domingo, 8 de junho de 2014

DE QUE ESPÍRITO SOMOS?

Crónica de Frei Bento Domingues no PÚBLICO

«Não é a multiplicação das instituições e das leis que resolve os impasses de uma sociedade. No âmbito cristão, foi essa uma percepção fundadora. Jesus de Nazaré cresceu e foi educado num ambiente marcado pelas infindáveis proibições para não violar a sagrada instituição do Sábado. Perante aquela obsessão, Jesus cunhou um aforismo célebre: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. O radicalismo de S. Paulo contra o primado da Lei é bem conhecido.»



1. Temos mandamentos da Lei de Deus e da Santa Madre Igreja, sete Sacramentos, normas litúrgicas, Direito Canónico, tribunais eclesiásticos, dogmas definidos, burocracias nas paróquias, nas dioceses e na Cúria do Vaticano. Estando tudo previsto e regulamentado, porque será que há tantos católicos insatisfeitos, a começar pelo Papa Francisco, o mais irrequieto de todos?
Não basta dizer que há reformas urgentes a fazer nas instituições da Igreja, que passa o tempo e nada acontece, porque estas não são razões suficientes nem toda a verdade.
Vamos por partes. Não é a multiplicação das instituições e das leis que resolve os impasses de uma sociedade. No âmbito cristão, foi essa uma percepção fundadora. Jesus de Nazaré cresceu e foi educado num ambiente marcado pelas infindáveis proibições para não violar a sagrada instituição do Sábado. Perante aquela obsessão, Jesus cunhou um aforismo célebre: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. O radicalismo de S. Paulo contra o primado da Lei é bem conhecido.
Como estamos na festa do Pentecostes, há logo quem sugira e com base em várias passagens do Novo Testamento: falta o Espírito Santo.
O abade cisterciense, Joaquim de Fiore (1132-1202), concebeu uma interpretação da História em três eras ou idades que anunciava o reino da pura liberdade. As três idades correspondiam às três pessoas da Santíssima Trindade: a do Pai (Antigo Testamento), a do Filho e da sua Igreja (Novo Testamento) e a terceira seria o Advento do Império do Divino Espírito Santo, sem leis e instituições disciplinadoras da fé.
Nos Açores e na vasta emigração açoriana, as festas do Divino Espírito Santo ainda conservam marcas desse sonho de abundância de tudo pela igualitária partilha dos bens. Mesmo depois de condenado, o “joaquinismo” sobrevive em metamorfoses diversas. O Pentecostes, em clima cristão, evoca sempre o imprevisível, a desregulamentação, a divina generosidade.

2. Não tinha, no entanto, que ser assim. A palavra é uma simples transcrição do grego pentecostés, cinquenta dias depois da Páscoa judaica, comemorativa do dom da Lei no Sinai, embora nas origens fosse sobretudo uma festa agrícola, de alegria e acção de graças pelas primícias das colheitas. Evocava a Lei de Deus e as leis da natureza, obra do Criador.
Era uma celebração muito concorrida e reunia muitos judeus vindos de muitos países. S. Lucas teve, então, uma ideia genial. Aproveitou aquele cenário e alterou-lhe a significação: desatar o movimento cristão da estreiteza das amarras do judaísmo ortodoxo, a partir do próprio judaísmo. Vem tudo contado no começo do capítulo 2 dos Actos dos Apóstolos (Act.). É a inauguração de uma nova era, numa linguagem de fogo, que realiza o prodígio da máxima unidade no respeito pela pluralidade dos povos, das linguagens e das culturas, uma união que fecunda a diversidade.
É o Espírito que tinha alterado o rumo da vida de Jesus de Nazaré, que irrompe na vida dos seus discípulos de forma espantosa. Aqueles inveterados calculistas – que, ainda há pouco, perguntavam a Jesus se era desta que iria restaurar a realeza em Israel – descobrem, de repente, o mundo todo por horizonte. Não para o dominar, mas para lhe testemunhar que a nova lei é a alegria de servir a esperança, na imprevisibilidade de cada situação.
Não se trata, apenas, do desenho literário de um sonho longínquo: os convertidos “eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão e às orações. (…) Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um (Act.2, 42-46). O narrador insiste em que, devido à partilha dos bens “não havia necessitados entre eles” (4,32-36).

3. Nos Actos, não há clivagem entre o espiritual e o material, a vida interior e as relações sociais. O sinal mais inequívoco da presença actuante do Espírito Santo é a partilha dos bens espirituais e materiais. Nunca haverá boa partilha de uns sem a partilha dos outros. O Papa, arreliado com as histórias em torno do Banco do Vaticano, disse numa das Missas matinais, em Santa Marta, que S. Pedro não tinha conta bancária.
Não vamos pedir aos Actos uma receita para a gestão económica e financeira do mundo, da Europa ou de Portugal. Servem apenas para nos dizer que, do ponto de vista ético, as coisas não têm de ser irremediavelmente o que são. Podem ser diferentes.


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