sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

Um poema de Carlos Drummond de Andrade

OS OMBROS
SUPORTAM
O MUNDO
Os ombros suportam o mundo Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor. Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer. E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.
: Nota: Carlos Drummond de Andrade nasceu em 1902, no Rio de Janeiro, e morreu em 1987. Depois de exercer várias profissões e cargos públicos, a partir de 1950 passou a viver exclusivamente da escrita. Escreveu poesia, contos, crónicas, literatura infantil, entre outros géneros, abordando, normalmente, temas tão importantes como a vida, a pessoa, a família, a terra natal, os amigos, o amor e as lutas sociais.

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