domingo, 1 de abril de 2012

TECENDO A VIDA UMAS COISITAS - 284


 PITADAS DE SAL – 14

 

A CALDEIRADA

Caríssima/o: 

Já lá vai uma boa dúzia de anos... no virar do milénio. Houve que raspar uma página da vida e para melhor o conseguir foi sugerida uma boa caldeirada ... de enguias. E logo aquelas perguntas que se fazem para que tudo venha em nossa ajuda: mas onde? E com quem?Quando? E etc. ... 
Um telefonema e da outra ponta a disponibilidade mais perfeita: 
- Mas qual é a dúvida? Quando quereis? Se não tiverdes melhor ideia, olha, vamos no “Desejado” à Cale d'Oiro e o Jeremias arranja-nos as enguias e... 
Marcámos a data e seguimos as directivas que o Baltazar traçara chegando ao ancoradouro, na Chave, desta vez não pelas 7 da manhã, para aproveitar a maré e para o “Desejado”, o bote, poder sair sem grandes trabalhos, pois o plano era chegar à marinha pela tardinha. Depois foi o ritual que todos conhecemos de tão repetido: saltar para dentro, 'chega para trás', senta-te... e lá nos acomodámos os três e fomos em direcção à marinha Cale d'Oiro e encostámos ao malhadal. Depois dos cumprimentos e da “exploração” da marinha com as explicações sobre a criação das enguias, incluindo os ardilosos sistemas de entradas e saídas das águas das marés, apanhou-se a quantidade para a nossa caldeirada e para satisfazer as encomendas. 
E agora, amigos, o bico do canivete começou a sua faina de corte, desliza e limpa que só um bom pescador de bacalhau executa com tal rapidez e perfeição. As enguias estavam vivinhas e eram atiradas para o alguidar, indo parar ao tacho onde continuavam a rabiar! Mas quando o Baltazar lhes 'punha a unha' até parecia que as pobrezinhas se encolhiam! 
Entretanto, as batatas descascadas e o lume aceso entre dois tijolos, o tacho foi recebendo os 'ingredientes' que me dispenso de enumerar, pois melhor os sabeis do que eu... O que garanto é que foram seguidos todos os passos, sem esquecer a moira nem o sal de unto. 
A mesa preparou-se dentro do palheiro e acamaradámos desgustando uma caldeirada 'à pescador'... E o maior elogio que se pode fazer será seguir o velho dito (com o desconto respectivo!): “nem as espinhas escaparam!” Certo é que não as comemos, mas não sei se estais a ver: pega-se numa ponta com os dedos... (estas coisas não se dizem e muito menos se escrevem; vindo sempre à colecção o velho Camões: “melhor é experimentá-lo que julgá-lo, mas...”) 
Só então reparámos que a noite tinha caído; começou outra dança: a montagem da barraca para dormirmos dois (o arrais tinha a cama no fundo do bote e os homens da marinha dormiriam nas suas tarimbas). Para estas situações também há uma expressão muito batida: quando o junco e os cobertores estavam preparados, foi “tiro e queda”! 
Agora seria o hino ao acordar: a aragem fresca, o pio e voo da passarada, o bater da água nos muros da marinha... Mas deixai-me ser sincero: as minhas costas e os vergões com que acordei ainda hoje estão bem presentes. 
Quero com isto dizer que não repetia a dose? Pura ilusão: se quiseres, Baltazar, vamos outra vez amanhã! 

Manuel

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