sábado, 29 de abril de 2006

Um artigo de Laurinda Alves, no Correio do Vouga

Os ramos
da cerejeira “Tenho saudades do meu avô. Às vezes, sonho com ele e vejo-me sentada ao seu lado, na cadeira rente ao chão, que os netos disputavam para ficar mais perto dele a ouvir as histórias que contava como ninguém. Vejo-o enorme, sentado no seu cadeirão de braços, com as pernas cruzadas e os óculos de meia-lua sobre a ponta do nariz, a ler o jornal concentrado e, ao mesmo tempo, muito atento a tudo à sua volta. Vejo-o com todo o tempo do mundo a ter tempo para todos. Lembro-me da sua voz, das suas cores e da maneira como os olhos riam. Era um homem alto, lindo, cabelo imaculadamente branco, olhos azul-escuro que acinzentavam conforme a luz dos dias, andar compassado e tranquilo. Um andar de quem conhece a terra que pisa. (...) O tempo em que o meu avô e a minha avó eram vivos foi o tempo mais feliz da nossa família. Amados pelos filhos e netos, eram igualmente venerados pelas noras e genros. O dia do piquenique anual, feito à sombra da cerejeira mais antiga e perfumada das terras do meu avô, era um dia inesquecível. Vinham homens para assar o borrego e mulheres para ajudar a estender as toalhas na terra inclinada sobre a vinha. Nós divertíamo-nos uns com os outros, divididos entre o prazer dos assados, as anedotas do tio Guilherme e os saltos para o tanque que todos os anos era limpo e cheio de água fresca. Alguns desses dias foram filmados e ficaram gravados para sempre. As imagens estão gastas e não têm som mas, de cada vez que as vejo ou me lembro delas, oiço as vozes com uma estranha nitidez. (...) Um dia, o meu avô deitou-se, adormeceu e não voltou a acordar. Morreu exactamente como viveu.” Se deixo aqui aquilo que escrevi há alguns anos, é porque todas estas memórias e sentimentos continuam muito presentes e não sei dizer as mesmas coisas por outras palavras. Por outro lado, se recordo parte do que então escrevi, é justamente por ter referido a velha cerejeira. Foi por causa desta árvore e de tudo o que vivemos à sombra dos seus ramos que o gesto de alguém, que eu só conhecia de nome mas era íntimo da minha família, me tocou de uma forma tão profunda. Manuel Vieira, o padre “Manel”, de quem tanto ouvi falar, mas com quem nunca me tinha cruzado por vivermos vidas diferentes, em lugares distantes, foi ter comigo à entrada de um encontro onde participei recentemente e ao qual cheguei em cima da hora, cheia de nervos e sobressaltos. Manuel Vieira apresentou-se, abriu um sorriso enorme e estendeu a mão com uma carta para mim. O envelope continha qualquer coisa invulgar e, mesmo atrasada, não resisti a abri-lo logo ali. Tinha três ramos de árvore e um papel escrito dos dois lados. Os pequenos ramos estavam unidos por um elástico e tinham sido cuidadosamente embrulhados num saquinho de plástico para os proteger melhor. Olhei com ar interrogativo, enquanto alguém me puxava pelo braço para descer as escadas do enorme auditório, onde já estavam sentadas centenas de pessoas à minha espera. Não resisti a ler o papel enquanto me apresentavam à plateia. E o que o papel dizia era muito simples e muito poético: “Passei em Aldeia Velha na manhã do dia 16 e parei à sombra da cerejeira, ao lado da casa de campo. Subi à parede e colhi um raminho desta cerejeira já velhinha mas ainda conhecida por ser a cerejeira do seu avô. Agora fala à neta. Penso que as coisas, mesmo insignificantes, quandos nos ligam à vida passada ou presente, deixam de ser insignificantes, para se tornarem importantes e mensageiras.” Pode crer, querido padre Manuel Vieira.

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