sábado, 17 de novembro de 2012

Um padre polémico

Anselmo Borges
No DN

1 As únicas relíquias que Jesus deixou são comunidades cristãs vivas. Não há outras. E comunidades cristãs vivas assentam em três pilares fundamentais, que se co-implicam.
O primeiro tem a ver com a fé, a entrega confiada ao Deus de Jesus, que se revelou como amor: "Deus é amor", escreveu São João. Esta fé tem de ser esclarecida, segundo o princípio "crer para entender, e entender para crer".
Outro pilar diz respeito à caridade e à justiça. Os discípulos agiam de acordo com o que Jesus tinha vivido e feito, de tal modo que os pagãos diziam: "Vede como eles se amam."
O terceiro diz que a vida cristã segundo a fé e o amor deve ser celebrada em liturgias belas. Não se trata, pois, da prática ritual vazia, mas de celebrar, na fraternidade e na beleza e fazendo memória de Jesus na sua vida, morte e ressurreição, o que se vive no quotidiano da existência. Na celebração, é a vida toda que está presente, e sai--se de lá com nova luz e ânimo para a vida toda e esperança para lá da morte.


2 E o padre? Qual é o seu lugar? A sua missão só pode ser a de membro coordenador e animador das comunidades cristãs nesta tríplice dimensão.
Ele há-de ser aquele que anima a fé e a esclarece, iluminando a vida de todos os dias nas suas diferentes dimensões: pessoal, familiar, comunitária, intelectual, social, económica, política.
Tem de ser homem de fé e, por isso, alguém que se entrega generosamente ao cuidado do seu povo, decidido a defendê-lo e a combater com ele pela justiça e pela paz, pela promoção e dignificação de todas as pessoas. Para os cristãos, é intolerável a injustiça e a exploração.
Há aquela expressão: "Católico não praticante." Uma expressão envenenada. Ela supõe que se segue os valores cristãos, só não se vai à missa nem à confissão. Mas será assim? Isto é, pratica-se real e verdadeiramente os valores cristãos da dignidade livre e da liberdade na dignidade, da partilha, da justiça, do amor? E as celebrações são efectivamente belas ou uma imensa maçada no tédio e na banalidade, de tal modo que se tornam infrequentáveis?

3 O melhor que se pode dizer de um padre é que é um "padre cristão" ou, pelo menos, tenta sê-lo. A vida do padre José Martins Júnior, que celebrou na sua Ribeira Seca (Madeira), em Agosto passado, as bodas de ouro sacerdotais, numa bela festa popular, foi pautada por esse lema.

Lá está a fé, que procurou e procura sempre esclarecer, para que não seja cega, mas autenticamente humana e cristã.
Lá estão o amor e a justiça, nunca esquecendo os privilegiados de Deus: os pobres, os desfavorecidos, os explorados. Anima os jovens e visita os doentes e os mais idosos, recordando estórias e afectos. Quando foi e é preciso, ergueu e ergue, destemido, nos diferentes púlpitos, a voz profética contra a injustiça, sabendo dos dissabores mortais que daí adviriam ou advêm.
Quem não sabe da sua rara sensibilidade estética, sendo um distinto compositor? E aí estão as celebrações em liturgias vivamente participadas por todos, fraternas e belas. E a palavra luminosa da homilia é luz e calor para a vida toda.
No livro de homenagem, Olhares Múltiplos sobre Um Homem de Causas, estão os testemunhos de muitos que com ele foram contactando ao longo da vida - também Mário Soares - e que convergem para a afirmação de um "padre cristão", mesmo sabendo que, como disse Nietzsche, cristão só houve um e, infelizmente, crucificaram-no. Os outros vão tentando.
Um padre polémico? E Jesus não foi e continua a ser polémico? Mau sinal, quando todos estivessem de acordo na paz da indiferença. Leva consigo a amargura da marginalização por parte de alguma Igreja hierárquica. Ora, se a Igreja se quer, e bem, defensora e promotora dos direitos humanos, porque é que não os pratica no seu seio? No caso presente, dever-se-ia ir até mais longe, pois a compreensão e o amor evangélicos é que devem ser a lei por que se governa a Igreja; mas, se não se chega até aí, porque é que não se procede, pelo menos, a um julgamento eclesiástico justo?

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