Não se pode esquecer a correlação íntima entre essa actuação e as experiências de vida da assembleia celebrante. Estas são essenciais ao acontecimento sacramental e precisam de ter expressão pública.
Dizer que foi Cristo que instituiu os sacramentos e, especialmente, a Eucaristia, não se pode pensar como se ainda estivéssemos no mundo cultural da época de Jesus. Pensar dessa maneira é amputar o cristianismo da sua significação universal e da sua capacidade de inculturação em todos os povos e culturas. Quem, no seu perfeito juízo, pode hoje supor que na chamada celebração da última Ceia, Jesus tenha dito: fazei isto em memória de mim, mas só com pão de trigo, ázimo e a bebida só pode ser vinho?
Dir-se-á que hoje os comerciantes do trigo podem assegurar esse cereal em qualquer parte do mundo. Não tenho dúvidas. Todos sabemos das imposições culinárias da grande indústria. Não me parece que seja essa a missão da Igreja.
A simbólica da Eucaristia é a mesa partilhada, por isso, quando se convida alguém para jantar não se lhe pode dizer: vem, mas não comas.
Uma das grandes tarefas das Igrejas locais consiste em exprimir a identidade da Fé cristã nas linguagens das suas culturas.
Sarah, com as suas exigências culinárias, mesmo com risco para a saúde, anulou a simbólica essencial da Eucaristia, como mesa cristã de todos os povos. A base dos Sacramentos é terrestre, é sensível, mas é a sua tríplice significação do mistério cristão que mais conta. O cardeal atirou fora a simbologia e ficou, apenas, com as coisas, retirou-se da sacramentalidade.
Não sei se Jesus gostava ou não de broa. Talvez até nem soubesse que existia. Mas imaginar que ficaria atrapalhado, nos lugares em que o trigo não é o principal alimento, em celebrar com broa ou com arroz é duvidar do poder de Cristo.

Sou levemente alérgico a estas crónicas durante o mês de Agosto. Até Setembro

Frei Bento Domingues, no PÚBLICO 

domingo, 23 de julho de 2017

Bento Domingues — Jesus não gostava de broa? (1)


1. A interrogação desta crónica tem raízes ocultadas e persistentes na teologia dos sacramentos. Regressou devido a graves problemas alimentares e simboliza a marginalização de questões abafadas na reflexão e na prática da inculturação da fé cristã. Saltou para aqui por alguma falta de humor.
O Cardeal Robert Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, dirigiu uma Carta aos Bispos diocesanos — ou àqueles que, por direito, lhe são equiparados — para lhes recordar o dever de vigiarem a qualidade do pão e do vinho destinados à Eucaristia e à idoneidade daqueles que os fabricam. Um amigo, pouco versado na linguagem litúrgica, reagiu: querem ver que a ASAE já chegou à Missa!? Acrescentei: ou será que já andam para aí a celebrar com broa de milho?
Um padre, muito zeloso, não gostou nada dessas mansas piadas: não admito que se brinque com uma das realidades mais sérias da nossa fé!
Quando tentei mostrar que a carta não era sobre a Eucaristia, mas apenas sobre a qualidade do pão e do vinho que lhe são destinados, a indignação não abrandou, pois estaríamos a desrespeitar uma zona sagrada que a protege. Não melhorei o ambiente ao dizer que antes do problema da qualidade do pão destinado à Eucaristia, existe um imperativo mais sagrado e mais cristão: lutar para que todos tenham o pão de cada dia, o alimento suficiente, como consta da mensagem do Papa Francisco ao presidente da FAO. Lembrou-me, com razão, que essa não era a preocupação do Cardeal Sarah.
Era preciso regressar a uma pergunta banal: que terá acontecido para motivar um texto cardinalício sem qualquer novidade? [1]
A explicação é oferecida numa linguagem eclesiástica que alguns julgarão ser altamente ridícula. “Enquanto até agora, de um modo geral, algumas comunidades religiosas dedicavam-se a preparar com cuidado o pão e o vinho para a celebração da Eucaristia, hoje estes vendem-se, também, em supermercados, lojas ou mesmo pela internet. Para que não fiquem dúvidas acerca da validade desta matéria eucarística, este Dicastério sugere aos Ordinários que dêem indicações a este respeito; por exemplo, garantindo a matéria eucarística mediante a concessão de certificados.”
“O Ordinário deve recordar aos sacerdotes, em particular aos párocos e aos reitores das igrejas, a sua responsabilidade em verificar quem é que fabrica o pão e o vinho para a celebração e a conformidade da matéria [...].”
A Carta funciona como um puro acto de memória. As normas acerca da matéria eucarística já estavam estabelecidas: “O pão que se utiliza no santo Sacrifício da Eucaristia deve ser ázimo, unicamente feito de trigo, confeccionado recentemente, para que não haja nenhum perigo de que se estrague por ultrapassar o prazo de validade. Por conseguinte, não pode constituir matéria válida, para a realização do Sacrifício e do Sacramento eucarístico, o pão elaborado com outras substâncias, embora sejam cereais, nem mesmo levando a mistura de uma substância diversa do trigo, em tal quantidade que, de acordo com a classificação comum, não se possa chamar pão de trigo [...].”
“O vinho que se utiliza na celebração do santo Sacrifício eucarístico deve ser natural, do fruto da videira, puro e dentro da validade, sem mistura de substâncias estranhas... [...] Não se deve admitir, sob nenhum pretexto, outras bebidas de qualquer género, pois não constituem matéria válida.” [2]

