quarta-feira, 31 de maio de 2006

Um artigo de António Rego

Os filhos
da Nação
Porquê, pergunta-se, o des-porto é o lugar de despejo de tantas angústias e esperanças de gente das mais variadas condições sociais e culturais? Porquê esse amontoado de sentimentos de vitória ou frustração, pelo simples facto – sejamos claros, falemos do futebol – de uma bola atravessar a linha desejada e interdita da baliza, depois de tantas leis aleatórias criadas e retocadas para tornar mais complexa e sedutora a operação vitória? Porquê tudo isto, se sabemos de antemão, que nada se passa, além dum prévio acordo convencional que dará a palma da vitória ou desonra da humilhação? E se entrarmos no terreno da empresa e do investimento, do estádio e de todos os suportes que estão na retaguarda dum jogo de futebol, que diferença entre o jogo do grande estádio e um entretenimento de bairro com uma insignificante bola de trapos? As coisas não são apenas o que são. São o que simbolizam, mais as metáforas que escondem, os sentimentos que expressam, as explosões de apreço ou fúria que acordam num clube, numa equipa, num país, numa pátria. E nesta matéria, o desporto - o futebol, no caso - aproxima-se de todo o discurso político, económico, social e até religioso, quase litúrgico, reflectindo-se no estímulo e no desencanto, nos êxitos e fracassos paralelos e eventualmente prenunciadores da colagem do real ao assumidamente simbólico do futebol. Parece que o país, perdido ou ganho um torneio, se sente perdido ou reencontrado no seu evoluir económico, social, internacional, como imagem de prestígio ou objecto de compaixão ou desprezo. O futebol ultrapassa as suas linhas, rompe as suas redes, suspende ou manda prosseguir o desafio da vida, puxa de cartões para castigar ou determinar os que devem ser expulsos do campo da dignidade. E mesmo quem não gosta de futebol quer saber o que aconteceu ou vai acontecer a Portugal como quem perscruta o oráculo dos deuses sobre o seu futuro. Estamos perante um jogo que se liga, mais do que se pensa, a um transcendente recheado de surpresa. Como escreveu Peguy: “Eu jogo por vezes com o homem, diz Deus, mas quem quer perder é ele – tonto - e sou eu quem quer que ele ganhe. E consegui, algumas vezes, que fosse o homem a ganhar…” Surpreendente, o jogo da vida, mais que os grandes jogos de estádio.

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