domingo, 15 de dezembro de 2013

O advento da terceira Igreja

A Crónica de Frei Bento Domingues no PÚBLICO de hoje

Frei Bento Domingues


1. Nasci numa época em que muito do clero português cultivava mais o medo do pecado do que o amor da virtude. A sua pregação – sobretudo a dos padres da vinagreira – estava centrada na ameaça do inferno e a confissão oscilava entre um precário alívio, a tortura e o escrúpulo.
As insólitas atitudes do Papa Francisco, a forma e o fundo da sua Exortação Apostólica recusam fazer da fé cristã uma tristeza. Estão a irritar não só a alta finança, mas também os movimentos que tentam recuperar esse tipo de práticas religiosas – contra o Vaticano II –, com o auxílio de eclesiásticos vestidos e calçados a preceito.
Estamos no Domingo da Alegria, como se todos os Domingos não fossem para celebrar a Páscoa, a vitória sobre a morte. Não foi por acaso que o Papa sentiu necessidade de recordar o que esquecemos e está escrito para sempre, em S. João: isto vos escrevemos para que a vossa alegria seja completa 1) – Evangelii Gaudium.



Estamos a precisar de uma Igreja que seja uma alegria para o mundo actual. O padre Bill Grimm sustenta que está a chegar a 3ª Igreja 2). Para ele, a primeira foi o movimento das discípulas e discípulos de Jesus Cristo, das gerações que se seguiram e das incursões missionárias, fora do universo judaico. Estava centrada, essencialmente, no Mediterrâneo. Foi ela que nos legou o Novo Testamento, os elementos fundamentais do culto cristão e os primeiros exemplos de diálogo com as religiões, as culturas e as filosofias desse mundo. A segunda centrou-se na Europa. Foi a Igreja da cristandade, pouco ou nada tolerante para o que lhe era exterior. O outro era o inimigo ou o objecto de proselitismo. Aí vivemos, mas estamos a caminho de uma 3ª Igreja, sem centro geográfico e sem fronteiras de raças, nações e culturas, mundial.

2. As estatísticas estão a contar a história. Em 1910, 80% dos cristãos do mundo viviam na Europa e na América do Norte. Hoje, um século mais tarde, a maioria vive na África, na Ásia e na América Latina. Em apenas cinco anos, entre 2004 e 2009, o número de católicos na Ásia aumentou 11%.
Os cristãos ocidentais quase não se aperceberam de como o seu cristianismo foi moldado por tradições religiosas e culturas anteriores à pregação do Evangelho na Europa. Hoje, são as Igrejas de África, Ásia, América Latina e Pacífico que estão a ser moldadas por religiões e culturas que os mensageiros do Evangelho aí encontraram. Isso significa que as ideias de Deus, de adoração, de santidade, de ministério e comunidade – de tudo o que faz a Igreja – estão, de forma gradual, a tornar-se diferentes do que tem sido “normal” durante mais de um milénio e meio.
O Advento da 3ª Igreja processa-se, no meio de crenças ou descrenças variadas, com pouco ou sem poder político, social e cultural. Este movimento está a levar a novos estilos de liturgia, de teologia, de comunidade, de evangelização.
Como os cristãos da 3ª Igreja, em especial na Ásia, são muitas vezes uma minoria impotente e perseguida, tendem a ver o papel da Igreja e as suas formas institucionais a partir de uma perspectiva diferente do Ocidente, onde a Igreja só há pouco começou a perder o poder político, moral e intelectual.

3. Perante este fenómeno, são diversas as reacções das pessoas nas Igrejas do Ocidente. Umas alegram-se por ver o Espírito Santo trabalhar em novas formas, em novos lugares. Outras, com medo do desconhecido, recusam-se a aceitar novas experiências, como se o Ocidente fosse feito só de bons exemplos a imitar. Grande parte da história católica, desde o Vaticano II, pode ser interpretada como uma série de tentativas para perpetuar o que B. Grimm chamou a 2ª Igreja e evitar as mudanças que se anunciam com o Advento de uma nova Igreja. Goste-se ou não, está a nascer outra realidade. Vai levar tempo, mas por fim o cristianismo será diferente em todo o mundo.
A tentação conservadora consiste em tornar definitivo o provisório: foi sempre assim e assim há-de continuar. Como seria bom mudar se tudo ficasse na mesma.
No entanto, os começos do cristianismo anunciavam uma subversão sem limites culturais, religiosos, geográficos, sociais e históricos. Paulo fez a declaração fundadora: Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus (Ga.3, 28). Isto está atrasado. Houve muitos ziguezagues. Temos a alegria de que a Igreja, na qual o Papa Francisco está a trabalhar, tem futuro, se não o deixarmos sozinho.

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