2. Esta pureza ritual embate em graves problemas de saúde reconhecidos no citado documento. De facto, a própria Congregação para a Doutrina da Fé já tinha indicado as normas para as pessoas que, por diversos e graves motivos, não podem consumir pão normalmente confeccionado ou vinho normalmente fermentado [3]: “As hóstias completamente sem glúten são matéria inválida para a Eucaristia. São matéria válida as hóstias parcialmente desprovidas de glúten, de modo que nelas esteja presente uma quantidade de glúten suficiente para obter a panificação, sem acréscimo de substâncias estranhas e sem recorrer a procedimentos tais que desnaturem o pão.”
“O mosto, isto é, o sumo de uva, quer fresco quer conservado, de modo a interromper a fermentação mediante métodos que não lhe alterem a natureza (p. ex., o congelamento), é matéria válida para a eucaristia.”
“Os Ordinários têm competência para conceder a licença de usar pão com baixo teor de glúten ou mosto como matéria da Eucaristia em favor de um fiel ou de um sacerdote.” [4]

3. Quando frequentei a catequese, os cuidados rituais para a comunhão exigiam, além do jejum desde a meia-noite até à hora de comungar, a tortura de engolir a hóstia, sem a mastigar e sem a deixar tocar nos dentes. Supunha que era para não magoar o Senhor, mas estava em oposição ao mandato de Jesus — tomai e comei — e, na altura, reservada ao padre — tomai e bebei.
Esta Carta dispensa essa tortura, mas liga a verdade e a eficácia sacramental da Eucaristia à pureza de um cereal — o trigo — e ao produto da videira, o vinho fermentado ou não.
Urge uma alteração de paradigma na teologia dos sacramentos e da liturgia. Veio mais do mesmo. Se esquecermos as exigências universais das múltiplas faces da inculturação, continuaremos num beco sem saída. Temos de voltar a esta questão.

Frei Bento Domingues no Público 

[1] Ver texto integral em: www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccdds/index_po.htm
[2] Cf. Can. 924 do CIC e nos números 319 a 323 da Institutio Generalis Missalis Romani, foram já explicadas na Instrução Redemptionis Sacramentum desta Congregação (25 de Março de 2004)
[3] Carta-circular aos Presidentes das Conferências Episcopais acerca do uso do pão com pouca quantidade de glúten e do mosto como matéria eucarística (24 de Julho de 2003, Prot. n. 89/78-17498)
[4] Cf. Carta ao Perfeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, 9 de Dezembro de 2013, Prot. n. 89/78 – 44897








sábado, 15 de outubro de 2016

O vinho na Bíblia

Crónica de Anselmo Borges 



Em tempo de vindimas e vinho novo, 
fica aí uma alusão ao vinho na Bíblia.


1. O vinho é tão importante, com funções tão significativas no convívio social e na vida toda, que os antigos até pensavam que ele era uma criação dos deuses. Dioniso - Baco para os romanos - era o deus do vinho, que ensinou aos homens a arte do cultivo da videira e da preparação do vinho. Ele é de tal modo exaltante que, na leitura dos clássicos, da grande literatura, como belos poemas, grandes tragédias, romances geniais, dizemos que ficamos "inebriados". Diante do esplendor da beleza - o maior exemplo, para mim, é sempre a música, a grande música -, há quem exclame: "Uma bebedeira de beleza!" Num dos mais extraordinários diálogos filosóficos de sempre sobre o amor - o Banquete (Simpósio), de Platão -, lá está o vinho. Na Bíblia, as referências ao vinho são muitas. Tanto no Antigo como no Novo Testamento.

domingo, 11 de setembro de 2016

Que fazer da missa?

