quinta-feira, 29 de março de 2012

Das ambiguidades do tempo à clareza conciliar

Texto de António Marcelino



«Em outubro de 1962, Congar, referindo-se a Helder Câmara, o bispo pequeno de coração grande, que vinha inovando e gritando do outro lado do Atlântico, disse, de forma emblemática: “Ele possui aquilo que falta em Roma: a visão”»


É nesta perspetiva que podemos situar a reflexão conciliar sobre a Igreja. Ao contrário do que vinha de trás, o Concílio não nos deu uma definição de Igreja, mas mostrou-nos como ela corresponde à iniciativa de Deus, os seus elementos essenciais, a dignidade dos seus membros, a sua missão e a vocação de plenitude. A dimensão bíblica e espiritual põe de lado ou dá outro sentido aos elementos hierárquico, jurídico e apologético, até ali dominantes.

Com base no poder, a Igreja só podia ser uma sociedade de desiguais. Assim chegou a ser definida. Num documento famoso de 1906, o próprio papa Pio X, seguindo a mentalidade de então, disse aos bispos franceses: “A Igreja é por essência um sociedade desigual, quer dizer, uma sociedade que se compõe de duas categorias de pessoas, os pastores e o rebanho, a hierarquia e a multidão dos fiéis”. A conclusão era óbvia: o clero tem o poder de ordem e de jurisdição para ensinar; os leigos são a Igreja que aprende, escuta, obedece e são santificados pelos sacerdotes. Tudo se ordenava neste sentido: os lugares nas celebrações litúrgicas, os modos solenes de comunicação dos bispos com os cristãos, o púlpito, lugar de autoridade do padre, o estudo da teologia, privilégio dos clérigos. 

Alguém anotou, a fim de mostrar esta orientação, que no Código do Direito Canónico então em vigor e até ao atual, não obstante a muita legislação complementar, já fruto do Vaticano II, há 379 cânones sobre os clérigos, 200 sobre os religiosos e apenas 44 sobre os leigos, ainda com mais referências indiretas sobre deveres a cumprir do que afirmações diretas sobre o seu lugar na Igreja.
Poder-se-á resumir assim a fisionomia da Igreja pré-conciliar, para que melhor se entenda o motivo que levou João XXIII à sua decisão, a orientação do debate e, por fim, a promulgação da Constituição: Uma Igreja, sociedade de desiguais, de cariz vincadamente hierárquico; uma Igreja com um forte acento sacral, com prevalência dada aos sacramentos e às devoções; uma Igreja de modelo único e uniforme (romano e ocidental) não aberta à realidade cultural e histórica; uma Igreja papal de pouco sentido local, pois os bispos, mais do que membros do Colégio Apostólico, eram vigários do Papa e as suas dioceses, por conseguinte, sucursais de Roma. 

A partir de Pio IX (meados seculo XIX) e até ao Vaticano II (1965), a Igreja parece identificar-se como uma grande e única diocese, com um chefe visível, o Papa; uma doutrina, a escolástica; uma liturgia, a romana; uma lei, o Código de Direito Canónico de 1917 que pouco teve de novo, além de compilar as leis, até ali, em vigor. Os bispos daquele tempo, sem restrições à dedicação generosa à Igreja diocesana, pouco mais seriam dos que executores fiéis do que Roma mandava ou impunha. Ora, muitos cristãos já rodavam noutro sentido e as exigências da evangelização, num mundo em mudança, reagiam a uma centralidade férrea e a uma Igreja fechada à inovação e criatividade. 

O Padre Congar, uma das vítimas do poder romano que não admitia quem pensasse e falasse noutro tom que não fosse o das instâncias romanas, resume este tempo pré-conciliar como período vivido “sob o sinal da autoridade”, o primado papal, fruto do legado teológico que constituía a orientação pobre da eclesiologia do Vaticano I. Porém, a renovação da consciência eclesial foi crescendo, frente “ao individualismo liberal e ao capitalismo selvagem”; foi emergindo, entre os cristãos mais atentos, um sentido de comunidade, a que o conhecimento das fontes bíblicas e históricas deu força de participação interventiva e a que a encíclica de Pio XII sobre o Corpo Místico abriu horizontes; viviam-se já experiências novas, não por completo clandestinas, em alguns países da Europa e da América Latina. Tudo isto explica o grito de João XXIII. 

Em outubro de 1962, Congar, referindo-se a Helder Câmara, o bispo pequeno de coração grande, que vinha inovando e gritando do outro lado do Atlântico, disse, de forma emblemática: “Ele possui aquilo que falta em Roma: a visão”.

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