sábado, 24 de outubro de 2015

Cisma e debandada na Igreja

Crónica de Anselmo Borges 
no DN

"Pode haver mais amor cristão 
numa união canonicamente irregular 
do que num casal casado pela Igreja."

1. O Sínodo sobre a família termina amanhã em Roma, dividido, vindo talvez a propor uma comissão para estudos ulteriores e deixando ao Papa a última palavra. Há quem fale em cisma no sentido estrito da palavra, portanto, a separação de alguns, rompendo a unidade da Igreja. Não é impossível, mas não penso que isso venha a suceder. Porque Francisco é sábio e saberá lidar com as dificuldades, isto é, com o "cisma prático" na Igreja - a expressão é do cardeal Walter Kasper -, na medida em que grande maioria dos católicos vive separada da doutrina oficial, concretamente no domínio da sexualidade. Há, pois, expectativas legítimas neste campo.

2. No quadro do expectável está, em primeiro lugar, evidentemente, que se reafirme o valor inestimável da família enquanto compromisso felicitante de comunhão em amor fiel e duradouro, por toda a vida, aberto à geração criadora de novos seres humanos, os filhos, acolhidos no afecto e para uma educação pessoalmente humanizante e expansiva. Numa sociedade hedonista, individualista, em que as relações são líquidas e se teme a solidez do compromisso, reafirmar-se-á, pois, o ideal de comunhão indissolúvel.

3. Uma coisa são os ideais e outra a realidade concreta: a realidade sobrepõe-se às ideias e às doutrinas. Assim, é preciso afirmar os ideais e, depois, saber conviver com a realidade concreta, tantas vezes dura e traumática, que deixa feridas. O Papa Francisco reafirma a doutrina, mas espera que a Igreja e os seus mediadores - bispos, padres, etc. - tenham compreensão e dinâmica pastoral.
Ainda antes do Sínodo, simplificou e tornou gratuitos os processos de declaração de nulidade, que tem agora uma interpretação ampla nas suas causas.

Mas há também os casamentos válidos que pura e simplesmente fracassaram e se tornaram nulos. E, depois, as pessoas retomaram a vida na dignidade e no amor e na fé, na qual educam os filhos. Quem pode sinceramente pensar que se lhes deve negar a comunhão na Eucaristia? Causou profunda emoção no Sínodo a intervenção de um padre sinodal mexicano que contou como um miúdo com pais divorciados, no dia da sua primeira comunhão, partiu a hóstia e foi dar um bocadinho ao pai e outro à mãe, que, segundo a doutrina, não podiam comungar. Aprendera melhor a boa teologia do que muitos padres sinodais.

4. Será necessário valorizar os casamentos pelo civil e as uniões de facto. Onde há compromisso sério, fidelidade e amor, há presença de Deus, e, como disse o geral dos jesuítas, padre Adolfo Nicolás, "é preciso alimentar a vida em todos os campos. A nossa tarefa é aproximar as pessoas da graça, não rejeitá-las com preceitos". E acrescentou: "Pode haver mais amor cristão numa união canonicamente irregular do que num casal casado pela Igreja." No Sínodo, houve padres sinodais que, de modo genérico, sublinharam que "se não pode desconhecer que há valores positivos noutros tipos de família".

5. É intolerável discriminar as crianças por causa da sua origem familiar. Assim, por exemplo, se os pais ou as mães, casados pela Igreja ou não, solteiros, divorciados, pedirem o baptismo para os filhos, deve ser concedido. Também aqui Francisco tem dado o bom exemplo. Evidentemente, sempre dentro de boa preparação para todos, para que se saiba o sentido do que se está a fazer.

6. Já aqui tenho explicado que a Igreja não vai aceitar o casamento dos homossexuais - note-se que, nos documentos eclesiásticos, não se diz casamento (vem de casa), mas matrimónio (vem de mater, matris, mãe) -, pois o casamento para a Igreja implica abertura à procriação.
Mas não haverá exclusão para os homossexuais. Há aquela palavra de Francisco: "Se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar? Não se deve marginalizar estas pessoas. O problema não é ter esta tendência. Devemos ser irmãos. O problema é fazer lobby. Lobby desta tendência ou lobby dos avaros, dos políticos, dos maçons. Porque nenhum lobby é bom."
Na presença de casais do mesmo sexo estáveis, com compromisso de amor fiel e duradouro, poderão receber uma bênção e devem poder participar na vida da Igreja.

7. Será urgente rever todo o problema da "Humanae vitae", que proibiu os chamados métodos anticonceptivos artificiais. O que se quer dizer quando se fala em métodos naturais?

8. Há quinze dias, estive a dar um curso de Teologia a padres casados e suas mulheres. Hoje, no mundo, são mais de cem mil. E perguntei a mim próprio: como é que a Igreja desperdiça esta gente, que poderia dar um contributo imenso à Igreja e à sociedade? Fá-lo apenas porque quiseram formar uma família.

9. Impõe-se um esforço de renovação em todos estes domínios de "cisma prático". Caso contrário, continuará a "debandada" na Igreja, para usar a palavra de Francisco aos bispos portugueses.

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