Crónica de Frei Bento Domingues 
no Público


1. Nasci e cresci numa aldeia onde toda a gente ia à Missa. Era obrigatória: faltar era pecado e matéria de confissão. Era dita em latim e de costas para o povo, com os homens à frente e as mulheres e as crianças atrás. Durante a homilia, os homens saíam para fumar um cigarrito. Da Missa, aproveitava-se a reza do terço. O padre, depois dos avisos, em português, voltava ao latim: ite missa est. Missão cumprida?
A palavra missa vem do verbo latino mittere, enviar, mandar, dispensar, mas também missão e míssil. Seja como for, o sentido das palavras depende do seu uso.
A própria expressão Ite missa est já existia no latim profano antes de passar para a liturgia cristã. Como diz Ávito de Viena (470-518), essa fórmula era usada para terminar as audiências do paço e dos tribunais de justiça: “Nas igrejas e nas cortes do imperador e do prefeito dizia-se missa est quando o povo era despedido da audiência.”

sábado, 28 de maio de 2016

Eucaristia: a revolução

Crónica de Anselmo Borges 

Última Ceia. Painel Cerâmico  de Manuel Ângelo Correia
1. Um bispo, pessoa inteligente e estimável, perguntou-me: "O que é que se responde a uma criança de 12 anos que, depois de uma procissão do Santíssimo, me veio dizer: "Tu não levavas Cristo, pois não? Tu não podias com ele!..."" Respondi-lhe: "Olhe, senhor bispo, o que é que se deve responder exactamente não sei. Sei é que se não deve ensinar o que, depois, leva até uma criança a fazer observações dessas." Tudo por causa da Eucaristia e da presença real de Cristo.
Jesus, na iminência da condenação à morte, ofereceu uma ceia, a Última Ceia. Nela, abençoando o pão e o vinho, que significam a entrega da sua pessoa por amor a todos, disse: "Fazei isto em memória de mim." Os primeiros cristãos reuniam-se e, recordando (recordar é uma palavra muito rica, pois significa voltar a passar pelo coração) essa Ceia, o que Jesus fez e é, celebravam um ágape, o "partir do pão", uma refeição festiva e fraterna em sua memória, abertos a um futuro novo de Vida. E aconteceu o que constituiu talvez a maior revolução do mundo: se algum senhor se tinha convertido à fé cristã, sentava-se agora à mesma mesa que os seus escravos, em fraternidade.

domingo, 6 de março de 2016

Um contador de histórias subversivas

Crónica de Frei Bento Domingues no PÚBLICO

«A Eucaristia é um convite para a festa, 
para a festa de Deus revelada nos gestos 
e nas palavras de Jesus.»

1. Segundo os evangelhos sinópticos [1], Jesus não deu nenhum contributo para o avanço das ciências, nem revelou um grande pendor metafísico, embora não faltem investigadores que, hoje, o reconheçam como um filósofo.
O facto é que não deixou nada escrito. A sua breve intervenção pública acabou num fracasso tão vergonhoso, que ninguém poderia descobrir alí qualquer caminho de futuro. Aconteceu que os seus seguidores, depois de várias crises, não recalcaram a sua memória. Alguns judeus continuaram a ver, naquele carpinteiro de Nazaré, o messias esperado; outros recusaram-no, o que nada tem de surpreendente. Passados dois mil anos, Daniel Boyarin, conhecido especialista do Talmude, observa que se há alguma coisa que os cristãos sabem bem a propósito da sua religião é que ela não é o Judaísmo.

sábado, 11 de outubro de 2014

CONVIDADOS PARA A FESTA NUPCIAL

Reflexão semanal de Georgino Rocha


A sala enche-se de convidados para a festa nupcial. (Mt 22, 1-14). Esteve em risco de ficar vazia, contrariando todas as expectativas. Salva a situação, a insistência paciente do pai do noivo que resulta em pleno. O amor desdobra-se em convites, face às recusas recebidas. A lista convencional tem de ser profundamente alterada. Quem, segundo a praxe, estava em primeiro lugar, dá preferência a outros interesses e não quer participar, sobrepõe as preocupações reais ou fingidas, liberta-se de incómodos, dá largas a velhos ressentimentos, exercendo violência e eliminando os portadores do convite. 
A praxe é rigorosa. Antes de aceitar, o convidado procura informar-se, cuidadosamente, sobre os possíveis participantes. A escala social é padrão de referência e introduz níveis de oscilação no apreço e na consideração de cada um. Entre os comensais e entre estes e quem organiza a festa.