sábado, 30 de maio de 2015

Visita à Lusa Atenas

Crónica de Maria Donzília Almeida


Serenatas romanescas
Trovas quase orações.
Destas coisas pitorescas
Restam só recordações!

Vagueava eu na plataforma que dá acesso à entrada para o comboio, a fazer horas, quando sou surpreendida por um olhar insistente, perscrutador, num zona resguardada de espera.
Continuei o meu percurso, naquela soalheira manhã de maio, em que me dirigia pela enésima vez à vetusta Lusa Atenas. Longe vão os tempos, na década de setenta do século passado, em que eram recorrentes estas viagens de e para a cidade universitária. O comboio, como meio de transporte mais acessível à bolsa de um estudante, cumpria esta tarefa de unir distâncias. Hoje, com o benefício adquirido pela idade, continua a merecer a minha preferência.
Na velha urbe, para além da formação para a vida e construção do futuro, fazem-se amizades, estreitam-se relações e criam-se laços com lugares e pessoas que povoam os nossos afetos.
Ia a pensar, precisamente na pessoa que iria visitar, nesse dia, quando deparei com aquele olhar meigo que me fitava com curiosidade e interrogação.

Atendera o pedido, várias vezes reiterado, da anfitriã que me acolhera durante a minha estadia, naquela cidade. Era já uma anciã de noventa e quatro anos, alquebrada pela idade e pelas agruras da vida, que impiedosamente a tinham assolado. Lutara como todas as mulheres guerreiras, para dar um bom futuro aos seus filhos e conseguira-o. A vida, no entanto, que nos prega as mais duras partidas, não a poupou nesta sua qualidade de nos surpreender. Arrebatara-lhe a filha, que por mister, na senda de Esculápio, tratava da saúde ao próximo. Dor imensa, incomensurável, a perda de um filho!
Estava eu mergulhada nestes pensamentos lúgubres, quando me cruzo novamente pela mesma criatura, que parecia não tirar os olhos de mim. De repente, num assomo de memória, recuei vários anos e visualizei a carita laroca de um ex-aluno! Era o Daniel, aquele petiz da Costa-Nova que integrara um turma de Inglês. Fazendo a retrospetiva dessa época, recordo uma turma muito conturbada, em que grande número de alunos tinha por único objetivo, boicotar o trabalho do professor. Para alguns, é uma façanha que lhes dá protagonismo e vai marcar a sua passagem pela escola, como heróis. Esta é um alvo a abater e para isso servem todas as estratégias. É o seu tempo de glória, fugaz, efémera e completamente inútil. Mas desses não reza a história e são depositados como qualquer resíduo tóxico, no Spam da memória de qualquer professor.
Reconheço e devo confessar, que ainda não atingi o estádio da santidade, para amar os meus inimigos. Não lhes movo qualquer guerrilha, nem sequer lhes dispenso qualquer sentimento negativo…mas o esquecimento é por vezes, muito corrosivo. Até os nomes se esfumam no tempo. 
Ah! Mas o Daniel demarcava-se da turba amotinada e mantinha uma postura correta, disciplinada, de respeito pela teacher. Dava gosto ter aquele garotinho tão maduro, tão adulto, um homenzinho em miniatura. O seu nome ficara bem gravado na minha memória e com prazer.
O Daniel mudara, crescera, tornara-se um rapagão, com os mesmos olhinhos meigos, afetuosos de sempre.
Falou da sua ocupação atual, a frequentar um curso profissional num escola próxima e dos seus projetos de futuro, que auguro promissores. Estava na estação com a irmã, com o mesmo destino que eu, para visitar um familiar doente, em Coimbra.
Despedimo-nos com votos de boa sorte e da consecução dos seus anseios.
Em Coimbra, nesse dia de algum calor para a época, sem eu contar, decorria com afã e muita movimentação, o cortejo da queima das fitas da velha academia. Pude apreciar com muita vivacidade e exuberância, todo o colorido, toda a energia, vitalidade e irreverência que acompanham esta camada de gente que faz pela vida e arranja sempre tempo para se divertir. O humor sardónico é a marca da contestação sempre latente que caracteriza esta faixa etária, bem presente nos cartazes e mensagens dos carros alegóricos. É a fase mais feliz da vida de qualquer jovem, pois há muito tempo pela frente para as deceções e desenganos.
O amplo espaço entre a Faculdade de Letras e a Biblioteca Geral, prolongando-se pela Faculdade de Medicina, foi palco desta euforia estudantil, que vive com tanta intensidade estes eventos académicos. Só não gostei de ver os resíduos resultantes da comemoração, na sua sede desmesurada, para evitar o vernáculo, que cobriam o chão, nas imediações da universidade e ao longo de todo o desfile.
A alegria não é incompatível com o asseio e respeito pelo ambiente, quando impera o bom senso.


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