sábado, 6 de junho de 2015

A geoestratégia de Deus

Crónica de Anselmo Borges 

Anselmo Borges

Na sequência dos trágicos acontecimentos de Paris, o jornal australiano Weekend Australian publicou um desenho com humor sábio. Intitula-se "Rezemos". Jesus segura o Alcorão e diz a Maomé: "Já te disse que o Alcorão precisa de um segundo volume, como nós temos o Antigo Testamento seguido do Novo Testamento." Maomé, que segura um jornal declarando em letras garrafais: "O mundo em guerra", atira a Jesus: "Ir lá abaixo, à Terra, escrever o segundo volume? Seria crucificado."

No contexto do meu livro Deus ainda Tem Futuro?, realizei recentemente, no Porto, um debate, com a participação do general Ramalho Eanes e do eurodeputado Paulo Rangel, sobre o tema em epígrafe: "A geoestratégia de Deus".
A geoestratégia de Deus pode ser vista no enquadramento do genitivo subjectivo, isto é, no sentido de perceber qual é a geoestratégia que Deus tem. Ora, olhando para o Novo Testamento, percebe-se que essa geoestratégia, a partir de Deus, é o amor, a compreensão universal entre todos, na justiça e na paz, a plena realização da humanidade, o Reino de Deus.

Mas há a geoestratégia de Deus, no sentido do genitivo objectivo, isto é, o que os homens querem e fazem de Deus no mundo globalizado, na geopolítica, nas suas geoestratégias, para defenderem os seus próprios interesses. De que modo entra a religião/religiões nesta geoestratégia? Como são utilizadas para defender, salvaguardar e legitimar interesses que não são os do Deus do amor de toda a humanidade? Pensou-se e pensa-se frequentemente que as religiões são apenas do foro privado, mas percebe-se cada vez mais claramente que há influências da economia, da política, da finança, do território e sua expansão, da geopolítica na religião/religiões e na concepção de Deus e, por sua vez, destas na economia, na finança, na geopolítica...

Vivemos num mundo global, multicultural e multi-religioso. O princípio "tal país, tal religião" foi abalado pelas migrações e outros factores. Como vamos viver em paz neste novo mundo? Porque há transformações, mesmo ao nível dos números: por exemplo, em 1900, o cristianismo representava 35% da humanidade; nessa altura, os muçulmanos eram 12%, mas hoje representam mais de 20% e o seu número aproximar-se-á cada vez mais do dos cristãos: passarão de 1600 milhões em 2010 para 2200 milhões em 2030, portanto, 26,4% dos habitantes do mundo. Na reconfiguração do planeta, que papel está reservado às religiões?

Ninguém minimamente atento, com alguns conhecimentos de história, ignora que vivemos num mundo extremamente complexo e perigoso. O Papa Francisco falou mesmo já da III Guerra Mundial em curso, embora por fases, em episódios.

A Europa mergulhou numa crise profunda e o seu maior problema é que não sabe o que quer e para onde vai. E não é só a crise grega. Ele há sobretudo a Ucrânia, a incompetência da União Europeia e dos Estados Unidos e Vladimir Putin e toda a sua estratégia de desestabilização da Europa, com gravíssimas consequências - não se deve esquecer que a Grécia e Chipre seguem o cristianismo ortodoxo, intitulando-se Moscovo a Terceira Roma.

O Médio Oriente continua a ser um dos focos mais explosivos da conflitualidade global. O autoproclamado Estado Islâmico acentua a sua desumana barbárie de terror: degolar, violar, acabar por todos os meios com as minorias cristãs e outras, arrasar, em nome da sharia, o património cultural milenar que vai até à antiga Nínive. Com focos terroristas em várias zonas - Iraque, Síria, Líbia, Nigéria...-, para algum mundo islâmico radical, a que não são alheios, de modo subtil e complexo, países como a Arábia Saudita - quem paga mesquitas no Ocidente e promove aí a natalidade entre mulheres muçulmanas? -, o objectivo pode mesmo ser chegar a Madrid e a Roma, matar o Papa.

Na reconfiguração da geopolítica, que significado tem que, dentro de poucos anos, o país do mundo com maior número de cristãos seja a China? Os seus dirigentes vão dizendo que querem restabelecer relações diplomáticas com o Vaticano. O secretário de Estado do Vaticano, cardeal Parolin, quer desbloquear a questão nevrálgica das ordenações de bispos, oferecendo um acordo como o que vigora no Vietname: a Santa Sé apresenta o seu candidato ao governo e, se este o não aprova, apresenta outro e assim sucessivamente até haver um consenso. A nova fronteira do cristianismo: a Ásia, e Francisco poderá visitar Pequim.

Outras perguntas. Deverá a Turquia entrar na União Europeia? Que significado terá o aumento crescente dos evangélicos fundamentalistas?
A actividade diplomática de Francisco - está hoje em Sarajevo - tem sido intensa e profícua. Do que não há dúvida é que o diálogo inter-religioso tem importância decisiva. É de saudar que as Nações Unidas convoquem uma reunião dos líderes das religiões mundiais para a promoção da reconciliação, da justiça e da paz no mundo.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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